Maioria dos bombeiros enfrenta incêndios sem equipamento de protecção adequado
A aquisição de novos equipamentos, lançada através de concurso público no ano passado e este ano, não vai chegar a tempo da pior época dos fogos florestais.
Na sequência deste episódio, a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) publicou, em Abril passado, uma nova norma que obriga ao uso de equipamentos de protecção individual de maior qualidade. As novas especificações determinam o uso de materiais muito menos inflamáveis e de botas mais resistentes. Mas este ano a maioria dos bombeiros portugueses ainda vai enfrentar as chamas com equipamentos que não cumprem as recentes exigências.
António Calinas, vice-presidente da Associação Portuguesa dos Bombeiros Voluntários, descreve a actual situação da protecção individual dos bombeiros nacionais: “Falta de equipamentos de protecção dos bombeiros e falta de uniformidade e critérios [nos programas de aquisição de equipamentos].”
Também Jaime Marta Soares, presidente da Liga de Bombeiros Portugueses (LBP), confirma que, em termos gerais, os bombeiros nacionais estão desprovidos de equipamentos de protecção individual certificados de acordo com as normas europeias e portuguesas. Marta Soares diz que esta situação se deve ao atraso nos concursos públicos lançados no ano passado pelas comunidades intermunicipais (CIM).
Neste ponto, Jaime Marta Soares e o presidente da Federação dos Bombeiros do Distrito de Viseu, Joaquim Marinho, adversário na corrida à presidência da liga, estão de acordo. Joaquim Marinho afirmou que os concursos lançados pelas CIM “não correram bem e estão muito atrasados”. O dirigente de Viseu explica que os equipamentos que os bombeiros têm adquirido não obedecem a “normas rigorosas e imperativas” e, como tal, “não protegem devidamente os bombeiros”.
Testemunha disso mesmo é o comandante dos voluntários de Carregal do Sal, Miguel Ângelo, que perdeu no ano passado dois dos oito bombeiros mortos no combate aos fogos. Ao PÚBLICO explica que, geralmente, as fardas dos bombeiros são 100% algodão, “tal como qualquer roupa convencional”. Isso acontece, diz, porque até à data dos novos concursos públicos, lançados em 2013 e 2014, a aquisição de equipamentos “era deixada ao livre arbítrio de cada corporação”.
Este ano, a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) decidiu intervir: publicou uma nova ficha técnica (a n.º 10) relativa aos equipamentos de protecção individual, com especificações mais precisas e exigentes sobre a qualidade do equipamento. Cabe agora à ANPC fiscalizar o cumprimento das novas regras. A par disso e face aos múltiplos problemas nos concursos promovidos pelas CIM, o Ministério da Administração Interna (MAI) decidiu centralizar na ANPC o segundo concurso público para aquisição de equipamentos.
Equipamentos do passado
A ANPC admite as disparidades na qualidade dos equipamentos usados pelos bombeiros e justifica-as com o facto de as associações humanitárias de bombeiros voluntários e as câmaras municipais terem “autonomia jurídica e financeira que lhes permite adquirir o equipamento necessário aos seus corpos de bombeiros”. No entanto – refere a ANPC numa resposta enviada por email ao PÚBLICO –, com o desfecho da época de incêndios do ano passado foi “considerado imprescindível e assumido pela tutela política a necessidade de investimento na melhoria do equipamento de protecção individual adequado de combate aos incêndios florestais, carência notada em todos os corpos de bombeiros do país”.
A liga e a Associação Portuguesa dos Bombeiros Voluntários (APBV) consideram a norma fundamental, mas atrasada. Neste Verão, os equipamentos da maioria dos bombeiros serão mais uma vez os do passado, não certificados de acordo com a nova norma e pouco protectores.
Um dos criadores de um inovador equipamento de protecção individual, João Sousa, explicou ao PÚBLICO que a maioria das fardas usadas pelos bombeiros custa cerca de 50 euros e são inflamáveis, pelo que os bombeiros não usufruem da devida protecção. A própria ANPC reconhece que “até muito recentemente os corpos de bombeiros não dispunham ainda de equipamentos de protecção individual para o combate aos incêndios florestais, sendo utilizada a farda de trabalho em tecido de algodão”.
