Um jovem Fernando Pessoa panfletário e antimonárquico
Richard Zenith e Fernando Cabral Martins revelam cinco inéditos de Pessoa em Mensagem e Outros Poemas sobre Portugal, que será lançado no dia 17
Richard Zenith e Fernando Cabral Martins, que encontraram e fixaram estes textos, incluíram cinco inéditos (quatro poemas completos e o início de um poema inacabado) em Mensagem e Outros Poemas sobre Portugal, que a Assírio & Alvim lançará dia 17 na colecção Pessoa Breve, juntamente com um volume dedicado à poesia esotérica de Pessoa, co-organizado pelos mesmos autores.
Descontada uma quadra que ditou à mãe aos sete anos e vários poemas em português que escreveu em 1901 e 1902, quando passou uma temporada em Lisboa — os versos destinavam-se a jornais que inventava para circulação familiar —, pensava-se que Fernando Pessoa fora, até 1908, um jovem poeta exclusivamente de língua inglesa.
Se estes poemas dos 17 anos, escritos poucos meses após o seu regresso definitivo da África do Sul, em Setembro de 1905, acrescentam pouco ou nada, em termos literários, à opus pessoana — serão até menos sugestivos da precocidade do autor do que a referida juvenília de 1901-1902 —, a sua publicação justifica-se, desde logo, por vir corrigir a ideia de que a produção lírica de Pessoa no período que vai de 1903 a 1908 se resumira aos poemas em inglês dos heterónimos Charles Robert Anon e Alexander Search. (Sabe-se hoje que este último só surgiu em 1906, embora Pessoa o tenha feito assumir retrospectivamente a produção do seu predecessor.)
Mas estes poemas também nos revelam, no seu tom indignado e panfletário, que esse adolescente criado na cultura inglesa, e que por muito tempo ambicionou ser um poeta inglês, mantinha ligações sentimentais suficientemente fortes ao seu país natal para não ter perdoado à monarquia portuguesa a aceitação humilhante do Ultimato britânico de 1890. O mesmo Pessoa que mais tarde criticará muitos aspectos da I República, e que rejubilará com a deposição de Afonso Costa pelo ditador Sidónio Pais, mostrava ser, aos 17 anos, um republicano de veia jacobina, inimigo jurado da coroa e da Igreja. “Abaixo a guerra, a tirania;/ Abaixo os reis, morra a Igreja./ Não haja coração que seja/ Inimigo da luz do dia!”, grita o poeta no referido poema inacabado. E noutro dos inéditos agora divulgados, lamenta-se: “(...) Com o governo que temos e o nosso rei/ Somos um carro já sem rodas.”
Pelo seu conteúdo, mas também por diversos outros indícios, Zenith e Cabral Martins estão convencidos de que estes poemas datarão de 1906, e provavelmente do início desse ano. Uma dedução que, explicou Richard Zenith ao PÚBLICO, teve em conta os papéis em que foram escritos, o facto de estarem misturados com textos que são seguramente desse período, a própria caligrafia de Pessoa, e ainda algumas referências a “projectos contra a monarquia”, excepcionalmente redigidas em português no diário que Pessoa manteve em 1906.
Os organizadores de Mensagem e Outros Poemas sobre Portugal optaram por organizar os poemas por ordem (tanto quanto possível) cronológica, o que permite acompanhar a evolução das posições políticas e ideológicas de Pessoa e o modo como este foi reagindo aos regimes e governos que se sucederam no país. Republicano ferrenho nos anos finais da monarquia constitucional, crítico, depois, dos sucessivos governos da I República, exceptuada a ditadura do “presidente-rei” Sidónio Pais, Pessoa não terá visto com maus olhos a instauração do Estado Novo, embora viesse a tornar-se, no final da vida, um opositor feroz de Salazar, a quem trata por “chatazar” num poema de 1935.
Para se situar estes poemas antimonárquicos, convém lembrar que Pessoa começou a frequentar o Curso Superior de Letras na Universidade de Lisboa logo em Outubro de 1905, duas semanas após o seu regresso a Lisboa. Zenith está convencido de que o contacto com o meio estudantil universitário pode ajudar a explicar a súbita emergência desse Pessoa militantemente antimonárquico, que se mostra empenhado em acordar os seus conterrâneos com poemas panfletários, ao mesmo tempo que, como lembra o prefácio deste livro, continua e continuará por alguns anos “a escrever poesia quase unicamente em inglês, em consonância com a sua ambição literária de ombrear com Shakespeare, Milton, Shelley e Keats”.
No referido prefácio, Zenith e Cabral Martins observam, no entanto, que à admiração de Pessoa pela tradição literária inglesa nunca correspondeu, mesmo nos seus tempos de Durban, um idêntico entusiasmo pelo império britânico. O jovem Pessoa “simpatizava com os bóeres”, tendo criticado a guerra que os ingleses lhes moveram, como simpatizava, por exemplo, com os independentistas irlandeses, afirma-se no prefácio, que inclui várias outras informações pouco conhecidas ou inéditas sobre a adolescência do poeta em Durban. Estas descobertas provavelmente são resultantes das investigações que Richard Zenith anda há anos a fazer para a sua projectada biografia de Fernando Pessoa.
