Os filhos de dadores de esperma e ovócitos têm direito a conhecer as suas origens?

Por ano, nascem em Portugal cerca de 200 crianças filhas de casais infertéis que tiveram de recorrer a esperma ou ovócitos de dadores anónimos. A maioria não conta nada aos filhos sobre esta sua origem.

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A comunidade médica nesta área divide-se. O pai do primeiro bebé-proveta português, Manuel Pereira Coelho, vê “como uma inevitabilidade” que a regra do anonimato desapareça, tal como já aconteceu em alguns países europeus, caso do Reino Unido, Suécia ou Dinamarca, mas a maioria dos médicos contactados pelo PÚBLICO diz que a revelação traria mais prejuízos do que benefícios à família e à criança. De qualquer forma, informam, actualmente a questão quase nem se coloca, porque a maior parte dos casais portugueses opta por não contar aos filhos a forma como foram concebidos – ou seja, são uma minoria os filhos que sabem que os pais tiveram de recorrer ao esperma e ovócitos de outro homem ou mulher.

A americana Lindsay Greenawalt sempre soube. No blogue que criou para falar do que sente, Confissões de Uma Criomiúda (Confessions of a Cryokid), transmite toda a sua ira pelo desconhecimento em torno da identidade do seu “pai biológico”. Ela pergunta, em jeito de apelo existencial: “Serás tu o dador 2035?” No descritivo do blogue diz-nos ao que vem: “O que acontece quando seres artificialmente criados para trazerem alegria começam a falar por si mesmos? Revolta! Eu sou o produto de um dador de esperma anónimo e agora sou adulta e estou à procura de respostas e quero dizer ao mundo o que se passa.”

Bibliotecária de 34 anos a viver em Nova Iorque, Lindsay tornou-se numa activista contra a regra do anonimato, pelo acesso ao pai biológico que lhe foi negado. Filha de uma mãe que optou pela "produção independente", sempre soube que era filha de um dador, mas sente que lhe falta parte da sua identidade. Aos 30 anos, o mais que  conseguiu saber junto da clínica Xytex foi que o “pai” terá actualmente 51 anos, que começou a doar esperma aos 32 anos, é branco, tem olhos verdes, professa a religião baptista, é licenciado e tem o cabelo castanho ondulado.

Em Portugal, um filho também pode ter acesso a este tipo de dados genéricos, embora isso nunca tenha sido perguntado, revela o presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), Eurico Reis. A lei nacional refere que a dádiva de terceiros (quer de esperma, de ovócitos ou de embriões) é anónima, mas prevê excepções. Se houver suspeita de duas pessoas poderem ser irmãos, e isso ser motivo de impedimento para um casamento, é possível colocar essa pergunta ao CNPMA. A outra excepção prevista é para pedir dados genéticos do dador, por exemplo, sobre questões de saúde que possam ser importantes. Mas, caso a pessoa queira mesmo saber o nome do seu dador, terá em princípio de avançar com um processo para tribunal alegando “razões ponderosas” e de ver confirmado o seu pedido por uma sentença judicial. “O que é que são 'razões ponderosas'? Não sei”, diz Eurico Reis.

O professor de Direito Rafael Vale e Reis contesta a situação de desigualdade que existe em relação a quem é adoptado, quando a questão é a mesma: está em causa o direito ao conhecimento das origens genéticas, que é garantido pela Constituição Portuguesa no "direito à identidade pessoal", defende. No adoptado, quando a pessoa chega à maioridade, pode ir a uma conservatória e ter acesso ao seu registo de nascimento onde estão os nomes dos seus pais biológicos, explica. O docente, autor do livro Direito ao Conhecimento das Origens Genéticas (Coimbra Editora), diz que a legislação portuguesa nem sequer prevê que estes filhos de dadores anónimos possam perguntar ao CNPMA se foram concebidos com recurso a técnicas médicas.  

