A Leste e a Sul redesenham-se as fronteiras. Pela força

No curto prazo, a Europa viu aquilo que já não via há muito tempo: a mudança das fronteiras estabelecidas depois da Guerra Fria através do recurso à força.

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A situação continua a ser volátil e perigosa, apesar de o novo Presidente ucraniano, Petro Poroshenko, que goza do apoio ocidental, estar a enfrentar a insurgência pró-russa com a única linguagem que o Presidente russo conhece: a da força. A sua responsabilidade é conseguir estabelecer uma plataforma de negociação com Moscovo, que permita travar uma escalada no conflito. Por enquanto, os europeus ainda não podem fazer aquilo que mais gostam: esquecer o problema. A crise ucraniana foi um novo aviso à Europa de que não pode, pura e simplesmente, ignorar o mundo que a rodeia e que ainda precisa muito da América para garantir a sua própria segurança. Europeus e americanos apostaram, compreensivelmente, numa Rússia “ocidental” e cooperativa. Saiu-lhes um resultado completamente diferente, cuidadosamente preparado por Putin e pela sua entourage, que escolheu a confrontação para reafirmar o estatuto de “grande potência” da Rússia. No longo prazo, ainda há razões para admitir que as coisas podem mudar. No curto prazo, a Europa viu aquilo que já não via há muito tempo: a mudança das fronteiras estabelecidas depois da Guerra Fria através do recurso à força.

2. Entretanto, uma nova zona de conflito que pode levar à desagregação do Iraque passou a concentrar todas as atenções. É imenso o que está em jogo em termos regionais. A facilidade com que um bando de fanáticos vestidos de negro consegue lançar o pânico e ganhar terreno contra o poder de Bagdad é assustadora. O movimento terrorista que resultou da fragmentação da Al Qaeda (e que se revela ainda mais extremista, se tal é possível) que tomou de assalto a segunda cidade iraquiana, Mossul, e que lança agora o terror no caminho para Bagdad, pode incendiar toda a região, caso não se encontre rapidamente uma forma de o conter. Tínhamos quase diariamente notícia de mais um atentado terrorista, com um balanço de vítimas verdadeiramente arrepiante. Mas habituámo-nos a olhar para essa mortandade como se fosse o estado natural das coisas. Agora acordamos para a dura realidade. O primeiro-ministro iraquiano Nouri Al-Maliki, apoiado pela maioria xiita que viveu esmagada durante o regime de Sadam, deu-se ao luxo de ignorar qualquer conselho para repartir o poder com as minorias sunita e curda. Quando os EUA negociaram a retirada das tropas, concluída há quase três anos, Al-Maliki mostrou-se intransigente perante todas as condições colocadas pelos EUA para preservar alguma estabilidade do país, incluindo a permanência de uma pequena força militar americana. De aliados, os americanos passaram a ser um incómodo para as aventuras sectárias do Governo de Bagdad. O mesmo Governo que não vê agora qualquer problema em apelar à ajuda americana par remediar os danos que ele próprio causou. O país está praticamente em estado de sítio. O Irão, que teme acima de tudo ver instalado em Bagdad um poder sunita radical, dispôs-se a ajudar, admitindo mesmo a cooperação com os americanos. O mesmo Irão que apoia a guerra de Bashar Al- Assad, contra os rebeldes sunitas e a população síria.

3. Não é fácil entender qual o destino deste complexo e sangrento xadrez político que hoje se joga no Grande Médio Oriente. A velocidade dos acontecimentos transportou-nos num ápice das Primaveras Árabes para as Primaveras da jihad. Mas há coisas que vale a pena ter em atenção. A primeira é perceber que a origem dos conflitos que hoje emergem claramente nesta região do mundo não resultam, como um dia muita gente acreditou, do confronto de civilizações distintas – a Ocidental e a Islâmica, na tese de Samuel Huntington que esteve algum tempo na moda a seguir ao 11 de Setembro. A grande fractura que alimenta uma luta sem tréguas pelo poder regional é entre as duas principais versões do Islão: xiitas e sunitas. De um lado, o Irão que foi o grande beneficiário regional da guerra do Iraque. Do outro, a Arábia Saudita, com a sua natureza dupla de aliado dos EUA e de financiador do terrorismo sunita. É isso que torna qualquer acção ocidental particularmente difícil. A desagregação do Iraque seria um problema para Teerão. A Turquia, com a sua ambição de potência regional, fica nervosa quando imagina as consequências de um Estado curdo no Iraque, que, inevitavelmente, se reflectiria na sua própria minoria curda. A Síria já deitou por terra a política turca de “zero conflitos ” com os seus vizinhos regionais. A Europa continua a não dar sinais de compreender o seu valor estratégico.

4. A segunda coisa, que é cada vez mais óbvia, é que tudo ainda depende da América, mesmo que a América não queira. O Presidente Obama, que não apoiou a guerra do Iraque enquanto senador (foi um dos poucos), comprometeu-se a acabar com ela e cumpriu. A “doutrina Obama” afasta-se radicalmente da “guerra preventiva” do seu antecessor. Insiste em que a diplomacia e a mobilização dos aliados devem ser as armas principais do poder americano e que o recurso à força só deve ser tomado como a última opção. O problema é que o mundo não lhe dá muito tempo para ensaiar as outras. O Iraque está prestes a tornar-se numa “guerra civil ” à qual a América não pode ficar indiferente. Obama já anunciou o óbvio: que não vai mandar tropas para o Iraque. Não excluiu, no entanto, a utilização de bombardeamentos cirúrgicos. Washington tentará, desta vez, que qualquer ajuda ao primeiro-ministro iraquiano terá de passar por uma série de condições. Nada disto é fácil. Também aqui assistimos à alteração de fronteiras, definidas a régua e esquadro pelas antigas potências coloniais, de acordo com os seus interesses. Mas tudo isto é um tremendo desafio à capacidade americana de continuar a liderar o mundo e, sobretudo, a mostrar que a América continua a ser um aliado fiável, credível, que não abandona os seus amigos mesmo que procure estender a mão aos inimigos, e que continua a ser e o único garante da segurança internacional. Ou, por outras palavras, que a alternativa ao seu poder não é (ainda) a China, mas o caos. O problema é saber se os Estados Unidos estão preparados para isso.

Obama anunciou o seu célebre pivô do Atlântico para o Pacífico, logo no início do seu mandato, apontando para o grande desafio estratégico que é a emergência da China. O seu problema é que ainda se vê obrigado a fazer pivô para muitos outros sítios do mundo, que exigem resposta imediata. No Grande Médio Oriente, na Europa, na contenção do jihadismo em África, da Nigéria ao Mali, passando pelo Sudão e pela Líbia. O Presidente americano precisa desesperadamente de aliados, que deveria encontrar facilmente na Europa, ela própria ameaçada pela turbulência crescente junto das suas fronteiras. E o que faz, entretanto, a Europa? Discute furiosamente, como se daí dependesse o futuro da humanidade, se Jean-Claude Juncker deve ou não deve ser o próximo Presidente da Comissão. “É preciso saber se a Europa quer a paz ou quer apenas que a deixem em paz”, disse uma vez o antigo Presidente Sarkozy. Sabemos qual seria a resposta de muitos governos. A questão é saber se isso é possível.

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