O Coração da Cidade continua a pulsar mas já não o faz todos os dias
A associação existe há 18 anos. No primeiro dia, uma sopa, na primeira semana cerca de 100 e hoje estão inscritas mais de 500 famílias. Mas os problemas avolumam-se.
São já algumas as dezenas de pessoas que estão em frente à porta da instituição. Não podem entrar todos de uma vez. Primeiro recebem uma senha, entram, depois um cartão numerado e esperam que um dos voluntários os chame. Já lá dentro, cerca de 20 pessoas aguardam, sentadas no amplo hall do espaço. Algumas conversam, outras apenas fixam o olhar, mas sempre concentradas na voz do senhor Zeferino, à espera que chame por eles.
Há pessoas de todas as idades, mulheres e homens, de várias nacionalidades. Ao início, a associação era conhecida na cidade por ajudar sem-abrigos, hoje a pobreza mudou de rosto. Maria está sentada aguardando a sua vez. No carrinho de bebé, o neto. Maria tem 41 anos, quatro filhos e quatro netos. Há dez anos que fugiu de casa, a meio da noite, apenas com a roupa do corpo e com três dos filhos pela mão. Sofria de violência doméstica infligida pelo marido e pelo filho mais velho e só há 15 dias é que saíram os papéis do divórcio. Maria recebe apenas 206 euros por mês, o que é pouco para sustentar dois filhos, Miguel e Letícia e o neto, de dois anos. Recorreu à associação porque precisava realmente de ajuda. “Eu não tinha maneira de sustentar o meu neto e tive de pedir ajuda. Vim pedir ajuda pelos três. Mesmo antes, só podia vir três dias por semana porque é cansativo para o menino”, explica. É sobretudo pelo neto que vem, o único que faz todas as refeições. Maria só come à noite, o que houver. “Eu tomo um café durante o dia e à noite janto com os meus filhos, saladas, arroz, o que houver. Se eu um dia como um pão lembro-me que está a fazer falta aos meus filhos”, conta.
Ana [nome fictício] é ucraniana e está há cinco anos em Portugal. Já esteve inscrita no Coração da Cidade, mas como arranjou trabalho numa fábrica de produtos alimentares na Maia, deixou de ter direito a recolher alimentos. Mas voltou a estar desempregada. “Não tenho dinheiro para comprar comida. Tenho um filho e só o meu marido é que trabalha, mas recebe 500 euros”, lamenta. Se antes vinha todos os dias, agora vai começar apenas a vir os três dias que o Coração da Cidade está aberto. Leva de tudo um pouco, mas são o pão, a carne e os iogurtes para o filho que mais lhe enche o cabaz.
Dando uma mão aqui e ali, está a presidente do Coração da Cidade, La Salete Piedade Santos. O que começou por alimentar apenas um sem-abrigo em 1996, rapidamente se tornou numa associação conhecida na cidade, que hoje presta auxílio a 587 famílias. A associação não recebe qualquer apoio financeiro por parte do Estado. Quem trabalha todos os dias para colocar na mesa das famílias mais desfavorecidas algo para comer são os mais de 250 voluntários da instituição. Percorrem o espaço, identificados com batas e t-shirts verdes. Sempre de sorriso na cara.
A instituição recolhe os alimentos nas grandes superfícies alimentares e entrega-os aos mais desfavorecidos. La Salete explica que é uma optimização de recursos, uma vez que aproveita o que, noutra altura, seria deitado fora por já não apresentar valor comercial. Apesar de serem mais de 100 as toneladas fornecidas por mês aos que mais precisam e das empresas comerciais estarem mais sensibilizadas para a questão da fome, são cada vez mais os que procuram ajuda e não há recursos que cheguem. Então La Salete foi forçada a alterar a estratégia do programa Mesa Farta. Se até agora, diariamente era possível recolher alimentos, a partir de dia 12 de Maio, o programa estará apenas disponível três vezes por semana.
Ainda assim, a maior dificuldade da associação, de acordo com a presidente é a atitude do Governo, que não tem “capacidade e honestidade” de ver o trabalho que é necessário fazer. “Num estado de direito, nós somos cidadãos de pleno direito, temos de esperar do Estado o mínimo de aconchego: na habitação, na saúde, na educação. E não há isso, o país está a passar fome”, critica.
Ainda que a empresa passe por algumas dificuldades, o objectivo foi sempre adaptar os serviços às necessidades que iam surgindo, aos pedidos de ajuda e procurar soluções. La Salete reforça que, apesar das dificuldades, não desiste da instituição porque vale sempre a pena ajudar. O objectivo é ter instalações maiores e evitar que as pessoas façam filas lá fora. “Eu não queria que as pessoas denunciassem o seu estado de pobreza, para que não se sentissem tão mal. Esse é o meu anseio de instituição. Só assim é que vejo uma instituição humanizada”, clarifica.
Quem acompanha os utentes à zona dos alimentos é o senhor Zeferino. O voluntário associou-se ao Coração porque precisava de ajuda, mas cedo percebeu que todo o trabalho era pouco e portanto ofereceu-se para ajudar. “É duplamente positivo: recebo e dou.” Zeferino Teixeira faz parte do programa VER (Vidas em Risco) da associação, que consiste em prestar algumas horas de voluntariado por semana, em troca de um cabaz de alimentos. Actualmente já 130 famílias fazem parte do programa VER.
Na zona de alimentação, um supermercado encenado. Até os produtos estarem em exposição, os voluntários tratam de receber os alimentos das carrinhas de distribuição, separá-los e organizá-los, de forma a poupar recursos. Se um queijo vier inteiro, é partido em quatro e já dá para mais famílias. Depois são expostos.
Uma vez que a associação vai passar a estar aberto menos vezes por semana, os utentes podem levar mais alimentos de cada vez que lá vão. Assim, pegam num carrinho e seleccionem os alimentos conforme os pontos que eles valem. Valem mais ou menos pontos, de acordo com o que há no dia. Maria José Lagarto é voluntária há um ano e também ela faz parte do programa VER. Ajuda os utentes a escolherem os alimentos. Era empresária, mas a empresa entrou em insolvência e ela precisava de alimentar o filho. Foi pedir ajuda, ao início um pouco a medo, mas acabou por ficar. “É uma associação que proporciona aqui às pessoas aquilo que elas necessitam e por outro lado porque necessidade de realização pessoal. É muito gratificante”.
Texto editado por Ana Fernandes