O professor defende pelo menos a possibilidade de renúncia ao anonimato por parte do dador que, caso assim o entenda, aceite ser conhecido pela(s) pessoa(s) a quem deu origem, a não ser que alegue, por exemplo, o direito à “protecção do núcleo familiar estabelecido”. Na sua opinião, há pelo menos dois direitos em conflito, de um lado o dador e o seu direito à reserva da vida privada e familiar, do outro o direito da pessoa a conhecer as suas origens. O segundo é claramente relegado para último plano pela legislação nacional sobre procriação medicamente assistida, a bem sobretudo de questões técnicas que, defende o também investigador do Centro de Direito Biomédico, não estão comprovadas.

Falta de dadores ou dadores diferentes?

Rafael Vale e Reis refere-se ao facto de muitos médicos defenderem que, se a regra do segredo não existisse, a própria procriação medicamente assistida estaria posta em causa, porque, se a identidade não fosse salvaguardada, deixaria de haver dadores suficientes. Ora, diz o professor, não foi isso que aconteceu nos países em que a regra do anonimato cessou de existir. No Reino Unido houve uma diminuição de dadores no início, em 2004, mas depois houve uma alteração no perfil de dadores: em vez de serem sobretudo estudantes universitários, há homens mais velhos que pensam mais na dádiva em termos altruístas.

Manuel Pereira Coelho, médico, pioneiro da fertilização in vitro em Portugal e director de uma clínica em Lisboa, diz que “hoje em dia há uma parte significativa dos dadores que já são pais e têm enquadramento familiar, são verdadeiros dadores”. Facto que é confirmado pela responsável pelo único banco público de gâmetas em Portugal, Joana Guimarães: “Já não apenas estudantes.” Na opinião da médica, com o não anonimato haveria decerto recuo de dadores, mas não está segura que "a verdade absoluta esteja no anonimato.”

Pereira Coelho diz que a regra do segredo nasce também por razões “machistas”, associadas “à mentalidade masculina”, ou seja, muitos homens não querem que se saiba publicamente que os seus filhos são fruto de esperma de outro homem. Com o início da dádiva de ovócitos, em torno de 2000, “as coisas mudaram e as mulheres, que são mais pragmáticas e mais abertas, não se importam tanto que saibam que houve dádiva [de ovócitos], até porque participam na gravidez”, nota.

Ana Pereira, psicóloga da Ava Clinic, em Lisboa, unidade que foi pioneira na doação de ovócitos em Portugal, diz que muitas dadoras portuguesas não se importariam de ser contactadas no futuro pelas pessoas a quem deram origem.Na opinião de Pereira Coelho, a regra do anonimato vai acabar por desaparecer. “É uma inevitabilidade”, diz. “O tema está em ebulição, o anonimato não vai resistir muito tempo.”

Acontece é que movimentos reivindicativos no Norte da Europa a favor da revelação da identidade do dador começaram associados a filhos revoltados com esta parte da sua identidade que lhes era ocultada, explica Pereira Coelho. “As pessoas que nasceram por essa tecnologia começaram a reivindicar algo que lhes era negado, do ponto de vista moral e afectivo.” Em Portugal já há decerto adultos fruto de inseminação com recurso a dádiva de espermatozóides, uma vez que esta prática existe informalmente pelo menos desde 1976, diz Pereira Coelho. Mas poucos destes adultos saberão que tiveram esta origem.

Para serem hoje adultos isso significa que teriam de ter sido concebidos nos primórdios da PMA em Portugal, nas décadas de 1970 e 1980. A presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade, Cláudia Vieira, não tem grandes dúvidas de que estes pais não contaram nada aos filhos. Não conseguir ter filhos de forma natural, ter de recorrer a técnicas de PMA esteve durante muito tempo “estigmatizado”, não se falava de infertilidade, de fazer tratamentos, muito menos do recurso a espermatozóides de outro homem. "Só há uns cinco anos começa a ser um tema do dia-a-dia, mas daí até dizerem que houve dádivas de terceiros ainda vai um enorme passo", diz a responsável.

