Política baseada na ciência ou na crença?

No entanto, há uma outra pergunta que importa fazer: demonstrar cientificamente que uma situação é verdade serve para algo politicamente? A resposta parece ser, cada vez mais, “Não”.

O relatório da OCDE escolheu iniciar a sua abordagem a partir da citação de um livro editado por mim em conjunto com João Caraça e Manuel Castells em 2012. O título desse livro é, em português, “Rescaldo e Mudança. As Culturas da Crise Económica” e em inglês “Aftermath. The Cultures of the Economic Crisis” – partilhando assim o mesmo título deste relatório de 2014 “ The Crisis and its Aftermath”.

A referência a títulos não é displicente, pois, escolher para título de um relatório da OCDE a palavra “Rescaldo” ou “Aftermath” é, como referíamos no documentário televisivo que acompanhou o livro, sinónimo de que o rescaldo da crise não é apenas a devastação social, é também a crise do sistema político baseada na desconfiança nas instituições. Porquê? Porque entre aquilo que os governos apresentam como a realidade e a realidade vivida pelas pessoas há poucas coincidências.

No entanto, a separação de realidades que rege a relação entre políticos e cidadãos também ocorre entre a realidade medida pelos cientistas sociais e a realidade que rege a definição de políticas.

A maioria dos governantes governa hoje como se estivesse em piloto automático, não interessam os números que demonstram a crise social, o que interessa é não perder a face e isso implica cada vez mais mover-se do apoio na ciência para o apoio na crença.

O que os governantes se esquecem é que, em último lugar, também são as crises sociais que mudam a política (mudando de políticos) e não apenas a economia, a finança e a fiscalidade que mudam o social.

Isto é diferente de dizer que entre os políticos que compõem governos da União Europeia não haja quem diga concordar com os dados mostrados pelos cientistas sociais, da sociologia à economia. No entanto, os governantes que concordam dizem, quase sempre, que sim é verdade, mas que não há nada a fazer porque não há alternativa – algo que, novamente, parece mais próximo da crença do que da ciência.

Com que concorda então essa minoria de governantes? Um bom ponto de partida pode ser olhar para os dados presentes no relatório da OCDE sobre Portugal, num misto entre aquilo que alguns programas de televisão fazem, destruir mitos demonstrando cientificamente que algo em que se crê não é verdade, e o que a Wikipedia faz, mostrando o que se sabe sobre uma vasta lista de temas.

O estado social deve ser diminuído em termos de gastos. Não é verdade. Cerca de 70% dos portugueses acham que o governo deve aumentar ou manter o nível de gastos com o estado social.

O governo deve diminuir os seus gastos. É verdade. Cerca de 70% dos portugueses acha que o governo deve gastar menos.

Os dois dados anteriores são uma contradição. Não é verdade. Embora não esteja entre os dados disponíveis no relatório da OCDE, Aaron Reeves e David Stuckler, na sua análise sobre o investimento em saúde “Does investment in the health sector promote or inhibit economic growth?” demonstram que nem todos os multiplicadores fiscais são iguais. E, portanto, cortar despesa pública em áreas como a saúde, educação e protecção social produz, para além dos maus resultados sociais, piores resultados económicos do que cortar noutras áreas.

Em países onde os esforços de consolidação foram mais elevados entre 2007 e 2012, onde se espera que esse esforço se mantenha e onde o crescimento em custos sociais foi baixo, como em Portugal, o aumento do desemprego foi menor. Não é verdade. Em média o desemprego cresceu, nesses períodos, nesses países, entre 4% e 8%.

Entre 2007 e 2013 nos países da OCDE Portugal não perdeu percentualmente mais emprego que os outros. Não é verdade. Pior que Portugal em aumento de desemprego só a Grécia, a Espanha e a Irlanda – e no desemprego jovem, pior que Portugal, só a Grécia e a Espanha.

Portugal é um país onde não há grandes diferenças entre a maioria da população. Não é verdade. Em termos de disparidade de rendimento pior que Portugal, só Israel, Estados Unidos, Turquia, México e Chile.

Em Portugal gasta-se muito em saúde e em educação. Não é verdade. Há mais de 20 outros países onde se gasta mais em saúde e educação do que em Portugal e, entre 2009 e 2011, fomos o quinto país onde mais se reduziu a despesa em saúde.

Em Portugal as pessoas, apesar de tudo, resignam-se facilmente perante as dificuldades. Não é verdade. Tal como os italianos, gregos e espanhóis, os portugueses foram aqueles que entre 2007 e 2012 registaram maiores aumentos na insatisfação com o rumo da sua vida –mais insatisfeitos em geral com a sua vida, do que os portugueses na Europa, só os húngaros.

Todos os governos que governam em austeridade perderam na mesma medida a confiança dos seus cidadãos. Não é verdade. Entre 2007 e 2012 houve governos, que governando em austeridade, viram aumentar a confiança dos cidadãos em si. Por exemplo, o do Reino Unido. No entanto, entre os que viram perder maior confiança dos cidadãos, contam-se o Irlandês e o Português, ambos com o recorde de perda de 30 pontos de confiança dos cidadãos em cinco anos.

A confiança nas instituições financeiras está recuperada. Não é verdade. Entre os países da OCDE só a Islândia, o Japão e a Noruega apresentam, entre 2007 e 2012, confiança das populações no sistema financeiro. Portugal é o país onde (depois da Irlanda, Bélgica, Estados Unidos e Espanha) os cidadãos menos confiam no sector financeiro.

Para além das pessoas, há duas grandes vítimas da governação centrada na austeridade. Essas duas vítimas são o crescimento e a racionalidade.

Ao sacrificar o investimento os governos sacrificam o crescimento, porque se cresce mais lentamente.

Ao sacrificar a racionalidade os governos aumentam a dívida. Pois, a austeridade não é uma política que promova a expansão. Mais austeridade, leva a mais dívida e, por sua vez, a menos crescimento.

Quando os políticos não acreditam na ciência o que podemos fazer? Sugiro que à ciência resta começar a questionar porque tal sucede? E as hipóteses de partida podem ser duas.

A primeira hipótese é que a austeridade é um negócio também. Ou seja, há perdedores nas políticas de austeridade mas também há pessoas, negócios e organizações que ganham (tanto financeiramente quanto em termos de poder) através deste processo.

Em segundo lugar, podemos também colocar a hipótese de que acreditar na necessidade de manutenção de uma política de austeridade não se resume a uma crença mas sim a uma ideologia.

Uma ideologia que, de forma oportunista ou parasitária, aproveita a austeridade para a implementação de mudança social em massa nas sociedades europeias. Ou seja, a maioria dos governos da União encontrou na austeridade um álibi que legitima uma prática de liberalização máxima dos mercados e redução máxima dos limites de proteção social dos indivíduos.

Se alguma das duas hipóteses não se provar falsa, poderemos dizer que, de facto, é falso que não haja alternativa à austeridade.

Gustavo Cardoso é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.

 

 

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