Nos poemas de "vgm" moviam-se figuras e a essas figuras aconteciam coisas
A dimensão narrativa, a par de uma crescente intromissão do autobiográfico, marcaria até ao final a poesia de Vasco Graça Moura.
De todos esses Graça Mouras, o único que me atreveria a comentar é o poeta, e mesmo assim com o embaraço de suspeitar de que possa gostar da sua poesia (e não há dúvida de que gosto muito) por razões, digamos assim, erradas. Decerto que admiro o seu conhecimento profundo de múltiplas tradições literárias, ou a qualidade da sua prosódia, ou a espontaneidade com que usa, nos seus poemas e nas suas traduções, um vocabulário cuja amplitude é possivelmente única em autores da sua geração (e nem vale a pena falar das seguintes). E aprecio outras qualidades e recursos seus que o conceito de técnica talvez possa ainda abarcar. É um pouco a brincar que falo de “razões erradas”, uma maneira de dizer que não sou, por norma, muito sensível ao conseguimento formal, e tendo até a resistir ao que me pareça excessivamente polido e acabado.
Não seria portanto de esperar que gostasse tanto de um poeta que se farta de explicar, nos seus próprios poemas, que deve tudo ao trabalho e à técnica. Mas a técnica, nesta poesia, nunca serve o mero ornamento. E é também possível que Graça Moura seja, afinal, um poeta mais inspirado do que ele próprio gostaria de admitir. Ou que a sua oficina – hipótese igualmente plausível – seja tão boa que me convence disso mesmo.
Mantenho a questão em suspenso e limito-me a pedir-lhes a paciência de me acompanharem numa rápida e despretensiosa deambulação pela poesia de Graça Moura, durante a qual não resistirei a ir deixando esboçada uma espécie de pequena antologia informal, assinalando aqui e ali poemas de que gosto particularmente.
Infelizmente, com o tempo de que disponho, não conseguirei atravessar de lés-a-lés o vasto continente da sua obra poética e terei de me deter a meio do caminho, acrescentando apenas um breve relance do que me faltaria percorrer.
Começando pelo princípio, isto é, por Modo Mudando, publicado em 1963, quando Vasco Graça Moura tinha 20 anos, trata-se de um livro em que podem encontrar-se vestígios de várias das principais correntes da poesia portuguesa da época, como é natural num livro de estreia. O autor cuja voz está mais presente é provavelmente Alexandre O’Neill, cujo surrealismo mitigado e bem-humorado o autor ainda hoje possivelmente apreciará, mas que não deixa de ser uma predilecção curiosa naquele que virá a ser porventura o nosso poeta actual menos nostálgico das vanguardas modernistas do século XX. Em particular o surrealismo, com o seu imperativo de sair da literatura, não podia estar mais distante de um poeta como Graça Moura, que, pelo contrário, sempre se mostrou empenhado em levar para dentro dela tudo quanto pudesse.
E note-se desde já que este e outros títulos de Graça Moura estiveram esgotados durante décadas, até serem recuperados em antologias e compilações, já nos anos 90, de modo que boa parte dos leitores da geração a seguir à minha, e mesmo da minha, só os leu tardiamente. Foi o que sucedeu com Semana Inglesa (1965), um livro já mais próximo de algum Graça Moura posterior, e no qual se começa a sentir essa sua visão do massificado mundo ocidental de hoje como uma trapalhada desagradável, uma coisa um bocadinho disgusting, sem ordem, sem equilíbrio, sem sentido das proporções, sem hierarquias. Um olhar que irá depois sistematizar-se naquele que, para mim, é um dos grandes poemas de Vasco Graça Moura, a escola de frankfurt, segunda parte do livro A Variação dos Semestres Deste Ano; 365 Versos seguido de A Escola de Frankfurt, de 1981. Não vejo praticamente nada, na poesia portuguesa da época, que se assemelhe a este retrato impiedoso do relativismo cultural que marcava (e marca) um presente a que então se começava a chamar pós-modernidade.
“a dois mil anos da morte de virgílio/ em frankfurt chove a cântaros. no hotel mudo de roupa/ e de exausta impaciência. o goethe está no bar/ a fazer play-back do sinatra enquanto os prósperos/ comerciantes se esfregam nas locais.(…)”
E mais adiante:
“(…) não há no entanto a mínima diferença/ entre um poema bom e um de refugo; / nem mesmo há versos bons e outros maus (…)”
E só mais uma citação:
“(…) a rainha cristina vai de moto,/ o príncipe valente compra serigrafias da pietà,/ luta yvonne blaise salvando um livro a nada,/ e tudo é igual a tudo (…)”
Mas note-se que este olhar crítico sobre a feira contemporânea das artes e das letras, em que tudo se equivale, não parte, como noutros poetas da sua geração, da defesa de um projecto de modernidade cujas potencialidades não estariam ainda esgotadas. Vasco Graça Moura aprendeu decerto muito com muitos poetas modernos – incluindo o nosso Cesário Verde –, mas os seus verdadeiros mestres são bastante anteriores a Baudelaire. E é talvez por isso que nunca deixo de sentir na sua poesia, por muito melancólica, irónica e auto-irónica que seja, por muitos traços pós-modernos que lhe possam com razão ser apontados, uma espécie de boa consciência, até oficinal, que soa estranhamente anterior a estes já longos tempos de diagnosticado declínio da aura do poeta. Suspeito mesmo de que essa espécie de refrescante anacronismo é uma das razões pelas quais a aprecio.