Quantos filhos de dadores terceiros existirão em Portugal? Só desde 2009 é que o CNPMA centraliza essa informação. Sabe-se, por exemplo, que em 2010 houve 178 crianças nascidas com recurso a gâmetas de terceiros (143 de ovócitos, 28 de esperma e sete embriões). Em 2011, o último ano em que há números, subiram para 216 (166 de ovócitos, 48 de esperma e dois embriões).

Contar ou não contar, eis a questão

Contar ou não contar, eis a questão. No fórum online da Associação Portuguesa de Fertilidade este é um dos temas em debate e as opiniões dividem-se. Uma participante diz: “Perante esta pergunta, se devemos ou não contar à criança, nunca tive qualquer dúvida: é óbvio que sim. A mentira é a única coisa que pode magoar alguém. Uma pessoa crescer sabendo que foi desejada nunca fez mal a ninguém.” Mas, para esta internauta, uma coisa é saber que os pais tiveram de fazer tratamento, outra diferente é dizer-lhes que houve dádiva de terceiros: “O que interessa é que da sementinha veio o nosso filho e não de onde veio a sementinha...”

Já outra mãe que participa no fórum, que teve três crianças com recurso a três dadores de esperma, diz que não vai contar: “Só Deus sabe o quanto estou agradecida por haver no mundo homens altruístas como foram os dadores que nos permitiram ter os nossos filhos. Mas também é verdade que este é definitivamente um assunto completamente encerrado nas nossas vidas... As crianças não querem saber destas histórias complicadas, querem é amor, carinho, atenção, dedicação... É isso que conta realmente!”

Os médicos dizem que contar ou não aos filhos “é uma questão íntima”. Carlos Calhaz Jorge, responsável da Unidade de Reprodução Humana do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, não aborda sequer o problema. “É uma decisão individual”, afirma, mas admite que “saberem que os pais se empenharam para ter um filho é uma manifestação de afectividade”.

Alberto Barros, pioneiro em Portugal da inseminação artificial intra-uterina e director de uma clínica no Porto, guarda a sua opinião para si, só a dá mesmo se os casais lha pedem. “Não sei se a revelação vai levantar muito mais problemas emocionais do que dar soluções.” “As clínicas são pontos de passagem.” Após a gravidez os casais não voltam e é bom que assim seja, diz. “Esqueçam-nos”, aconselha-os. Alberto Barros assume-se como católico.

"Entendo a pessoa como um todo. Acredito no espírito ou na alma que não vêm no ADN. Nós somos muito mais do que gâmetas.” E depois lembra um estudo que provou que “sete a dez por cento das pessoas não são filhos dos seus pais civis". Se fizéssemos testes de paternidade, muita gente ia ter surpresas.”

A escolha do dador pretende tornar o menos notório possível esse elemento terceiro. Alberto Barros refere que a escolha é feita com base nas características do casal, etnia, altura, grupo sanguíneo, quando a cor dos olhos é diferente entre os dois membros do casal, opta-se pelo dador que tem a mesma cor do elemento do casal que não contribui com o seu material biológico. Mas, ressalva, “não é como misturar tintas, há uma grande arbitrariedade”.

Pereira Coelho não tem dúvidas de que a maioria não conta aos filhos. Lembra-se de um casal muito aflito porque “os dois eram morenos, olhos escuros, e a filha saiu muito lourinha". !Andavam muito atrapalhados. É difícil de gerir.” Pereira Coelho nota que mesmo nos países nórdicos, onde não existe a regra do anonimato, muitos pais não revelam esse dado aos filhos, um estudo diz que são apenas 18% a transmitir o facto à descendência.

