A "maior colecção" de gravuras de Rembrandt "não tem a mão de Rembrandt"
Estão em exposição em Águeda 14 gravuras de uma colecção de 282 do mestre holandês do século XVII. Serão mesmo gravuras ou apenas reproduções fotomecânicas dos originais? O PÚBLICO ouviu especialistas.
O museu da Fundação Dionísio Pinheiro e Alice Cardoso Pinheiro, instituição privada com apoios da Câmara Municipal de Águeda, possui uma colecção de 282 gravuras de Rembrandt, que Miguel Vieira Duque, conservador deste museu, afirma ser “a maior do género por ter mais peças do que a colecção do holandês Rijksmuseum, com 260, e do que a da Casa Museu Rembrandt, com cerca de 80”.
Chamou a esta exposição Gravuras de Rembrandt (1606-1669), o Aguafortista, na Colecção da Fundação Dionísio Pinheiro e Alice Cardoso Pinheiro e disse ao PÚBLICO que o seu objectivo com esta exposição é “criar interesse” em entidades e especialistas que possam vir a estudar esta colecção.
A sua intenção é que seja possível fazerem-se análises ao papel para que possa ser datado, e estudar-se cada uma das peças para que seja identificada a sua técnica de gravação. Apesar de não ter certezas quanto à técnica e data das peças — que situa entre os séculos XVII e o XIX — o conservador está convicto de que tem em sua posse gravuras e não reproduções obtidas através de qualquer processo fotográfico.
Maria José Goulão é hoje professora de História da Arte na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, mas em 1985, com 22 anos, foi a primeira conservadora deste museu de Águeda e afirma, que apesar de não ter acesso à colecção desde essa época, é “altamente improvável serem gravuras originais” de Rembrandt. “Aquilo de que podemos falar são de reproduções fotomecânicas, obtidas através do processo fotolitográfico, ou da técnica da heliogravura, ambas usadas em França no século XIX. A palavra reprodução diz tudo — estas peças não são da mão de Rembrandt”, diz Maria José Goulão ao PÚBLICO, acrescentando mesmo que esta colecção foi objecto de um artigo publicado pela sua sucessora na fundação, Madalena Cardoso da Costa.
No artigo publicado em Dezembro de 2007 na revista Munda - Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro a que o PÚBLICO teve acesso lê-se que um parecer do departamento de gravuras e fotografias da Biblioteca Nacional de França enviado a este museu indica que a “maior parte destas gravuras são reproduções de gravuras de Rembrandt feitas nos séculos XVII e XIX”. O artigo com o título A Colecção de gravuras de Rembrandt do Museu Fundação Dionísio Pinheiro diz ainda que muitos dos originais de onde foram reproduzidas as estampas da colecção estão naquela biblioteca francesa e que estas reproduções foram feitas na época por negociantes por meio de técnicas fotográficas.
A diferença entre gravuras originais e reproduções fotomecânicas está no seu método de reprodução. Toda a gravura é uma reprodução feita a partir de uma matriz, normalmente uma chapa metálica. Se a gravura é feita a partir da chapa metálica concebida pelas mãos do gravurista, neste caso Rembrandt, diz-se que é original, explica Alexandra Markl, conservadora de gravuras do Museu Nacional de Arte Antiga.
Esta conservadora teve acesso a cerca de três das peças de todo o conjunto desta colecção da Fundação Dionísio Pinheiro e, por isso, sublinha que a sua avaliação é superficial mas lembra que as chapas originais de Rembrandt estão “amplamente estudadas” e que esse estudo seria um bom ponto de partida para se avaliar esta colecção. Têm estas estampas exactamente as mesmas características das chapas originais, têm as mesmas dimensões?, questiona a especialista.
A reprodução fotomecânica não implica sequer o acesso a essa matriz, mas sim à gravura uma vez que é um processo fotográfico, continua a explicar Alexandra Markl. Pode ser feita através de heliografia ou de fotolitografia. Simplificando, explica por sua vez Maria José Goulão, é como se estivéssemos perante um fac-simile à gravura. E como o produto de uma reprodução fotomecânica não está alicerçado na matriz produzida pelo artista, o seu valor comercial desce significativamente. “Numa avaliação superficial, o conjunto da Fundação terá o valor de 8 500 a 9 mil euros. Se uma só das peças fosse uma gravura original, ela valeria mais do que esse valor”, explica Maria José Goulão.
A professora de História da Arte considera que este núcleo não deixa apesar disso de ter um valor histórico, estético e artístico importante até porque estas são reproduções de muito boa qualidade, diz. “O importante é recentrar o conjunto no contexto do século XIX porque todas as fontes apontam para esse período”, diz explicando que em França, nesta época, havia uma grande admiração por Rembrandt e uma grande procura comercial das suas gravuras. Estas eram apreciadas pela forma como captam o instante, importante para espírito impressionista que estava a desenvolver-se. Na mesma época, realizavam-se as experiências de Talbot e Niepce na área da fotografia que permitiram a produção de uma grande quantidade de heliogravuras. “Este conjunto não deve ser ignorado neste contexto”, acrescenta.
Também o historiador de arte Nuno Saldanha teve acesso, em 1994 a uma amostra deste espólio — cerca de 10 peças, disse ao PÚBLICO. Na altura estava a comissariar a Galeria de Pintura do Rei D. Luís no Palácio da Ajuda e decidiu não expor por não se tratar de uma colecção homogénia. Nuno Saldanha, hoje coordenador do curso de fotografia e cultura visual do IADE, percebeu na altura que não eram todas da mesma época e ficou com a impressão de que não se tratava de gravuras.
“Só uma peritagem aos exemplares, bem como a identificação dos impressores que os executaram podem permitir um cabal esclarecimento quanto à técnica exacta usada em cada estampa”, diz Maria José Goulão apontando a possibilidade do uso das diferentes técnicas de reprodução fotomecânica.