O poema longo
Ao traçar paralelos entre Semana Inglesa e este livro de 1981, saltei por cima de uma série de títulos. Não falarei de todos, mas O Mês de Dezembro e Outros Poemas (1977), o seu primeiro livro com distribuição comercial propriamente dita, publicado pela Inova, é uma etapa importante, na qual comparecem muitas das características e processos que a poesia de Graça Moura manterá até hoje: a recuperação da sextina e de outros metros clássicos, que já vinha do livro anterior, justamente intitulado Quatro Sextinas (1973), envios a poetas e obras do passado, diálogos com a música e com a pintura, um tom elegíaco e outonal. Um dos pontos altos é, para mim, a extensa elegia de ecos camonianos que, com os seus 250 versos, prenuncia também a centralidade que irá ter nesta obra a difícil e hoje muito pouco praticada arte do poema longo.
O que ainda faltava em O Mês de Dezembro e Outros Poemas para acabar de compor o retrato de Graça Moura, do “vgm” que hoje conhecemos – uma intromissão mais frequente e declarada da pequena circunstância, uma ironia menos exasperada, ou o aparecimento desse protagonista blasé que ousa substituir o sagrado “tu” poético por um escandaloso “você” –, não tardará a chegar.
Talvez carta à mulher amada sobre a morte de vitorino nemésio, de Sequências Regulares (1978), possa ser considerado o poema de transição para esse Graça Moura que será dominante a partir de meados dos anos 80. O poema parte da circunstância declarada logo de início: “quando ontem recebi o seu recado/ comi uma laranja em memória do nemésio (…)”. Mas depois a evocação do poeta entrelaça-se com a relação que mantém com a mulher amada do título (a quem trata, como se viu, por “você”), a já citada laranja adquire dimensões horacianas, relatam-se conversas privadas – algo muito típico e muito exclusivo da poesia de Graça Moura –, alternam-se eruditas tiradas em latim com expressões tão coloquiais como “arrastar a asa”, e tudo isto, toda esta vertiginosa sucessão de registos discursivos, vai sendo dada em oitavas, e com uma fluidez tão natural e descontraída que impressiona até mesmo o leitor menos sensível às proezas oficinais. Ou então, e essa é uma terceira hipótese que não me tinha ocorrido no início, talvez eu próprio seja, afinal, um leitor mais sensível à oficina do que gostaria de admitir.
Esse tratamento por “você” inaugurado em Sequências Regulares adequa-se bem ao tom elegantemente desprendido que marcará muita da posterior poesia de Graça Moura. E será talvez por razões simétricas que o poeta o irá dispensar, recuperando o “tu”, em Nó Cego, o Regresso (1982), um dilacerado poema de amor em 24 sonetos sem métrica fixa, que sempre me pareceu constituir uma pequena anomalia no percurso desta escrita tão cerebral e tão irónica.
Como livro, julgo que é caso único, mas encontro algo de semelhante, momentos em que o controladíssimo logos da poesia de VGM parece abrandar e deixar passar coisas mais instintivas, menos racionalizadas, em alguns poemas soltos: lembro-me, por exemplo, do poema vésperas, de A Furiosa Paixão pelo Tangível (1987), onde um homem visita uma mulher que se encontra nos cuidados intensivos, um homem cuja voz (e isto é bastante significativo), o poeta, ou o sujeito poético, tem dificuldade em reconhecer como sua. E explica porquê:
“(…) porque eu procuro outros andamentos do mundo,/ outros nós na garganta, mais pensados a frio, outras intensidades/ sacudidas, mais distantes da emoção imediata, e nunca mais diria palavras tão obscuras (…)”
Ainda antes de Nó Cego, o Regresso, Graça Moura publicara Instrumentos para a Melancolia (1980), um volume com características um tanto experimentais e uma prosódia mais áspera do que o habitual, e do qual ele próprio depois dirá ter sido o livro em que encontrou definitivamente a sua voz própria. E em meados dessa década saíram, com um ano de intervalo, dois títulos de que gosto particularmente: Os Rostos Comunicantes (1984) e A Sombra das Figuras (1985).
