Nos e os Mão Morta
As reacções à campanha publicitária da Nos e ao videoclip dos Mão Morta são reflectores e catalisadores do antagonismo social que se vive.
Mas para além de se terem tornado nas últimas horas motivo para todos os falatórios, também partilham o contexto tóxico actual.
Há uns anos, quase de certeza, que nem a campanha de publicidade da Nos, nem o videoclip (Horas de matar) dos Mão Morta causariam o mesmo impacto. Mas ambos acabam por ser reflectores e ao mesmo tempo catalisadores do antagonismo social que se vive.
As redes sociais reagiram mal à campanha da nova empresa. Critica-se o símbolo, elaboram-se conjecturas sobre o acento ou não no nome, mas o motivo da irritação é claramente muito mais profundo e inconsciente. E nitidamente a Nos não o antecipou.
A Nos não parece ter previsto que a angústia em que a maioria dos seus clientes vive conduzisse a uma reacção epidérmica perante uma campanha esmagadora, que está presente em todo o lado, e que custou certamente milhões.
Num momento de míngua, reagimos mecanicamente aos que têm apenas mais um papo-seco do que nós, quanto mais a uma campanha que nos entra pelos olhos dentro e que pode ser encarada por muitos como desnecessariamente opulenta.
Pior. A Nos não parece ter tido a sensibilidade para perceber que a filosofia que estava a tentar comunicar (a ideia de que vivemos num momento histórico de interdependência) não é apenas aplicável à tecnologia, é-o também para um contexto socioeconómico em que terá de existir maior redistribuição equitativa (de capital, de saber, de poder) porque estamos todos no mesmo barco.
Resultado? Em grande medida, uma campanha que pode produzir o efeito contrário ao que pretendia suscitar, acabando por dividir em vez de aproximar, experienciada como existindo um Eles, vivendo na sua bolha, indiferentes a Nós.
Pode ser uma forma simplista de ver a realidade. Mas não existem muitos cinzentos hoje em dia. Preto ou branco. O videoclip dos Mão Morta acaba por ser isso também. Não é do ponto de vista estético nada de novo. Em vez de complexificar, simplifica.
Mas num contexto artístico português que não tem revelado grande imaginação na forma como tem tentado interagir com o real – não é só a democracia que pode ser reinventada, as formas de protesto também –, acaba por funcionar, pelo efeito de choque.
Opera como válvula de escape para quem tem vindo a acumular zanga, sem saber o que lhe fazer, porque à sua volta não vislumbra mecanismos institucionais democráticos onde deposite as suas esperanças.
Neste contexto, ganha ressonância, funciona como arma de arremesso. O videoclip é uma ficção, claro. Sobre isso não existem quaisquer dúvidas. Não creio sequer que os Mão Morta tenham ilusões de intervenção no real. A sua linguagem é totalmente artística.
Mas o contexto que estamos a viver é bem real. A violência provém daí. E ao mínimo detonador, reagimos.