Jaime Marta Soares está inconformado com a situação que considera “inaceitável”. António Calinas também. “Trabalhamos a favor do Estado e da sociedade civil e queríamos o mínimo de condições de trabalho”, sublinha o vice-presidente da APBV.
Concursos estão “uma trapalhada”
"Uma trapalhada." É assim que o presidente da Federação dos Bombeiros do Distrito de Viseu, Joaquim Marinho, descreve o processo de aquisição de novos equipamentos de protecção, concursos lançados no ano passado pela maioria das 23 comunidades intermunicipais (CIM) existentes no país. Apenas pouco mais de metade – 13 – chegou ao fim, estando ainda por entregar a maioria dos fatos.
“O Estado só se tem preocupado com a segurança individual dos bombeiros nos últimos anos”, lamenta Joaquim Marinho. Em Março de 2013, o MAI lançou uma linha de financiamento para a aquisição de equipamento de protecção dos bombeiros, uma compra que teria por base concursos que ficaram a cargo das CIM. Os sete milhões de euros disponibilizados tinham como objectivo equipar 50% do quadro activo dos bombeiros. Este ano já foi lançado um outro processo de aquisição, desta vez centralizado na Autoridade Nacional de Protecção Civil, no mesmo valor, para adquirir a outra metade.
Apesar de já ter passado mais de um ano sobre os primeiros concursos, são poucas as corporações de bombeiros que receberam esse apoio. De acordo com a ANPC, 13 das 23 comunidades intermunicipais que já concluíram o concurso devem receber os equipamentos até Julho deste ano. Contudo, o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, Jaime Marta Soares, sustenta que esses equipamentos já deviam ter sido todos entregues até dia 15 de Maio, mas “por burocracia ou distracção, até hoje, pouquíssimas corporações os receberam”.
O PÚBLICO falou com a corporação de bombeiros de Lagoa, uma das primeiras a receber os equipamentos. “Nos últimos três ou quatro meses temos recebido o material. Não vem todo junto”, explica o comandante, Victor Rio. O dirigente acrescenta que os equipamentos de protecção individual que receberam são melhores do que os que tinham, mas não estão de acordo com a nova ficha técnica.
Muitas corporações não vão contar com estes equipamentos, já que há dez comunidades intermunicipais que ainda estão a concluir os concursos, devendo os equipamentos chegar só a tempo do Verão de 2015.
Situação previsível
O presidente da liga diz que esta situação era previsível e que “as comunidades intermunicipais não deram conta do recado”. A LBP, a Associação Portuguesa de Bombeiros Voluntários e a Associação Nacional de Bombeiros Profissionais tinham alertado para a incapacidade destas comunidades. “Mas não ouviram as associações que estão no terreno”, lamenta António Calinas, vice-presidente da associação que representa os voluntários. E acrescenta: “Os concursos não singraram e desbaratou-se dinheiro público, que foi para os fornecedores [dos equipamentos] ganharem… não os bombeiros, que continuam desprotegidos.”
De acordo com Joaquim Marinho, candidato à presidência da liga, o facto de os processos estarem centrados nas comunidades intermunicipais dificultou o concurso e resultou “numa confusão muito grande”. O mesmo é repetido por diversos comandantes de bombeiros que o PÚBLICO contactou. É o caso do comandante dos Bombeiros Voluntários de Paredes, José Morais, que defende que os processos de aquisição de equipamentos não deveriam ter sido conduzidos pelas comunidades intermunicipais, um modelo imposto pelo MAI.
Perante o insucesso do programa, a 3 de Abril deste ano, o Conselho de Ministros anunciou a abertura de um novo concurso público, desta vez centralizado na ANPC, no valor de sete milhões de euros. No início de Julho deverão ser abertas as propostas dos candidatos, mas o equipamento só estará disponível no Verão de 2015.
As associações e os bombeiros acreditam que, com o novo concurso, o processo será mais célere e uniforme. Jaime Marta Soares crê que “o equipamento do novo concurso público, centrado na ANPC, deve chegar mais depressa do que o concurso anterior”.