Assembleias do MFA: dez meses de contradições e rupturas a caminho da democracia

As reuniões plenárias do Verão Quente, quando Portugal esteve à beira do confronto, recordadadas por alguns dos seus protagonistas.

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Vasco Gonçalves (aqui em 2002, com Vasco Lourenço) foi primeiro-ministro com o apoio do MFA Luís Ramos/Arquivo

Ameaçaram, ponderaram, insultaram, reconciliaram-se, estiveram à beira da agressão e tiveram gestos de paz. Não há rasto das gravações das reuniões plenárias do Verão Quente, quando Portugal esteve à beira do confronto. Este é o relato do que aconteceu, recordado por alguns dos seus protagonistas.

A partir daí foram meses de intensos debates, cenários de contradições impensáveis e os seus resultados eram fruto de conjunturas tão voláteis como incertas. Dez meses quentes, com o Verão escaldante pelo meio. Discutia-se tudo: do mais provável, o que implicava estudo e ponderação, ao imediato, no sabor do oportunismo das emoções. Afinal, eram um dos retratos dos militares chegados ao labirinto da política. Foram dez meses de contradições e rupturas a caminho da democracia.

“O MFA decidiu não assumir o poder, foi a Junta de Salvação Nacional/JSN (generais António de Spínola, Costa Gomes e Manuel Diogo Neto, o brigadeiro Silvino Silvério Marques, o coronel Galvão de Melo, o capitão-de-mar-e-guerra Pinheiro de Azevedo, e o capitão de fragata Rosa Coutinho) que dava as orientações ao Governo, depois seriam as eleições, a constituição da Assembleia Constituinte, o regime sempre seria civil, não militar”, afirma o almirante Martins Guerreiro: “Se tivéssemos um projecto de poder, os partidos não conseguiriam influenciar o MFA, e todos os partidos jogaram nisso.”

Foi este o organigrama pensado, montado e apresentado, pela primeira vez aos portugueses, em directo e pela televisão na noite de 25 de Abril. Contudo, não passava de uma imagem de superfície. “O fundamental era a luta da comissão coordenadora do MFA com Spínola, que começou logo na noite de 25 de Abril de 1974”, constata a historiadora Maria Inácia Rezolla: “Vasco Gonçalves avançaria para primeiro-ministro com o consenso da Comissão Coordenadora do MFA, o objectivo era lutar contra António de Spínola.”

Ao presidir à JSN, Spínola era Presidente da República. Não existia sintonia de posições entre o autor de Portugal e o Futuro e o movimento dos capitães. Só em 27 de Julho, o general do monóculo reconhece o direito à independência das ex-colónias, levando ao início de rondas negociais com os movimentos de libertação. Mas, já antes, quando a euforia da liberdade enchia as ruas, foram detectados sinais de desentendimento.

A saída tardia dos presos políticos dos fortes de Caxias e Peniche, apenas a 26 e 27 de Abril, após a tentativa de uma primeira “triagem” que pretendia separar os detidos acusados de “crimes de consciência” dos de acções armadas, foi um sintoma. Outros problemas, mais discretos, mas não menos intensos, passaram a existir nos corredores do novo poder.

Foi o que aconteceu quando Spínola apresentou uma proposta de aumento de poderes para o primeiro-ministro, então Adelino da Palma Carlos, um referendo em 3 de Outubro e a eleição, naquela data, para a Presidência da República e eleições para a Assembleia Constituinte até 30 de Novembro de 1976. O que motivou uma oposição entre o MFA e o executivo, que levaria à saída de Palma Carlos e, em solidariedade, de Francisco Sá Carneiro, Vieira de Almeida, Firmino Miguel e Magalhães Mota.

A queda do I Governo provisório, que levou a primeiro-ministro Vasco Gonçalves, também foi fruto desta pressão. A fixação do salário mínimo nacional em 3300$00, a 27 de Maio, bem como o clima político-social, com a erupção de um vasto surto grevista nos mais diversos sectores, fragilizara a acção governativa. Palma Carlos considerava já não ter condições para ser primeiro-ministro.

“O executivo não conseguia resolver os problemas, aparecia um militar e a situação de conflito social resolvia-se”, recorda Martins Guerreiro: “O MFA é chamado a assumir funções de governo, mas não tem um projecto, mas sim legitimidade e aceitação junto da população.” É o que o militar sintetiza numa comparação com os políticos: “Nós não conhecíamos as malandrices e as jogadas do poder, tínhamos pensamentos éticos.”

