Quando uma nova cara ajuda a uma nova vida

Nove anos depois do primeiro transplante facial, parte dos receios iniciais sobre esta técnica médica foram ultrapassados. Um artigo de revisão avalia 28 transplantes e os resultados são positivos.

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O norte-americano Richard Norris antes e depois da operação feita em Março de 2012 DR
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O crânio de Richard Norris ante e depois do transplante DR
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A francesa Isabelle Dinoire foi a primeira pessoa no mundo a receber um transplante de cara, em Novembro de 2005. Nestas fotografias aparece alguns meses depois da operação e, depois, passado um ano Denis Charlet/AFP (arquivo)

"As pessoas que se voluntariam para este procedimento fazem-no por razões de saúde sérias ou por razões psicológicas”, diz Eduardo Rodriguez, cirurgião plástico do Centro Médico de Langone da Universidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. O médico é autor sénior do artigo na revista The Lancet e coordenou em 2012 uma equipa no Centro Médico da Universidade de Maryland, em Baltimore, que fez o transplante de rosto mais extenso até à data. A operação foi feita a Richard Norris, um homem de 37 anos que nos 15 anos anteriores esteve recluso em casa dos pais e só saía com uma máscara.

“As pessoas que querem fazer esta operação estão muito motivadas. Sem a opção do transplante facial, muitas destas pessoas estariam em sério  riscos de entrar em depressão profunda e até de suicídio”, refere Eduardo Rodriguez, num comunicado do Centro Médico de Langone.

A argumentação deste médico na defesa da técnica pode parecer desnecessária. Mas há razões para pôr na balança os perigos e os benefícios de um transplante facial. A cara é importante para a fisiologia e a capacidade sensorial: é pelas estruturas que existem na cara que comemos, que respiramos, que vemos, ouvimos e cheiramos. Além de ser também fundamental para a identidade, já que o rosto ajuda a definir cada pessoa.

No entanto, quem faz um transplante de cara, tal como um transplante de um órgão, terá obrigatoriamente de receber para o resto da vida medicamentos que enfraquecem o sistema imunitário. Os tecidos transplantados, como são provenientes de outra pessoa, são reconhecidos como estranhos pelo sistema imunitário do receptor. Caso deixe de tomar os medicamentos imunossupressores, o doente arrisca-se a que o seu sistema imunitário ataque o transplante. Além de uma rejeição dos tecidos, a pessoa pode ter infecções e morrer, como aconteceu a uma das 28 pessoas incluídas na análise feita no artigo.

Ao contrário de um transplante de coração ou de outro órgão vital, em que os médicos estão perante uma situação de vida ou de morte, no caso do transplante de rosto os doentes não se encontram numa situação de risco de vida iminente.

É por todos estes riscos que uma das principais conclusões no artigo de Eduardo Rodriguez é a importância e o cuidado a ter na selecção das pessoas que serão submetidas a esta operação.

Recuperar os sentidos
“O melhor candidato é: aquele que compreende completamente as implicações da imunossupressão para o resto da vida e do seu grande risco de morbidez, incluindo infecções, cancro, rejeição do enxerto e a morte; que está motivado e cumprirá a reabilitação pós-operatória intensa e os tratamentos a nível psicológico e de imunossupressão; e que tem um forte sistema de apoio social que o ajudará a lidar com muitos desafios, como a exposição à comunicação social, a adaptação à sua imagem corporal e a integração social”, resume o artigo, que resulta de um ano de trabalho em que os autores reviram artigos médicos e notícias sobre estes transplantes, além de entrevistarem outros cirurgiões que fizeram as 28 cirurgias.

Isabelle Dinoire, que tinha 38 anos quando foi operada, fez um transplante parcial na região da boca, do queixo, das bochechas e do nariz. Após uma semana “muito perturbadora”, a francesa tinha tomado uma grande dose de soporíferos. Quando acordou e tentou levar um cigarro à boca, percebeu que não conseguia fazer com que os lábios segurassem o cigarro. Viu depois uma poça de sangue no chão e só quando se olhou ao espelho é que percebeu que estava desfigurada, apesar de naquele momento não ter dores. O seu cão labrador tinha-a mordido na cara.

