Umas eleições para entronizar, de novo, um militar no Egipto

Parece que o círculo das revoltas árabes se fecha e que a desilusão substitui o sonho. Mas na montanha russa dos últimos três anos e meio nada é assim tão simples.

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84% dos eleitores disseram à empresa independente egípcia Instituto Baseera que vão votar em Abdel Fatah al-Sissi nestas eleições DR
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Morsi sabia que o regime não tinha desaparecido. E alguns erros foram apenas tentativas de sobrevivência DR
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Hamdeen Sabahi é verdadeiramente um rival ou apenas a marioneta escolhida para manter a aparência de umas eleições disputadas? DR
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MARWAN NAAMANI/AFP

Ao boicote apelaram os que hoje falam em nome da Irmandade Muçulmana e parte dos jovens responsáveis pelo desencadear da revolução de Janeiro de 2011. Sissi, que quando derrubou Mohamed Morsi prometeu que os militares voltariam aos quartéis num mês e jurou não querer ser Presidente, será em breve entronizado como senhor do Egipto.

Os resultados dos eleitores que vivem no estrangeiro já são conhecidos: 94,5% votaram em Sissi.

Oficialmente, Sissi já não é marechal, teve de deixar a farda para se candidatar à presidência. Na campanha vestiu fato. Mas Sissi, que liderou o golpe que derrubou Mohamed Morsi a 3 de Julho do ano passado, é o candidato dos militares (como foram todos os líderes egípcios antes de Morsi). Desde então, tem sido o líder à frente de um Governo transitório de fachada. Desde então, tem feito tudo o que se esperaria que um chefe militar fizesse: destruiu adversários, proibiu manifestações e ajudou a organizar o crescimento do domínio dos militares na economia – áreas como a energia, o imobiliário ou a água engarrafada estão sob o seu controlo.

Ao derrube do islamista Morsi, primeiro Presidente eleito democraticamente no Egipto, seguiram-se “dez meses de violações grosseiras dos direitos humanos”, diz a Amnistia Internacional num relatório onde se enumeram “níveis sem precedentes de abusos”, “tortura sob detenção”, “crescentes restrições às liberdades de expressão e associação, “justiça selectiva e julgamentos injustos”, “nova legislação que dá às autoridades poder para cometer abusos”, “discriminação e violência contra cristãos coptas”, “abusos contra refugiados e migrantes”, “desalojamentos forçados”… O Egipto, conclui a organização, “vai provavelmente continuar a enfrentar uma espiral de crescimento de abusos de direitos humanos depois das eleições”.

Sissi não falou destes problemas durante a campanha. Quando falou, sempre pouco e na televisão, foi para repetir a promessa de “limpar” o país de terroristas e fazer desaparecer para sempre a Irmandade Muçulmana, entretanto ilegalizada e considerada uma “organização terrorista”. Têm rebentado bombas, muitas até, do Sinai, onde sempre houve grupo de jihadistas a operar, às ruas do Cairo. Mas o regime nunca apresentou provas da ligação entre estes crimes e a Irmandade.

Sissi não apareceu num único comício da sua campanha milionária. “O marechal não vem por causa de razões de segurança”, repetiram os apoiantes às perguntas dos jornalistas.

O marechal não aparece em público e isso reforça a sua narrativa: ele é o salvador, salvou os egípcios da Irmandade e vai salvá-los do terrorismo que estes praticam ou instigam. Logo nos primeiros dias pós-golpe, mandou atacar protestos onde morreram 1400 pessoas. E aos poucos, foi subindo ao pedestal onde os árabes se acostumaram a ver os seus líderes que só a morte derrubava.

“Estas eleições são uma lição objectiva sobre como organizar uma eleição fraudulenta mantendo a fachada de que tudo é livre e justo. O principal candidato e os seus apoiantes agiram depressa – meses antes – para afastar os principais rivais da corrida e arrancar pela raiz quaisquer vozes dissidentes”, resume Neil Hicks, da ONG Human Rights First, num artigo publicado pelo Huffington Post.

