Uma viagem a 15 metros de profundidade…sem sair cá de cima
Não se pode levar papel, nem canetas, nem relógios, nem telemóveis, nem roupa sintética. Não se pode dormir nem cruzar braços e pernas. Deve-se inspirar e expirar lentamente em toda a viagem. É o que se passa a bordo de uma câmara hiperbárica do Centro de Medicina Subaquática e Hiperbárica de Lisboa, onde se fazem 13 mil tratamentos por ano.
“Deram um tiro ao lado”, diz João Simões, com um sorriso. Esta é a sua 44ª viagem. Joaquim Araújo é o veterano do grupo, vai fazer a 72ª viagem. Está optimista. “Sinto-me muito melhor. Quando aqui cheguei, tinha coágulos enormes que retinham a urina e causavam-me muitas dores.”
Entre os recém-chegados ao Centro de Medicina Subaquática e Hiperbárica da Marinha, em Lisboa, encontra-se também Armindo Oliveira. Vai fazer a oitava viagem. “No Algarve, de férias, um dia levantei-me e senti um zumbido forte no ouvido esquerdo. Deixei de ouvir. Fiquei com a sensação de ouvido entupido e muito sensível aos sons agudos.”
Uma porta verde abre-se no lado direito da sala. Na soleira aparece um homem fardado de azul que pergunta: “Vamos entrar?” Os doentes, que conversavam animadamente, levantam-se e dirigem-se para o espaço onde estão as câmaras hiperbáricas. Na sala de espera ficam os familiares que os acompanham. Terão de esperar cerca de uma hora e 40 minutos. Uns lêem, outros vêem televisão, outros conversam.
O Centro de Medicina Subaquática e Hiperbárica localiza-se agora nas instalações do antigo Hospital da Marinha, mas nem sempre foi assim. “Em Portugal, a medicina hiperbárica, tal como noutros países, tem a sua génese associada à prática do mergulho”, conta Francisco Gamito Guerreiro, director clínico do centro. A instalação da primeira câmara hiperbárica ocorreu em 1953 na Base Naval do Alfeite, em Almada, associada “ao tratamento da doença de descompressão em caso de acidente de mergulho, ao treino de mergulhadores profissionais e à compressão de materiais e equipamentos”.
“Nos anos de 1970, surgiram as primeiras provas médicas que mostravam que a oxigenoterapia aplicada em meio hiperbárico [com pressão superior à atmosférica] podia ter aplicações terapêuticas para além da doença de descompressão e das suas complicações. Em consequência disso, aumentou a procura externa deste tratamento para situações clínicas, fora do âmbito do mergulho, em especial para os casos de surdez súbita”, explica Francisco Gamito Guerreiro.
A oxigenoterapia hiperbárica consiste na inalação, através de uma máscara, de oxigénio puro numa câmara a uma pressão duas a três vezes superior à pressão atmosférica ao nível do mar. Se um tecido apresentar baixos teores de oxigénio, pode facilmente ser invadido por bactérias anaeróbias (não toleram o oxigénio) desenvolver-se uma infecção. Com esta terapia passa a existir mais oxigénio no sangue, por isso estas bactérias e as suas toxinas são eliminadas. Os glóbulos brancos também se defendem melhor delas e os medicamentos chegam mais depressa aos tecidos infectados. Além disso, garante-se ainda uma melhor produção de colagénio, substância essencial para a cicatrização de feridas e regeneração de tecidos – um efeito importante em patologias como o pé diabético ou lesões resultantes da radioterapia.
Face ao aumento da procura desta terapia, o Centro de Medicina Subaquática e Hiperbárica mudou-se da Base Naval do Alfeite para Lisboa (os Açores, a Madeira e o Norte de Portugal continental também dispõem de câmaras hiperbáricas para tratamentos médicos).
O centro, onde há três sessões diárias de tratamento, adquiriu uma outra câmara hiperbárica em 2001 e ambas foram actualizadas tecnologicamente. “A mais recente permite tratar doentes de cuidados intensivos ventilados, monitorizando todas as suas funções vitais. Fazemos anualmente cerca de 13 mil tratamentos, mas só tratamos a ponta do icebergue”, afirma Pedro Carlos, enfermeiro do centro. Devido ao número crescente de praticantes de mergulho recreativo e de doentes encaminhados para este tipo de terapia, Francisco Gamito Guerreiro considera que ainda “existe espaço para mais um ou dois centros” deste género em Portugal.
A postos para o “mergulho”
São 10h45. O cenário é agora o de um filme passado num submarino. Dois conjuntos de monitores mostram o interior das duas câmaras hiperbáricas ligadas em L por uma câmara mais pequena para quatro pessoas. Existe ainda uma antecâmara de dois lugares, que permite a entrada e saída de doentes em caso de emergência. A capacidade global das câmaras é de 26 lugares e cada um está identificado com um número por cima da cadeira.