Em busca dos meios-irmãos

Mas há quem não só conte aos filhos, como queira que estes tenham a opção de conhecer o seu dador e eventuais meios-irmãos, fruto do mesmo dador. A americana que criou o blogue Confissões de Uma Criomiúda anda há mais de dez anos à procura do seu dador, mas partilhou a felicidade de ter conseguido conhecer uma “meia-irmã”, através de um registo mundial online que pugna pela existência de dadores registados e põe em contacto quem deseja ser contactado. Chama-se
Donor Sibling Registry e tem quatro inscrições de portugueses, responde ao PÚBLICO a sua presidente, Wendy Kramer.

Um dos registos portugueses é o de Ana (nome fictício), a única que aceitou falar, por email. Ainda não concretizou o seu desejo de ser mãe, mas inscreveu-se neste site porque, quando o fizer, quer que o filho tenha a opção de conhecer dador e irmãos. No seu caso é uma mulher solteira com o relógio biológico a dar horas.

“Preocupo-me com a questão da herança genética. Por isso mesmo, a minha escolha recai para dadores abertos à possibilidade de se deixarem conhecer por crianças, suas herdeiras genéticas, após perfazerem os 18 anos. Existindo essa abertura, a criança tem a possibilidade de contactar com o seu progenitor pelo menos uma vez, acontecimento esse que gostaria de proporcionar a um filho meu.” Outra vantagem que antevê no registo é “a monitorização de possíveis meios-irmãos”.

Rita Paulos, que é casada com uma mulher que está grávida, diz que no caso de casais homossexuais não é sequer possível esconder o recurso a dádivas de espermatozóides. Acredita que “quem cria é que é pai ou mãe, são os afectos que contam”, mas explica que sempre quiseram dar essa opção à menina que está para nascer em Julho. Por isso foram engravidar à Dinamarca, onde essa possibilidade existe. Mal tenha idade, por volta dos três anos, a filha saberá que “houve um senhor que as quis ajudar – sem nunca referir que é pai, porque isso tem carga emocional – e que houve uma semente”. “Quando fizer 18 anos, poderá saber quem foi o dador de esperma e conhecê-lo e, se assim entender, desenvolverem uma relação. Ficamos mais descansadas em dar-lhe essa opção.”

Em Portugal só os casais heterossexuais casados ou em união de facto, com diagnóstico de infertilidade, podem fazer tratamentos.

A identidade de quem se esconde por detrás de um código de dádiva é um segredo bem guardado. Se algum dia um filho que teve origem em gâmetas de dador conseguir saber qual é o nome do seu pai biológico, apenas duas pessoas no país, o presidente e o vice-presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, têm acesso a essa informação. E é preciso que os dois insiram, ao mesmo tempo, duas palavras-chave numa plataforma que apenas existe desde Janeiro do ano passado.

O chamado "Registo de dadores, beneficiários e crianças nascidas com recurso a dádiva de terceiros" tem registadas apenas 367 dadoras de ovócitos (que contribuíram com 406 doações) e 13 dadores de espermatozóides (que contribuíram com 31 doações), números que estarão desfasados do total actual de dádivas. Antes da  existência desta plataforma teoricamente todas as clínicas que recorreram à dádiva têm de manter estes dados durante 30 anos, explica Eurico Reis.

Uma coisa é certa, diz Eurico Reis, "os dadores não querem ser progenitores". Na sua opinião, poder ter acesso às identidades dos dadores “pode ser um elemento de perturbação da família”, lembrando que existe a chamada “'mitificação do progenitor ausente' que pode surgir como entrave ao funcionamento da família social". Está provado que o pai que não está presente é muitas vezes endeusado pela imaginação dos filhos, tornado perfeito pela ausência. O presidente do CNPMA deixa perguntas sobre a possibilidade de as crianças geradas desta forma poderem ter acesso à identidade do dador: “Qual é a utilidade desta informação? Qual é o ganho face às perdas?”

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