O segredo de Estado pode ser eterno, indefinido e instrumentalizável?

Proposta dos partidos do Governo, que vai a votos esta quinta-feira, levanta dúvidas de constitucionalidade à Procuradoria-Geral da República e à Ordem dos Advogados. Pacote de "reforma das secretas", afinal, vai ser debatido em conjunto.

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Os partidos discutem hoje no Parlamento alterações das regras do segredo de Estado Pedro Cunha

Ao longo de 29 páginas, o parecer da PGR apresenta várias “dúvidas sobre a legitimidade de sujeitar a segredo de Estado matérias que, numa primeira análise, nada tenham a ver” com o núcleo central de “segredos” a proteger. Isto porque a proposta dos partidos que apoiam o Governo pretende alterar de uma forma radical a definição do que deve estar protegido. E é isso que justifica estas preocupações da PGR: a introdução de uma nova categoria, a dos “interesses fundamentais do Estado”.

“Consideram-se interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna e externa, à preservação das instituições políticas, bem como os recursos afectos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional e dos cidadãos em Portugal e no estrangeiro, à preservação do ambiente, à preservação e segurança dos recursos energéticos fundamentais, à preservação do potencial científico e dos recursos económicos e à defesa do património cultural”, pormenoriza o Projecto-lei nº465.

Também a Ordem dos Advogados (OA) considera esta nova definição do que deve estar sujeito ao crivo do segredo de Estado demasiado “vaga”. E perigosa… “O conceito vago e fluido de 'interesses fundamentais do Estado' (…) é modelável e varia ao sabor das interpretações e das conveniências das maiorias políticas do momento”, lê-se num parecer entregue ao Parlamento.

Quer a PGR, quer a OA acreditam que, tal como está, este diploma corre o risco de ser inconstitucional. Sobretudo porque deixa de exigir qualquer “fundamentação” para a classificação de um documento, ou acto, como segredo de Estado.

Outro dos pontos mais criticados – que também é proposto no diploma do PS – é a prorrogação, até 30 anos, da classificação. “Injustificado e manifestamente excessivo”, defendem os advogados, “deveras excepcional”, aponta a PGR.

“O segredo de Estado tem carácter excepcional face ao princípio da administração aberta e ao direito à informação dos cidadãos”, enfatiza a Ordem. E esta alteração a um diploma, que data de 1994, “aponta num sentido inequívoco, um alargamento substancial dos poderes do Estado no acto de classificar matérias como segredo”, sublinha a PGR.

Além das críticas destes dois pareceres, também a oposição se manifesta surpresa com esta proposta. O segredo de Estado é uma matéria que, tradicionalmente, motiva o consenso dos dois maiores partidos. A lei actual foi aprovada pelo PSD, pelo PS e pelo CDS. A única alteração posterior, tentada na maioria absoluta do PS, foi vetada por Cavaco Silva.

Desta vez, o efeito do “caso Jorge Silva Carvalho” parece ser evidente. Há uma disposição que limita a defesa judicial que parece querer responder ao pedido, feito pelo anterior dirigente do SIED, para que lhe fosse dada autorização para revelar factos abrangidos pelo segredo de Estado. A PGR aponta esse risco. E o Conselho Superior da Magistratura, noutro parecer, “sublinha que, todavia, a solução estabelecida lhe parece susceptível de gerar dúvidas, estando em causa o exercício do direito de defesa em processo-crime”.

Mais ou menos duros, os pareceres criticam o “desacerto” e a “marca antidemocrática” (OA) da proposta e avançam “sérias dúvidas de aceitação constitucional” (PGR) de alguns dos seus artigos.

O PÚBLICO tentou recolher, sem êxito, a opinião da primeira signatária desta proposta, a deputada do PSD Teresa Leal Coelho. De acordo com a convicção de vários deputados, pode ainda haver alterações, nos trabalhos da comissão parlamentar, que venham a minorar estes problemas apontados.  

Teresa Leal Coelho vence uma batalha
Já existe um princípio de acordo entre os partidos para que todos os projectos de reforma dos serviços secretos apresentados baixem à primeira comissão. Os partidos da maioria tinham agendado para esta quinta-feira o debate de apenas dois dos projectos-lei que constituem este pacote legislativo, aqueles que mudam as regras do segredo de Estado. Porém, de repente, tudo mudou. Durante o dia de terça-feira, a conferência de líderes decidiu levar ao plenário, no dia 17, todos os projectos, incluindo os que alteram a lei-quadro do Sistema de Informações da República e a orgânica das secretas. Essa era uma velha batalha da deputada do PSD Teresa Leal Coelho.

Ainda no passado domingo, em declarações ao DN, a anterior vice-presidente da bancada "laranja" deixou bem claro que considerava insuficiente o debate das matérias relativas ao segredo de Estado: “Só este agendamento não chega.” Entre as propostas da deputada, que afinal sobem a plenário já esta quinta-feira, encontram-se a do registo de interesses para os agentes das secretas, o período de nojo na transição entre funções nos serviços de informações e actividades privadas. Essas alterações receberam críticas dos serviços, expressas num parecer assinado por Júlio Pereira, secretário-geral, que conclui existir “o risco de não contribuírem, ao contrário do que se pretende, para dignificar a actividade” das secretas. Ao todo serão debatidos nove projectos, dos quais quatro são da maioria, dois do PS, dois do PCP e um do BE.

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