A "maioria silenciosa" versus MFA
A situação social degrada-se. Em 20 de Julho, o Banco Mundial recusa a Portugal um empréstimo de 400 milhões de contos, chamando a atenção para a frente económica. Em manifestações e greves conquistavam-se, nas ruas, direitos. Se os tempos políticos tinham sinal de urgência e eram marcados pela convulsão, sucessivos apelos do Presidente da República levam à formulação da “maioria silenciosa” que, pela voz de Spínola, se contrapunha às exigências ruidosas da rua.

Não é por acaso que a 22 de Setembro de 1974 é criado o Conselho dos Vinte, como Conselho Superior do MFA. No novo órgão têm assento militares da Comissão Coordenadora (Melo Antunes, Vasco Gonçalves, Vítor Alves, Vítor Crespo, Almada Contreiras, Pereira Pinto e, mais tarde, Franco Charais, Vasco Lourenço, Pinto Soares, Canto e Castro e Miguel Judas), da JSN e os que estão em actividades governativas. Esta reestruturação criou, também, a Assembleia do MFA e os Conselhos de todos os ramos.

Seis dias depois, a 28, numa tourada à portuguesa no Campo Pequeno, a “maioria silenciosa” apupa Vasco Gonçalves e, através dele, os militares do MFA. E aplaude e saúda os propósitos de Spínola. Mas o general falha. “O meu sentido de lealdade inibe-me de trair o povo a que pertenço e para o qual, sob a bandeira de uma falsa liberdade, estão preparando novas formas de escravidão”. É desta forma apocalíptica que, a 30 de Setembro, perante o Conselho de Estado, António de Spínola renuncia ao cargo de Presidente. É substituído por Costa Gomes.

“Depois do 28 de Setembro, os militares percebem que o MFA tinha de se institucionalizar e ganhar um lugar no aparelho de Estado”, sintetiza Inácia Rezolla. Uma institucionalização a vários andamentos e consecutivos passos. Depois do Conselho dos Vinte é criada como órgão consultivo a Assembleia dos 200 e, mais tarde, o Conselho da Revolução (CR) em substituição da Junta de Salvação Nacional.

A primeira assembleia
Assim estruturado, havia que dar resposta aos problemas. Melo Antunes trabalhara com Rui Vilar, Silva Lopes, Lurdes Pintasilgo e Vítor Constâncio num plano económico de emergência. Na reunião dos 200, em 28 de Dezembro de 1974, no então Instituto de Sociologia Militar, hoje Instituto de Defesa Nacional, na Calçada das Necessidades, decorreu a primeira reunião institucional. No entanto, seria dias mais tarde, na Assembleia do MFA de 4 de Janeiro de 1975, que a questão revelou a primeira fractura.

“Não consegue ultrapassar os reflexos de uma formação militarista, nem as inconsequências derivadas da classe a que pertence, fixando-se num socialismo utopista.” Foi desta forma que Vasco Gonçalves criticou o labor de Melo Antunes. O plano económico era epitetado de demasiado social-democrata. “Atacavam-se uns aos outros, eram ataques permanentes”, recorda o general Loureiro dos Santos, secretário das Assembleias do MFA de Dezembro de 1974 ao 11 de Março de 1975: “Havia uma radicalização em curso, e o Melo Antunes estava a tentar moderar a situação, era o chefe de fila dos moderados”, analisa.

No modus operandi dos militares do Movimento aparece um facto novo, começa a ser perceptível o início de uma ruptura. O que não deixa de surpreender: “Havia a preocupação permanente de negociação entre os militares, os laços dos militares davam para tudo, mesmo que pensassem de forma diferente, como aconteceu comigo e com o Otelo”, exemplifica Loureiro dos Santos.

11 de Março radicaliza posições
Eram já sinais de outros tempos, mas o plano Melo Antunes acabou por ser aprovado na Assembleia de 4 de Março. Dias depois, a história acelerava. O golpe do 11 de Março, tal como já acontecera com o 28 de Setembro, radicalizou posições. O bombardeamento do quartel do Ralis por aviões da Força Aérea, o cerco de tropas pára-quedistas e a morte do soldado Luís deixaram marcas.

“Na noite do 11 de Março, numa Assembleia dita selvagem, na qual os participantes não eram todos os que até então estavam presentes, com soldados do Ralis armados com G3 dentro da sala, havia um ambiente emocional muito carregado”, reconhece o coronel Vasco Lourenço: “Há quem defenda, malta do Ralis, fuzilamentos; Varela Gomes não defendeu os fuzilamentos, ao contrário do que correu, foi uma injustiça que lhe fizeram.”

Loureiro dos Santos relembra: “Havia gente que entrava e saía de camuflado e armada, era uma grande bagunça. Quem agarrou naquilo foi Costa Gomes.” Em ambiente quente, o Presidente da República reitera que as eleições vão decorrer no prazo previsto no Programa do MFA – 25 de Abril de 1975 -, numa assembleia que, de madrugada, aprova as nacionalizações da banca e incentiva a reforma agrária.