Segundo os autores do artigo, a francesa passou a sentir toques leves na cara ao fim de 14 semanas da operação. Após seis meses, sentia diferenças de temperatura e conseguiu fechar os lábios. Passado um ano, já era capaz de contrair os músculos do queixo e do nariz, e ano e meio depois, conseguia esboçar um sorriso simétrico com a sua nova boca.

Esta evolução mostra o corpo de Isabelle Dinoire a integrar o novo tecido, a recuperar os nervos que controlam os músculos faciais e a ganhar as funções. Depois da operação, muitos doentes voltaram a poder comer e beber sozinhos, falar de uma forma mais compreensível, cheirar, sorrir e piscar os olhos. Muitas depressões foram ultrapassadas e quatro transplantados voltaram a trabalhar ou à escola para estudar.

Todos os doentes tiveram pelo menos um episódio agudo de rejeição do transplante durante o primeiro ano, que foi controlado com imunossupressores. Os investigadores defendem que, como o transplante é na cara, logo é visível e os médicos conseguem detectar inicialmente estas rejeições e tratá-las imediatamente.

Três dos 28 transplantados acabaram por morrer, mas apenas o caso já mencionado foi devido ao transplante facial: a pessoa deixou de tomar os imunossupressores e preferiu outro tipo de medicinas, pelo que o corpo rejeitou o transplante, surgiram infecções e o resultado foi a morte.

Um dos receios iniciais por parte dos médicos era o desenvolvimento de problemas psicológicos, devido ao facto de os pacientes se verem, de repente, com a cara de outra pessoa. Ainda que não tenham uma cara igual à que tinham antes, os transplantados também não ficaram a parecer-se com os dadores de cara, segundo as famílias e as equipas médicas, porque o transplante é aplicado na estrutura óssea do doente. “Agora tenho uma cara como qualquer outra pessoa”, disse Isabelle Dinoire em Fevereiro de 2006. “Espero que o sucesso desta operação ajude outros como eu a voltar a viver.”

Dos 28 casos (o último referido no artigo foi operado em Julho de 2013), dez foram desfigurados por balas, oito por queimaduras, três por animais, três devido à doença neurofibromatose e outros quatro por outros motivos. As operações foram realizadas em França, na China, nos Estados Unidos, na Espanha, Bélgica, Turquia e Polónia. Onze das 28 operações foram transplantes totais da cara, como o caso de Richard Norris, em que parte da mandíbula e do maxilar também foram transplantados.

Este norte-americano, que perdeu parte da cara em 1997, é um dos casos em que o desfiguramento foi provocado por uma bala. Além do nariz e dos dentes, perdeu parte da língua. O transplante, em Março de 2012, demorou 36 horas e incluiu todos os tecidos moles, desde o escalpe até ao pescoço. Quando abriu os olhos e olhou para um espelho, Richard Norris abraçou Eduardo Rodriguez.

“Temos a capacidade médica para restituir a vida destas pessoas”, diz o cirurgião. “Como algumas pertencem à polícia ou a serviços militares, pode argumentar-se que temos o imperativo moral de as tratar e trazer de volta para a sociedade.” No entanto, o custo mínimo destas operações é de 300 mil dólares (218 mil euros). Além disso, devido ao tratamento continuado, é preciso incluir ainda o custo dos medicamentos imunossupressores.

Aos médicos e investigadores, resta-lhes continuar a aperfeiçoar as técnicas para este tipo de transplante. “Estamos ainda nos primeiros dias do transplante facial”, defende Eduardo Rodriguez. “Enquanto os nossos doentes precisarem, o nosso dever é avançar com a ciência e a medicina.”

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