A equipa que vai coordenar a viagem inclui três mergulhadores que controlam o funcionamento da câmara e um enfermeiro e um outro mergulhador (assistente de câmara) que acompanham os doentes dentro da câmara hiperbárica. Um médico está sempre presente caso surja algum problema.
Cada doente sabe o que tem de fazer: levantar e colocar o cartão de identificação pessoal na mesa de controlo dos mergulhadores, guardar os objectos pessoais num cacifo individual, cobrir os sapatos com botas de protecção de plástico azul e aguardar a chamada para entrar na câmara.
Os mergulhadores recolhem os cartões, chamam os doentes e entregam a cada um uma máscara individual esterilizada. Tudo se passa num ambiente familiar e descontraído, mas não desatento. Afinal, é um tratamento médico, por isso tudo é verificado. Não se pode levar papel, nem relógios, nem telemóveis, nem roupa sintética. O cumprimento destas regras de segurança é essencial para prevenir acidentes. “Um acidente numa infra-estrutura destas seria uma catástrofe. Estamos num ambiente pressurizado com oxigénio e, por isso, o risco de combustão é maior”, diz Francisco Gamito Guerreiro.
Para explicar as razões destas regras e de outros cuidados, doentes e familiares participam em sessões informativas orientadas por enfermeiros. “Queremos que o doente e os seus familiares percebam os procedimentos inerentes à terapia”, conta Pedro Carlos.
São 10h55. Os doentes começam a entrar nas câmaras hiperbáricas. Cada um senta-se numa cadeira. O enfermeiro e o assistente de câmara ajudam os doentes com mais dificuldades e reconfirmam que não há materiais indesejáveis. O som do rádio ajuda a passar o tempo. Cá fora fecham-se as escotilhas.
Dentro da câmara
Às 11 horas, Juvenal Abreu, mergulhador supervisor, roda um manípulo na mesa de controlo. Ouve-se um barulho semelhante ao esvaziar de um balão. É ar a entrar nas câmaras hiperbáricas. A viagem começou. A entrada progressiva de ar comprimido na câmara irá simular a pressão exercida pela água sobre o corpo humano como aconteceria num mergulho a 15 metros de profundidade. A “descida” demorará dez minutos. Na câmara, todos fazem manobras de compensação do aumento de pressão nos ouvidos. “O ar comprimido empurra o tímpano, mas se apertarmos o nariz, com a boca fechada, e expirarmos com força, contrariamos essa pressão”, explica Juvenal Abreu.
Um monitor mostra que se atingiram os 15 metros de profundidade, a que corresponde uma pressão de 2,5 atmosferas. Ao nível do mar, a pressão do ar contra o corpo humano é de uma atmosfera. Mas quando mergulharmos, por cada dez metros que avançamos em profundidade, a pressão da água aumenta uma atmosfera e que se junta ainda à pressão já exercida pela própria atmosfera.
Usando um intercomunicador, o supervisor avisa: “Iniciar tratamento.” De imediato, os doentes põem a máscara e ligam-na a dois tubos suspensos sobre a sua cadeira. Um dos tubos transporta oxigénio puro para ser inspirado e o outro, ar expirado. O enfermeiro e o assistente de câmara confirmam que as máscaras estão bem ajustadas para evitar fugas de oxigénio.
O tratamento divide-se em três partes: dois períodos de 35 minutos intercalados por um de cinco minutos. Enfermeiro e mergulhadores vigiam os doentes, garantindo que cumprem as instruções recebidas nas sessões de esclarecimento: não dormir, inspirar e expirar pausadamente pela boca e pelo nariz, entre outras. Nada é deixado ao acaso. Se algum doente se sentir mal ou desmaiar, é necessário agir prontamente.
Cá fora também tudo é controlado. Um oxímetro regista o teor de oxigénio nas câmaras. Marca 20%, um valor equivalente ao do ar atmosférico. “Se a percentagem de oxigénio aumentar dentro da câmara, significa que alguma máscara está mal ajustada. Temos de avisar imediatamente, pois se ultrapassar os 23% corre-se o risco de incêndio”, explica Juvenal Abreu. “Claro que existe um sistema anti-incêndio com dispersores que fazem chover dentro da câmara caso se atinja esta concentração de oxigénio.”
Carlos Pinto, um dos mergulhadores de serviço, informa: “Intervalo.” E os doentes retiram as máscaras, a conversa surge naturalmente dentro da câmara. Esta pausa é para evitar complicações associadas à inalação prolongada de oxigénio puro.
