Depois do primeiro encontro com Susana de Sousa Dias, num café da Rua do Alecrim, escrevi no caderno de notas: "Ela foi uma rapariga tímida."
No segundo encontro, em casa dela, perto do Marquês de Pombal, em Lisboa, via-se ainda mais a rapariga tímida a ser fotografada em série, desconfortável em série, para todos os jornais.
Finalmente, decidiu dar-se atenção a Susana de Sousa Dias. "Natureza Morta" (2005), o seu filme-retrato de Portugal no Estado Novo, teve mais sucesso fora do país. E "48" - a partir de imagens de cadastro da PIDE -, que se estreou ontem em cinco salas do país, também.
O filme estava pronto em 2009 e, depois de passar no DocLisboa, desapareceu do circuito português. Começou por ser recusado também no estrangeiro. Mas depois Susana de Sousa Dias levou-o a uma conferência sobre imagem e alguém escreveu sobre ele. A seguir outro académico também escreveu, e depois um crítico, e depois outro, e "48" começou a ser mostrado no Reino Unido e nos EUA. Até que directores de festivais que já tinham recusado o filme voltaram a pedi-lo, e em 2010 "48" ganhou o Grande Prémio do Cinéma du Réel, um dos mais importantes festivais internacionais de documentário.
Os filmes de Susana não fazem concessões. E a pergunta é como é que esta mulher tímida conseguiu não vacilar quando viu os seus filmes recusados.
A sala está arrumada para a fotografia. Normalmente, a mesa de jantar estaria ocupada com livros e DVD e algum computador, porque Susana e o marido, Ansgar Schäffer, produtor dos seus filmes, invadem a casa com o trabalho.
Sobre o tampo de mármore do pequeno móvel ao lado do piano, uma Bíblia. Não é religiosa, mas a Bíblia foi-lhe oferecida pelo pai, o realizador e escritor António de Macedo. Está aberta ao acaso como quem acendeu uma vela, no Eclesiastes: "A morte - Há um momento para tudo e um tempo para todo o propósito debaixo do céu. (...) Tempo de buscar, e tempo de perder, tempo de guardar, e tempo de jogar fora."
Um país a mudar
No 25 de Abril, Susana tinha 12 anos e estava em Lisboa. Teve uma adolescência revolucionária. Durante parte do PREC, viveu com o pai. António de Macedo saía à rua para ir filmar e ela saía também, primeiro para ver, depois para participar em acções. Aos 13, 14 anos, com as brigadas estudantis do Movimento Alfa, foi para a reforma agrária apanhar tomates; foi para as salinas. Em 1976, passou algum tempo no Alentejo, numa casa sem água, sem luz, sem casa de banho, onde as galinhas entravam como animais domésticos por todas as divisões. Os rapazes iam trabalhar para o campo. As raparigas davam alfabetização. Enquanto ensinava aprendia com aquelas pessoas que tinham uma vida tão dura. E via "um país mudar de um dia para o outro".
Quando entrou para a Escola de Cinema, saiu uma notícia no jornal: "Filha de António de Macedo na Escola de Cinema." O pai tinha-lhe dito que não fosse, mas ela foi teimosa. Assim que acabou, quis imediatamente fazer outro curso, e foi para Belas-Artes. O pai apoiou. Poderia parecer óbvio que ela iria chegar a este cinema plástico, até experimental, mas demorou mais de dez anos a encontrar os filmes que queria fazer, filmes que apareciam mais fortes do que ela, que ganhavam vida e não se importavam se ficavam na gaveta ou se ganhavam prémios.
Foi através das histórias das enfermeiras do Estado Novo que não podiam casar que entrou nos arquivos da PIDE. Tem a sensação de que nunca mais de lá saiu nem sairá. As imagens de cadastro foram as que mais a impressionaram, mas não percebeu imediatamente porquê.
Essas imagens apareceriam em "Natureza Morta", juntamente com outras imagens de arquivo, compondo um retrato do Estado Novo com música, mas sem texto. E quando foi à procura dos donos dos rostos de arquivo para assinarem autorizações de uso das fotografias, encontrou as personagens de "48". E é assim que "48" tem palavras. Palavras para explicar que um cabelo desarrumado pode ser um cabelo de uma mulher torturada. Palavras violentas.
Não se trata aqui da beleza do 25 de Abril ou do romantismo da clandestinidade. "48" não abandona o tema da tortura, e nós, como espectadores, não abandonamos aqueles rostos que ficaram demasiados anos num arquivo. E esses rostos falam.