Esta solidariedade de Pessoa para com os bóeres, os irlandeses e outros humilhados pelo poderio inglês “prendia-se, sem dúvida, com o ressentimento luso decorrente do Ultimato britânico de 1890, que obrigou os portugueses a renunciar, no espaço de 24 horas, a toda e qualquer pretensão de soberania sobre uma vasta área geográfica entre Moçambique e Angola”, defendem os autores do prefácio.
Na literatura portuguesa, a mais célebre reacção ao Ultimato foi o Finis Patriae de Guerra Junqueiro, publicado ainda em 1890, e cuja veemente indignação tanto atingia abertamente a Inglaterra como a monarquia portuguesa da época, acusada não só de ter engolido o vexame, mas de ter levado a nação a um estado de ruína moral e material da qual já só poderia ser salva, in extremis, pela “mocidade” à qual o poeta dedica a obra. Pessoa leu certamente Finis Patriae, e um dos inéditos agora descobertos parece ecoar uma passagem desse livro.
Começa assim o sétimo poema do livro de Junqueiro, intitulado Falam Condenados: “Faminto, nu, sem mãe, sem leito,/ Roubei um pão./ Quem vai além de farda e de grã-cruz ao peito?/ - Um ladrão!// Todos os crimes da Desgraça/ Em mim reúno./ Quem vai além tirado a parelhas de raça?/ - Um gatuno! (...).” Uma toada que é difícil não reconhecer neste poema que Pessoa terá escrito seis anos mais tarde: “O império do chapéu, do colarinho e bota;/ Quem está além, sentado, altivo, sobre um trono?/ - Um idiota.// Adeus a bons e sãos critérios./ Tudo é baldado, tudo fútil:/ Morre o país. Dizei quem rege os ministérios?/ — Um inútil.”
Além dos referidos cinco inéditos, os organizadores encontraram ainda um sexto, que acabaram por não incluir neste volume, mas cuja transcrição cederam ao PÚBLICO, que aqui o divulga em primeira mão. São duas quadras em que Pessoa sugere que os insultos que dirige ao rei — “tirano”, “idiota”, “chimpanzé” — seriam demasiado frouxos para fazer justiça ao seu primeiro-ministro, José Luciano, que presidia ao conselho de ministros quando Portugal recebeu o Ultimato britânico, no dia 11 de Janeiro de 1890. O seu Governo cairia três dias depois.
Mensagem e Outros Poemas sobre Portugal apresenta ainda textos que, não sendo literalmente inéditos, são muito pouco conhecidos, e cuja leitura foi, em alguns casos, bastante melhorada, como acontece com o segundo poema que aqui transcrevemos, que termina com este significativo dístico final: “Sou todo Fogo, Multiplicidade,/ Na névoa da minha unidade.”
Dubitativamente datado de 1913, é um poema francamente relevante, a demonstrar que, apesar de tudo, continua a valer a pena esgaravatar no espólio pessoano e regressar aos manuscritos para aperfeiçoar leituras.
Foi isso, de resto, o que Zenith e Cabral Martins fizeram para organizar este livro, mesmo se depois nos pouparam deliberadamente a esse excesso de informações genéticas que há muito transbordou das edições propriamente críticas da obra de Pessoa para encharcar as que presumivelmente se destinam ao grande público.
Dois poemas de Fernando Pessoa
Gosto mui pouco de falar no inferno
Posto que da ideia a minha alma se ri,
É por isto que eu até aqui
Não tinha bem falado do governo.
Chamei ao rei idiota (até tirano),
Chamei-lhe chimpanzé e pobre mono.
Disse isto e aquilo, dele e do seu trono.
Agora, o que dizer de Zé Luciano?
[Inédito, provavelmente de 1906, que não foi incluído nesta compilação]
Sou o seu maior grito,
A sua comunhão carnal em homem
Com o Infinito.
O Deus Lusíada encarnou em mim.
O Futuro esculpiu-me em resumi-lo
E todas cousas que não têm fim
Couberam no meu espírito intranquilo.
Infantes, Gamas, Albuquerques, Castros —
A minha voz é múltipla de os ter.
Brilham todos em mim tornados astros
E eu sou o Céu, excedo-os para os conter...
Alheia-me da vida o orgulho meu.
Despersonaliza-me num Precursor
Dum Novo Deus maior
Que o Deus cristão, novo Sol de outro Céu.
E de tão alto ir minha ânsia alada
Já não sei se sou eu, se sou o mar
Se sou a minha Raça ou Deus, no eu cravada
A abstracta ordem do Rei de Navegar.
Sou todo Fogo, Multiplicidade,
Na névoa da minha unidade.
[Nova e melhorada leitura do manuscrito de um poema datável de 1913]