“O plano Melo Antunes era correcto, mas o 11 de Março levou a radicalizações”, pondera Martins Guerreiro: “Os da extrema-esquerda, que eram poucos mas com muita influência mediática, também tiveram o seu protagonismo.”

Horas depois desta assembleia, multiplicam-se as movimentações. “A 12 de Março decorreu uma Assembleia mais pequena convocada ad hoc pela 5.ª Divisão só do Exército para decidir quem iam ser os conselheiros do ramo no Conselho da Revolução (CR, criado na véspera em substituição da Junta de Salvação Nacional)”, relata Vasco Lourenço: “Apareci lá, vetei todos os nomes, menos o do Salgueiro Maia, tive uma discussão muito dura com o Varela Gomes, estivemos à beira do confronto físico, mas aquela Assembleia acabou por dar os poderes de decisão à Comissão Coordenadora.”

No pós-11 de Março, passaram a coexistir o CR com as Assembleias do MFA, estas sem poder decisório. “A articulação não era fácil, mas ia-se fazendo”, analisa Martins Guerreiro: “As maiorias das assembleias e do CR eram coerentes, mas por vezes aprovávamos documentos contraditórios.” Um exemplo de uma peculiar geometria variável de maiorias: “No Conselho da Revolução aprovámos um relatório de Vasco Gonçalves, o plano de Melo Antunes e o plano de acção política, de convergência entre várias sensibilidades, que eram contraditórios.”

Pacto MFA/partidos garantiu eleições
Os temas em debate nas assembleias são de amplo espectro. Em 7 de Abril de 1975 é aprovado o Tribunal Militar Revolucionário para o julgamento dos implicados no 11 de Março (que nunca chegou a funcionar), é abordada a acção governativa e é lançado o 1.º pacto MFA/Partidos. Garantindo a celebração de eleições em 25 de Abril para a Assembleia Constituinte, reservava ao MFA a direcção do processo revolucionário para impedir que os partidos, ao redigirem a Constituição, fizessem retroceder “o processo socializante em que avança a nossa sociedade”. Os civilistas temeram o pior.

“O pacto foi dominado pelos gonçalvistas, todos os partidos se agarram ao pacto e assinaram-no devido à conjuntura”, admite Vasco Lourenço: “O pacto era leonino, a escolha do Presidente da República era feita por colégio eleitoral na qual a Assembleia do MFA participava como uma das partes.” A promessa de cumprimento do calendário eleitoral, mais uma vez por Costa Gomes, foi o “copo meio cheio” para os partidos. Aliás, em 1976, o pacto viria a ser alterado.

A Assembleia de 19 de Maio, no Alfeite, já depois das eleições para a Constituinte, é exemplo eloquente da relação dos militares com os políticos em vésperas do Verão Quente e esboço do que viria a ser o PREC [Processo Revolucionário Em Curso]. Na análise dos resultados eleitorais é referido que “estão enquadrados no processo revolucionário e não podem ser interpretados fora dele”, mas alerta-se para os perigos de os sobrevalorizar.

Ao PS é prognosticada uma estratégia anti-PCP e referida a possibilidade de entendimento com o PSD nas autarquias e sindicatos, enquanto o partido formado por Sá Carneiro aparece a reboque das iniciativas dos socialistas. Já aos comunistas é atribuída uma crescente influência sindical, nas autarquias e meios de comunicação, e reservados ataques à cúpula do PS. Os maus resultados do MDP/CDE são apontados como fruto da excessiva identidade de posições com o PCP.

O discurso dos militares falava de um país em via socializante o que, para Martins Guerreiro, favoreceu os votos no PS.

Mais tarde, aparece o sinal inequívoco da desconfiança de sectores militares com os partidos: a ligação directa entre os militares e as populações através da Aliança Povo/MFA. “Foi aprovada na generalidade, nunca na especialidade, na prática não foi para a frente, era a solução do “poder popular” da democracia directa sem a representativa”, analisa Vasco Lourenço: “Foi aprovada com o meu voto contra e sete abstenções.”

Após a primeira ida às urnas em liberdade depois de 48 anos de ditadura, o escrutínio não é apenas relativizado, mas aparece como vigiado. “Após as eleições da Constituinte vive-se uma dupla legitimidade”, anota a historiadora Maria Inácia Rezolla. A das urnas pela eleição dos deputados constituintes; a revolucionária reclamada nas assembleias do MFA por sectores militares em oposição ao CR.