O primeiro inclui alguns dos meus poemas preferidos de Graça Moura, como picasso visto do porto, que começa, digamos assim, no seu quarto, onde a musa se vai despindo: “(…)o movimento do colar faz-me lembrar baudelaire/ mas você cita t. s. eliot e outros cerebrais/ e a sua roupa esvoaça em mariposas lânguidas/ e rimos a camisas despregadas (…)”. Ou o extraordinário ofício de morrer, sobre a morte de Cesare Pavese, que é outro desses tais poemas que, sem deixarem de ser imediatamente reconhecíveis como poemas de Graça Moura, me provocam uma espécie de sensação de estranheza difícil de definir e justificar. Ou ainda a breve canção autobiográfica, de reverberações camonianas, que termina com estes três versos: “canção, canção que nunca acabarias/ de te escrever, vaivém das/ tantas coisas”.
Já A Sombra das Figuras, que até nem será dos seus títulos mais citados, não tem um poema a que se possa chamar menor, e o que abre o livro, metamorfose para 23 versos, que começa a descrever uma estufa de plantas para terminar com a constatação de que “a escrita é uma orla inquieta das coisas/ uma sombra das figuras”, é francamente extraordinário. Mas também o é praias, com o seu segundo andamento ostensivamente cesariano – “(…) tudo isto dava uma fotografia/ com o teu peito em grande plano/ e a cena reflectida nos óculos escuros (…)”–, ou o revelador nota sobre um autor, ou ainda, para citar só mais um, elegia para uma gaivota, que abre com estes versos: “leonor teles não podia pensar o prazer/ porque não existia em linguagem/ maneira de exprimi-lo. devia/ ser óptima na cama e era tudo (…)”.
Neutralidade descritiva
A naturalidade com que a poesia de Graça Moura exprime opiniões sobre virtualmente seja o que for (e o tópico aqui em apreço não é de todo isento de gravidade) conta-se entre as suas características mais originais e mais sedutoras. E é um dos muitos fios que o ligam a um autor de quem é muito tentador aproximá-lo: Jorge de Sena. Mas Sena, mesmo na poesia, assume as suas opiniões com alguma veemência, ao passo que em Graça Moura elas muitas vezes se encobrem numa certa neutralidade descritiva, muito típica dessa espécie de personagem de si próprio que circula nos seus poemas.
Após o último livro de 80, A Furiosa Paixão pelo Tangível, segue-se um hiato invulgarmente extenso, e que coincide com um período em que o autor assume responsabilidades públicas especialmente exigentes, designadamente a presidência da Comissão de Descobrimentos. O poeta regressa com O Concerto Campestre (1993), no qual destaco desde logo o poema “não sei se o camões hoje”, que tem além do mais o mérito de propor uma solução simples e infalível para resolver as laboriosas perplexidades do cânone camoniano: “(…) um verso de camões/ com pouca variação é sempre um verso de camões,/ é a coisa mais bela e mais difícil do mundo/ e dá cá uma guinada tão especial que só pode ser dele (…)”.
E no poema seguinte, há quem escreva persistindo, Graça Moura demarca-se dos que persistem “numas rilkeanas/ imagens delicadas” e assume: “(…) eu prefiro a narração. os meus poemas têm cada vez mais/ essa tendência perversa de neles sempre acontecer/ alguma coisa a alguém num tempo e num lugar”. Não surpreende, portanto, que tenha dado a um livro posterior, publicado em 1997, o título Poemas Com Pessoas. Livro no qual incluiu um soneto da poesia narrativa que, em claro diálogo com o poema de 1993, começa assim: “foi assim que cheguei à poesia narrativa:/ nos poemas moviam-se figuras/ e a essas figuras aconteciam coisas/ e essas coisas tinham um sentido deslizante,/ era uma espécie de hipálage do mundo (…)”.
Esta dimensão narrativa, a par de uma crescente intromissão do autobiográfico (ou de um registo que o leitor é levado a ler como tal), marcarão até hoje a poesia de Graça Moura.
Nos anos 90, publicou ainda os Sonetos Familiares (1995), com o retrato em causa própria, onde aparecem os muito citados versos “(…) eu acredito/ mas é na técnica. nunca a inspiração/ me deu fosse o que fosse. nem um grito (…)”, e também essa pequena pérola que é a jardineira, ou a comovente sequência de sonetos a que chamou lâmpada votiva.
Em 1997, sai Uma Carta no Inverno, que fecha com o poema homónimo, que é tanto uma extensa reflexão sobre a história cultural da Europa desde a queda de Constantinopla como a desencantada meditação de alguém que persiste em sentir-se europeu, e em acreditar numa identidade europeia, quando a europa jaz feita num oito.