Nicks recorda que há menos de dois anos o Egipto foi cenários das eleições mais contestadas da sua História. Até segunda volta foi preciso. Morsi venceu com 51,7% contra o ex-general e antigo ministro de Hosni Mubarak, Ahmed Shafiq. Democracia não são só eleições livres mas estas costumam ser um bom passo na direcção certa.

Um rival?
Sissi não concorre sozinho, estas eleições não são um referendo como os do tempo de Mubarak, mesmo se no fim, contados os boletins, o resultado possa fazer corar de vergonha o antigo ditador.

Sissi tem um único adversário, o nacionalista de esquerda Hamdeen Sabahi, que arrancou um inesperado terceiro lugar nas presidenciais de 2012. Sabahi apoiou o golpe contra Morsi e a violenta repressão que se seguiu contra a Irmandade – mais tarde disse que a operação para varrer uma concentração anti-Mors, que deixou 800 mortos, “violou os critérios dos direitos humanos”. Sabahi acusa Sissi de ter na sua campanha “fiéis de Mubarak”, o que é verdade, e promete cumprir os sonhos de Janeiro de 2011: pão, liberdade e justiça social.

O problema de Sabahi, entre outros, é que as suas hipóteses são tão curtas – Sissi conta com todo o aparelho de Estado, todos os grandes empresários, quase todos os media, os salafistas (radicais islamistas que apoiaram o golpe e jogam no apoio a Sissi a sua sobrevivência), coptas… – que alguns se interrogam se é verdadeiramente um rival do marechal ou apenas a marioneta escolhida para manter a aparência de umas eleições disputadas (muitos dos que poderiam votar nele acusam-no de legitimar um processo ilegítimo).

Extraordinário, seja como for, é que tenha decidido candidatar-se, num contexto em que todos os outros potenciais candidatos desistiram por não acreditarem numa eleição genuína

Sabahi tem outros problemas: enuncia propostas mas é muito vago quando se trata de as explicar ou dizer como pretende realizá-las no estado desastroso da economia egípcia. Também tem vantagens, principalmente o seu passado de jornalista crítico e activista político que lhe valeram 17 detenções, oito passagens pela prisão e a experiência da tortura.

Uma oportunidade
Sissi vai vencer estas eleições e com grandes probabilidades esmagar Sabahi. Os egípcios, muitos egípcios, dos que só vêem as televisões que vendem Sissi como salvador aos que lêem os (cada vez menos) jornais independentes, vão dar-lhe uma oportunidade. Mas na montanha russa egípcia dos últimos três anos isso não significa que tudo esteja igual no reino dos faraós.

Uma sondagem divulgada o mês passado pelo Centro de Investigação Pew revela que só 54% dos egípcios apoia o golpe contra Morsi, com 43% a dizer-se contra o derrube do ex-Presidente. Tão ou mais significativo: 54% diz ter uma opinião favorável de Sissi, enquanto 42% afirma o mesmo em relação a Morsi. A Irmandade, com quase todos os seus líderes presos, condenados à morte, escondidos ou exilados no Qatar, descrita como uma criação monstruosa nos media mainstream, ainda é vista de forma positiva por quatro egípcios em cada dez.

Talvez estes números se expliquem, pelo menos em parte, com um resultado de outra sondagem, esta feita o ano passado pelo Centro para a Investigação da Opinião Pública Baseera: 83% dos inquiridos acredita que os egípcios não têm medo do Estado. A sondagem pré-eleitoral realizada pela mesma organização independente egípcia mostra que 84% pensa votar no marechal Sissi.

O académico e editor do Daily Star libanês, Rami Khouri, prefere centrar-se na sondagem de 2013 e conclui que o que esta nos diz é que a maioria dos egípcios “atingiu um nível de consciência de poder e participação sem precedentes na História árabe moderna”. Sissi pode ser coroado daqui a poucos dias, mas isso não significa que o Egipto lhe pertença – mesmo que o marechal ainda não o saiba.

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