Carrilhões de Mafra candidatos a prémio europeu de sítios em risco
Serão conhecidos nesta segunda-feira os sete monumentos que vão ter uma ajuda da associação Europa Nostra para fazer obras de recuperação.
Actualmente em risco, constam a par com o Paço de Vilar de Perdizes da lista de 11 monumentos pré-seleccionados para o programa “Os sete sítios mais em risco”, da Europa Nostra, uma associação pan-europeia de defesa do património.Na segunda-feira, são conhecidos, durante o Congresso Europeu do Património, em Viena, os sete que terão financiamento de 10 mil euros, sendo que este reconhecimento facilita o estabelecimento de toda uma rede de contactos.
Qualquer pessoa que visite o Palácio Nacional de Mafra não fica indiferente à imponência das duas grandes torres que comportam os dois carrilhões. Na torre Sul encontra-se o carrilhão feito em Antuérpia, originário das oficinas Witlockx, a última geração de construtores de carrilhão da Europa. Já na torre Norte, contamos com o carrilhão da fundição Levache, feito em Liège.
Mas é ao conhecer todo o sistema e a observá-los mais de perto que concordamos com o cónego Assunção Velho, que já no século XVIII dizia que os carrilhões constituem um património que “quanto mais se examina, mais se admira”. Hoje, os carrilhões contam com 102 sinos, todos eles com motivos orientais e mitológicos inscritos. A servir de suporte, um vigamento original de madeira do Brasil.
A boa ideia de D. João V é mais perceptível ainda ao entrar nas salas onde estão guardados os sinos antigos fora de uso, mas ao mesmo tempo conservados e guardados. Sinos e outras peças que noutros tempos constituíram todo o complexo sineiro do palácio. Ou mesmo ao subir umas escadas em caracol, apertadas e escuras onde quase temos de adivinhar os degraus para poder estar numa das torres a contemplar os sinos, uns pequeninos, outros muito maiores do que nós e que fazem concorrência à beleza da paisagem.
Prova da grandiosidade de todo este sistema são também os dois autómatos, que com os seus cinco metros fazem-nos sentir pequeninos e deixam-nos de boca aberta com tamanha engenhosidade. Estes autómatos são uma espécie de caixa de música gigante, “o computador da época, do princípio do século XVIII”, que faz com que os carrilhões produzam melódicos sons automaticamente, explica-nos João Soeiro de Carvalho, coordenador de um estudo de três anos feito aos carrilhões que se iniciou em 2010 e levado a cabo pelo departamento de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. São os “maiores autómatos conhecidos a nível mundial”.
O investigador refere que estamos perante um complexo que tem uma dimensão importantíssima a nível mundial e chega a comparar os dois carrilhões de Mafra ao Big Ben de Londres: “Há dois sinos que têm menos 12 cm que o Big Ben. O Big Ben é visitado, tem toda aquela cultura popular construída em seu torno, toda a gente o conhece. Nós temos aqui dois e ninguém sabe.” Soeiro de Carvalho considera que há todo um património em Mafra que não está a ser aproveitado. “Não está a servir o nosso país, a nossa sociedade, a nossa cultura, a nossa educação”, uma vez que desde 2004 os carrilhões passaram a estar inactivos.
Os concertos de carrilhão ao domingo à tarde eram um atractivo para um público numeroso e também internacional. Mas num deles, em 2004, a estrutura de madeira que suporta os carrilhões cedeu, obrigando à interrupção desse espectáculo e ao cancelamento dos seguintes. Até hoje, os carrilhões estão escorados por uma estrutura metálica, que impede os sinos de cair, “porque há estruturas e vigas de madeira que estão completamente apodrecidas”, explica o director do palácio.
Os registos das várias intervenções em séculos passados mostram que este problema não é recente, é cíclico e que se deve essencialmente aos “ventos marítimos”, dada a proximidade com a costa, explica Mário Pereira. Esses ventos consomem não apenas as madeiras — o que está mais em risco —, mas também materiais como o bronze, o ferro ou o cobre, constituintes dos sinos.
Um som com 300 anos
João Soeiro de Carvalho avançou algumas das conclusões do estudo que coordenou no palácio e que podem ser um contributo para o restauro dos carrilhões. “Temos um testemunho histórico da primeira metade do século XVIII praticamente intacto”, o que faz com que seja possível ouvir nos carrilhões o som que se ouvia há 300 anos. Porque os gostos musicais foram mudando ao longo dos séculos: “Por exemplo, a escala que nós ouvimos quando tocamos um teclado de um piano não é a mesma que ouvíamos há 300 anos num teclado”. Por isso, vai-se adaptando todos os instrumentos musicais, mas sempre que se faz isso está-se a destruir um património e “a perder a memória de como o som se ouvia antes”.
É esta particularidade “única” que torna os carrilhões de Mafra mais especiais: ao longo de três séculos, apenas um foi transformado, o carrilhão sul, por ter “provavelmente um som mais bonito”. Já o carrilhão norte nunca foi mexido: “Está como soava há cerca de trezentos anos atrás. Nenhum outro carrilhão que nós conhecemos tem esta história.” Por isso, devia haver dois modelos de restauro diferentes, um com uma afinação e mecanismos mais modernos e outro para o carrilhão norte. No segundo regressava-se ao século XVII, “ao mesmo som, os mesmos mecanismos, tudo como exactamente aconteceu há cerca de três séculos”.
“Nenhum de nós gosta de trazer na lapela um monumento como sendo um daqueles que corre maior risco”, diz o director do Palácio de Mafra, quando questionado sobre as expectativas de os carrilhões serem seleccionados para o programa da Europa Nostra, mas considera que esta pode ser “uma via para a sua preservação”. Acha importante “ver isso numa perspectiva positiva”.
O director do palácio não acha que este problema de conservação possa colocar em risco a candidatura à UNESCO que pretende eleger o Palácio Nacional de Mafra como Património da Humanidade em 2017. Destaca a relevância deste ano, em que o palácio vai comemorar o seu terceiro centenário, sendo importante que se inicie “todo um conjunto de programas e projectos que culminem em 2017”. Nessa altura, o monumento deve estar “salvaguardado e valorizado”, sendo a intervenção nos carrilhões “vital para isso”.
O secretário de Estado da Cultura anunciou no Parlamento em Março que estavam assegurados dois milhões de euros para o restauro, mas que seria “preciso ainda mais dinheiro”.
Editado por Isabel Salema