À procura do filme
Antes de 2000, Susana não fazia planos nem balanços, e o tempo parecia fugir dela.
Foi preciso bater no fundo para redescobrir como viver, como trabalhar. Há um tempo para a montagem - e pode durar meses, meses em que dorme junto da mesa de montagem. Descobriu a alegria de estar imersa muito tempo numa ideia ao fazer "Natureza Morta". Na altura, montava no escritório do marido em casa. Gostava do escritório dele, porque tinha uma cama que abria mais ou menos por cima da mesa de montagem. Subia da mesa para a cama e descia da cama para a mesa, vendo as mesmas imagens ininterruptamente, até que o filme aparecia. Nessa altura, a montagem começou a avançar rapidamente. Mas um dia acordou e o filme tinha desaparecido. Não tinha dinheiro de Portugal, mas os franceses tinham acreditado nela, e nessa altura entrou em pânico, pensando: "Sou uma fraude, enganei os franceses todos."
- Então vamos lá pensar onde é que o filme está, disse-lhe a psicóloga
E com aquela frase percebeu que se o filme estava perdido podia ser achado. Regressou à mesa de montagem. De "Natureza Morta" nasceu "Luz Obscura", que parte de uma fotografia tirada na PIDE de uma prisioneira política com um bebé ao colo, e que levou Susana à família de Octávio Pato; e nasceu "48". De "48" já nasceram novos projectos.
Um filme leva a outro e a outro. E se pudesse manipular o tempo como na sala de montagem, poderia então fazer todos os projectos que tem na cabeça.
Naquele tempo em que ainda não tinha tempo, aos 15 anos, lembra-se de ir sozinha a um concerto de Stockhausen e de ler que aquela peça tinha demorado 15 anos a ser criada. Não concebia que alguém trabalhasse num projecto durante o equivalente ao seu tempo de vida.Mas nos últimos dez anos Susana de Sousa Dias lançou dois filmes. "Tens de viver com aquilo, dentro daquilo, viver com as imagens, e depois fazer o luto". É o que leva mais tempo. Para deixar ir "Natureza Morta" e começar "48" precisou de três anos.
As imagens de "48" em tempo real somam sete minutos. O filme tem 93. É por isso que os rostos fotográficos por vezes parecem mexer-se. É por isso que a Bíblia está aberta em Eclesiastes: "Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz."
O que nos trouxe até aqui
"Não me permito chorar nas entrevistas. Se deixo cair uma lágrima, não páro."
Numa das sessões que fez no estrangeiro, alguém lhe perguntou como é que aguentava. Como é que fazia entrevistas e ia para a sala de montagem ouvir outra vez uma mulher a contar que limpava a menstruação com a roupa, ou um homem a explicar que a sua filha, porque o via sempre sentado na prisão, pensava que ele não tinha pernas?
A verdade é que muitas vezes chorava depois em casa. "Uma pessoa chora, não há nada a fazer", diz. É por isso que "48" acaba com o choro de um dos presos políticos.
Não foi assim há muito tempo que saiu de casa e começou a ver a cara de Salazar por todo o lado em Lisboa. Trabalhada tipo Andy Warhol, como se Salazar fosse um ícone. Fez-lhe muita confusão, e fazem-lhe muita confusão todas as tentativas de branqueamento do ditador. "Convivemos todos muito pacificamente com a figura de Salazar."
Salazar em cartazes entrou num dos últimos projectos que apresentou ao Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), pedindo apoio. Não o teve, mais uma vez. A última já foi depois de ter ganho o Grande Prémio do Cinéma du Réel; desceram-lhe a pontuação no currículo de realizadora. Quanto ao tema, o júri deixou em acta: "Regressa ao tema da resistência antifascista". Pois regressa, e tenciona continuar a regressar.
Nesta mesma semana em que "48" chega às salas, há uma exposição na antiga cadeia do Aljube, "A Voz das Vítimas", que se segue a uma série de colóquios sobre as prisões políticas. Parece haver uma conjuntura diferente da de há dois anos, quando "48" passou despercebido em Portugal. Pode ser culpa do FMI, dos Homens da Luta ou dos economistas. Mas a verdade é que a cineasta sente que há mais interesse em olhar para trás.
No nosso segundo encontro, Susana diz-me que ficou a pensar numa das perguntas, sobre a memória, a que não soube responder logo. Depois percebeu que, mais do que o infinito do arquivo, é a memória o seu grande tema. E o tema interessa-lhe porque a memória é uma matéria muito viva. Além de iluminar a "verdade no passado", permite "ver o que nos trouxe até aqui".