Isabel Morais Costa faz a sua 60ª viagem. Há quatro meses que se desloca diariamente para o centro. Desenvolveu uma infecção hospitalar causada por bactérias anaeróbias após uma cirurgia à rótula. “Tinha feridas muito profundas na perna esquerda, pareciam crateras. Começaram a desaparecer após a 30ª sessão. Aqui encontramos uma equipa de profissionais que se preocupa connosco, que nos conhece pelo nome e nos dá ânimo.”
Ao deixar subitamente de ouvir, Armindo Oliveira pensou que seria cera a bloquear o ouvido. Foi ao centro de saúde fazer uma limpeza ao ouvido, mas afinal não era cera. Após fazer um audiograma, veio o diagnóstico: surdez súbita. “Nunca pensei que tinha perdido a audição. Apenas sentia um zumbido permanente e a intolerância a sons agudos. A tomar banho, a água do chuveiro parecia pedaços de vidro a cair no polibã. Acredito que, se não fizesse este tratamento, poderia já ter perdido a audição do ouvido esquerdo.” Marcaram-lhe 20 sessões e depois será feita uma avaliação médica do seu caso.
Agora o intercomunicador é usado por Juvenal Abreu. O aviso já é esperado: “Reiniciar tratamento.” Tudo se repete. Colocar máscara, descruzar pernas e braços, não dormir, inspirar e expirar lentamente.
Dois protocolos de tratamento
O tratamento descrito é o protocolo de rotina, mas pode ser alterado em função da idade, do peso e estado de saúde do doente. Também há um protocolo de urgência para a câmara hiperbárica, com doentes vindos de diferentes hospitais civis com acidentes de mergulho ou intoxicações por monóxido de carbono.
Num mergulho, o aumento de pressão comprime os gases do ar inspirado, em especial o azoto, formando pequenas bolhas que se dissolvem no sangue, podendo assim chegar a todo o corpo. O regresso à superfície implica a descompressão dos tecidos. Se o mergulhador não subir lentamente, corre o risco de as bolhas permanecerem nos tecidos e causarem danos irreversíveis, como lesões nos ossos, nas articulações e na medula espinal. As câmaras hiperbáricas permitem, ao recomprimir lentamente o corpo do mergulhador, eliminar gradualmente o excesso de gases nos tecidos e minimizar essas lesões.
Mas cerca de 90% dos casos de urgência que chegam ao centro são intoxicações por monóxido de carbono, um gás sem cor, sem cheiro e que não é irritante. “Os acidentes por monóxido de carbono são cerca de 120 a 130 casos por ano”, refere o director clínico.
Em geral, estes acidentes surgiam associados a lareiras. Agora já não é bem assim. “A maioria dos acidentes ocorre em prédios novos com problemas de drenagem de gases na cozinha”, alerta Francisco Gamito Guerreiro. “A situação mais frequente é esta: um jovem chega a casa e vai tomar banho, o resto da família está na sala e na cozinha prepara-se o jantar. Quando o jovem sai do banho, encontra os familiares caídos pela casa.”
O oxigénio e o monóxido de carbono são transportados pela hemoglobina dos glóbulos vermelhos. Só que afinidade da hemoglobina para o monóxido é 240 vezes superior à que tem para o oxigénio. Por isso, se os dois gases estiverem presentes, a hemoglobina liga-se ao monóxido de carbono, impedindo as células de obter oxigénio. A exposição prolongada ao monóxido de carbono pode originar sintomas pouco graves, como dores de cabeça, tonturas ou perdas de memória, mas também levar à morte se a pessoa não for socorrida a tempo. Com a oxigenoterapia hiperbárica, aumenta-se o volume de oxigénio e, desse modo, vai-se enchendo a hemoglobina de oxigénio e expulsando as moléculas de monóxido de carbono.
“Se o doente vier para a câmara hiperbárica, faz uma sessão de uma hora e 40 minutos e fica bem. Se não vier, demora semanas a recuperar e pode ficar com lesões neurológicas permanentes”, refere Pedro Carlos.
Ouve-se a voz de Juvenal Abreu: “Fim de tratamento.” Inicia-se a “subida”, que demorará 15 minutos. O ar no interior das câmaras hiperbáricas é substituído gradualmente por ar à pressão atmosférica. Os doentes retiram as máscaras e conversam animadamente. “A subida é mais lenta para prevenir complicações associadas à descompressão quer nos doentes quer nos técnicos que os acompanham”, diz Juvenal Abreu.
Abrem-se as escotilhas e os ocupantes das duas câmaras começam a sair. Os doentes recolhem os objectos pessoais, despedem-se e vão ter com os familiares à sala de espera.
O relógio marca 12h48. Outro grupo de doentes prepara-se para entrar nas câmaras hiperbáricas. A viagem vai começar de novo.