E chamo a aqui a atenção para um facto de que só tomei realmente consciência ao reler agora a sua Poesia Reunida nos dois volumes editados pela Quetzal em 2012. É que todos os livros de que até agora falei, até Uma Carta no Inverno, cabem no primeiro desses tomos. O que vem depois, e que já só poderei inventariar muito resumidamente, representa, em número de páginas, outro tanto, o que diz bem do que tem sido a produção poética de Vasco Graça Moura nestes últimos anos, sobretudo se pensarmos que no mesmo período, a juntar a sucessivas funções públicas que cumpriu com reconhecido zelo, e à coluna semanal que há muito vem mantendo na imprensa, escreveu vários romances e novelas, surpreendeu com dois livros de fados e publicou uma quantidade apreciável de ensaios.
Balada do bom cavaquista
O final dos anos 90 é mesmo um dos períodos mais impressionantes da sua criação lírica: além dos já referidos Uma Carta no Inverno e Poemas Com Pessoas, ambos de 1997, publicou ainda no mesmo ano Letras do Fado Vulgar. E se a produtividade assusta, há ainda que dizer que os dois primeiros são ambos títulos centrais na sua obra poética.
Em Uma Carta no Inverno, e sobretudo no poema que dá título ao livro, talvez possa ver-se uma espécie de desenlace da reflexão iniciada com o poema a escola de frankfurt: mas nos quase 20 anos que separam estes dois ajustes de contas com a Europa, a exasperação foi dando lugar a uma resignada e enternecida melancolia: (…) “a volta dos tristes junto ao mar, entre Heródoto e o/ new york review of books. e todavia a música persiste,/ enlaçando os destinos e os lugares, e vibra em mim,/ que a trauteio e recuso, reconheço e deslembro,/ interrompo e retomo (…)”.
Poemas Com Pessoas, além de ser o livro em que atinge a sua plena expressão esse novo tom, mais narrativo, mais povoado, mais biográfico, que vinha marcando esta poesia desde o início da década, é também um alfobre onde viceja uma fiada de poemas de antologia. A referir só um, apetece-me citar esse exemplo de virtuosismo e refinado humor negro que é “poema brasileiro”, história de iracema, de quinze anos, que “queria transar muito fundo com gumercindo”, e de seu pai, atanázio, que aliava o respeito pelas convenções a um notável sentido prático.
Sem abrandar o ritmo, Graça Moura publica, ainda nesse final dos anos 90, mais três livros de poesia. O primeiro é O Retrato de Francisca Matroco e Outros Poemas (1998), que inclui poemas tão significativos como aquele que lhe dá título, ou morte de paolo e francesca na livraria do louvre, ou o ciclo borgesiana, ou ainda o belíssimo soneto destruído, que depois aparecerá desmembrado em Sombras com Aquiles e Pentesileia (1999), um poema-livro em que a guerra de Tróia se transforma numa luta entre bandos de motards. Pergunto-me se Graça Moura terá visto o filme Romeu e Julieta (1996), de Baz Luhrmann.
O último livro dos anos 90 é Garrett, Numa Cópia Perdida do Frei Luís de Sousa (31.12.1843), de 1999, retrato de um Garrett já entrado em anos, reflectindo e rememorando, aquecendo-se a uma lareira que, sendo a sua, é também a de Graça Moura. Talvez este livro tenha sido a sinuosa resposta que o autor encontrou para satisfazer o repto de Eduardo Lourenço, que ao comentar, num texto de 1998, um dos primeiros trabalhos críticos de Graça Moura, Herculano Poeta, de 1978, sugerira que este nos ficava a dever “um Garrett”.
Pelas limitações assumidas no início, interrompo aqui esta incursão um tanto anárquica na poesia de Graça Moura, chamando apenas a atenção para dois livros que me parecem fundamentais entre os títulos que publicou já neste milénio, ou seja, os que vão de Giraldomachias (2000) ao recente O Caderno da Casa das Nuvens (2010). Refiro-me a Testamento de VGM (2001), o seu auto-testemunho ao jeito de Villon – e que inclui a célebre balada do bom cavaquista –, e Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves (2005), possivelmente o seu melhor livro do século XXI.
Sem desprimor para Caderno da Casa das Nuvens, cuja edição comercial só saiu em 2011, e a que não faltam excelentes poemas, como o comovente e desolado o lugar certo ou o descaradamente confessional con che soavità, do qual talvez seja prudente adiantar apenas que envolve uma pastelaria e uma florista, a primeira “mixuruca”, a segunda nem por isso.
Texto escrito para o colóquio de homenagem a Vasco Graça Moura que a Gulbenkian promoveu em Janeiro e publicado com o título "Uma travessia lírica com paragem em alguns apeadeiros"