Verão quente em crescendo
Estava-se em crescendo. Na Assembleia Extraordinária de 26 de Maio, em pleno caso República e Renascença (com a ocupação daqueles órgãos de comunicação, o primeiro ligado ao PS, o segundo propriedade da Igreja Católica), é proposta a prisão de Mário Soares e Francisco Salgado Zenha. Costa Gomes adverte para o perigo de se cair numa ditadura. “Vetei a prisão fosse de quem fosse”, afirma Vasco Lourenço. “A partir de Maio de 1975 não podemos falar já de militares, começam as divisões, uns a estar contra os outros”, destaca Inácia Rezolla.

Em 11 de Junho, em Monsanto, a formação dos Conselhos Revolucionários dos Trabalhadores, Soldados e Marinheiros, está em agenda. Não é uma assembleia clássica: de carácter esquerdista, participam civis. Mas não passa à história.

Também o documento-guia da institucionalização da Aliança Povo/MFA suscitava desconfianças no PCP. O secretário-geral, Álvaro Cunhal, via “a influência do radicalismo pequeno-burguês” no cenário de organizações unitárias e de base com carácter autónomo e não partidário: “É um programa de interferência dirigista no movimento operário e militar.”

Aumenta a contestação a Vasco Gonçalves entre os seus pares. Em Mafra, a 23 de Julho, numa reunião de delegados do MFA da arma de Infantaria, Vasco Lourenço não vê problemas na substituição do primeiro-ministro. Na Assembleia de 25 de Julho, dos moderados só comparece Vasco Lourenço. Os outros tinham enviado cartas ao Presidente da República a explicar as razões da ausência.

“Fomos informados que o PAP de Melo Antunes, aprovado por unanimidade no CR, ia ser posto em causa por Varela Gomes e Vasco Gonçalves. Fui para pegar o touro pelos cornos”, justifica Vasco Lourenço. Costa Gomes enaltece a Assembleia Constituinte (que reuniu pela primeira vez em 2 de Junho), como o primeiro acto cívico depois do 25 de Abril e recomenda que aquele órgão não seja atacado. Na sua intervenção, Vasco Gonçalves aponta um dilema: “O nosso inimigo actual é o capitalismo, a social-democracia, nas nossas condições, é transição para o fascismo”.

Vasco Lourenço recorda: “A mesma Assembleia que apoiou Costa Gomes aplaude Vasco Gonçalves. Pergunto como é possível apoiar posições opostas.” Surge a proposta de directório e mais uma brecha nos militares. “Um grupo tinha estado a trabalhar no âmbito do CR – Presidente da República (Costa Gomes), primeiro-ministro (Vasco Gonçalves) e chefe do COPCON (Otelo Saraiva de Carvalho), e Vasco Gonçalves transforma-o num directório”, relata.

“Foi a Assembleia mais dura, chamei traidor a Vasco Gonçalves, ainda tenho na memória a imagem de um sargento fuzileiro, que fazia três de mim, aos saltos e a mandar-me calar. Disse-lhe que ou se calava ou enfiava-lhe o microfone pela boca abaixo”, recorda. “Na minha última intervenção disse que se aquilo continuasse, abandonava a assembleia, anunciando que não acatava as decisões. Costa Gomes pediu para eu não sair, pediu-me como favor pessoal, continuei presente mas disse que não acatava as decisões”, relata.

O directório foi aprovado, mas como a Assembleia não tinha poderes, a decisão passou para o CR. “Anunciei o meu veto”, lembra Vasco Lourenço. A única decisão do directório foi a expulsão do denominado Grupo dos Nove, liderado por Melo Antunes, cujo documento fora divulgado no Jornal Novo a 8 de Agosto. Era o apogeu do Verão Quente.

Na Escola Prática de Engenharia de Tancos, a 5 de Setembro, é o epílogo. Na assembleia de delegados do Exército há um duro confronto. “Vasco Gonçalves tem uma intervenção acalorada, Melo Antunes desmonta-a e, em seguida, eu desmonto os argumentos dos gonçalvistas”, sintetiza Vasco Lourenço. A composição dos membros do Exército no CR é revista. Saem Vasco Gonçalves e a maioria dos que lhe são afectos: Eurico Corvacho, Ramiro Correia, Pereira Pinto, Costa Martins, Graça Cunha, Ferreira de Sousa, Ferreira Macedo e Miguel Judas. Abandona, também, Vítor Alves. Os gonçalvistas perdem nove conselheiros contra um do Grupo dos Nove.

A Assembleia Extraordinária do MFA de Tancos consagra estas alterações. “Foi a assembleia mais decisiva”, reconhece Vasco Lourenço. “Os gonçalvistas, apesar de não estarem organizados estruturalmente, perdem o controlo do Conselho da Revolução”, admite Martins Guerreiro. Depois de muita chama, as assembleias extinguiram-se, consumidas pelo tempo. Como a cera das velas.

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