Arqueólogos identificam gaita-de-foles em candeia bracarense da época romana

Lucerna fabricada em Bracara Augusta mostra primeira representação conhecida de uma gaita de foles no mundo romano.

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A Lucerna fabricada em Bracara Augusta DR

A descoberta vai ser apresentada esta sexta-feira à tarde no colóquio Minho e Galiza: Confluências, a decorrer no Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa, em Braga, onde Maria José Sousa trabalha. Rui Morais é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Espécie de lamparinas em cerâmica, com um orifício para se deitar o azeite, as lucernas romanas eram muitas vezes decoradas no topo (ou no disco), com motivos muito diversificados. E às vezes, “ainda que raramente”, diz Rui Morais, “mostram representações de instrumentos musicais”.

É o caso desta lucerna bracarense, mas não se pode dizer que o facto salte propriamente à vista. E tanto não salta, que a candeia está há anos no Museu D. Diogo de Sousa, e até aparece referida em trabalhos académicos – um deles do próprio Rui Morais –, sem que até agora alguém tivesse reparado que a figura masculina está a tocar uma gaita-de-foles.  

Para se fazer uma descoberta arqueológica relevante, nem sempre é preciso escavar. É verdade que alguém o terá feito para descobrir esta lucerna, que apareceu numa necrópole de Braga, mas o mérito destes dois investigadores foi terem olhado mais atentamente para uma peça que já estava musealizada e estudada.

E não olharam por acaso: há já algum tempo que ambos se vêm dedicando a um campo muito pouco explorado em Portugal: o da arqueologia musical. E foi nessa perspectiva que começaram a reanalisar diversos materiais que têm vindo a ser descobertos em Braga desde os anos 70, e que incluem, por exemplo, campainhas, címbalos, assobios, espanta-espíritos, uma trompa em cerâmica e artefactos com representações de instrumentos musicais.

O mais interessante de todos é justamente esta lucerna, porque não se conheciam até hoje quaisquer representações de gaitas-de-foles datadas da época romana – embora existam alusões literárias ao instrumento em textos de vários autores do período –, e porque o facto de aparecer na faixa atlântica da Península Ibérica “sugere que as tradições associadas ao instrumento podem ter ido daqui para as ilhas da Grã-Bretanha e da Irlanda”, argumenta Rui Morais. Uma tese, acrescenta, que já Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990), um dos grandes pioneiros dos estudos etnográficos portugueses, tinha considerado verosímil.

Pensa-se hoje que a gaita-de-foles terá surgido no Egipto por volta de 2500 a.C. E chegaram até nós algumas raríssimas representações produzidas em contexto helenístico, no final do século I a.C. Mas nenhuma do mundo romano, embora vários autores do período refiram o instrumento, que em latim se chamava utricularius.

Uma passagem do historiador romano Suetónio refere uma circunstância em que Nero se comprometeu a celebrar uma vitória com “um espectáculo de órgão hidráulico, flauta, e gaita-de-foles”, um passo que Morais considera especialmente significativo, já que demonstra que os dois instrumentos representados na lucerna bracarense eram tocados em uníssono, o que à partida não seria óbvio, dadas as características mais populares da gaita. Já o órgão hidráulico, geralmente utilizado em anfiteatros, era um instrumento de tubos de grandes dimensões, que funcionava com água e era movido a pedais.

A identificação do desenho da lucerna é literalmente mérito de ambos os investigadores, já que Rui Morais reconheceu o órgão hidráulico (chegou a pensar-se que seria um tear) e Maria José Sousa percebeu que estava a ver uma gaita-de-foles, com o seu odre, o seu tubo melódico, e ainda um segundo tubo, dito “insuflador” ou “ronca”. O conjunto, nota Morais, pretende dar uma sugestão erótica, com “a figura feminina a olhar para trás, para a figura masculina que a persegue”.

O arqueólogo reconhece que a representação “é fruste”, como seria de esperar de uma lucerna de produção local (ostenta na base a marca do respectivo oleiro), mas ainda assim suficientemente nítida para que a identificação dos dois instrumentos possa ser convincentemente sustentada.

Desde que fizeram este achado, os dois investigadores têm vindo a procurar outras lucernas romanas com motivos semelhantes na bibliografia da especialidade. E já encontraram cinco, todas de modelo idêntico e com um desenho semelhante ao que ornamenta a de Braga. Duas apareceram em Sevilha, uma em Cádis, e há ainda duas outras referenciadas no Catálogo do Gabinete de Numismática e Antiguidades da Biblioteca Nacional (BN), organizado por Jorge de Alarcão e Manuela Delgado em 1969. Ao descrever o desenho, o catálogo da BN refere apenas uma “figura com os braços estendidos para um objecto de difícil interpretação”. Ou seja, nota Morais, não só não foi então identificado o órgão hidráulico, como se ignorou a figura masculina.

O facto de os desenhos destas seis lucernas serem virtualmente idênticos sugere que teriam como base uma ilustração que terá circulado nesta região peninsular durante o período romano. O que, nota Maria José Sousa, também indica que a cena representada seria reconhecível na época.

Não menos interessante é a circunstância de não ter aparecido nenhuma representação romana da gaita-de-foles noutras regiões. O que não demonstra que o instrumento tenha ido do ocidente peninsular para a Irlanda e a Grã-Bretanha, mas só o facto de o poder indiciar já é delicado.

Basta pensar, lembra Rui Morais, que se conhecem vários casos de fabrico, em Inglaterra, de contrafacções aparentemente destinadas a oferecer à tradição local da gaita-de-foles uma antiguidade prestigiante. Uma das mais célebres é uma estatueta em bronze de um soldado romano a tocar uma gaita-de-foles, descoberta em Richborough (Kent), que se verificou datar, afinal, do século XVII.

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