Kasparov: "Cada vez que se adia a resposta forte contra um ditador, o preço sobe"

O ex-campeão do mundo de xadrez, e dissidente russo, Garry Kasparov, compara o Presidente Vladimir Putin a Adolf Hitler e lamenta a resposta do Ocidente à crise da Crimeia. "Se o Ocidente pestanejar, passamos a 1939", disse em entrevista ao PÚBLICO.

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Garry Kasparov está pessimista quanto ao desfecho da crise da Crimeia Fernando Veludo/NFactos

Numa paragem no Porto, onde entregou os prémios do Campeonato Europeu de Veteranos, organizado pela Federação Portuguesa de Xadrez, Garry Kasparov discutiu o referendo da Crimeia, manifestou o seu pessimismo quanto à atitude das potências ocidentais face à crise e animou-se ao comentar a campanha para a presidência da Federação Internacional de Xadrez (FIDE) – um processo que diz ser mais justo do que a sua candidatura falhada contra Putin em 2007.

Tem escrito vários editoriais sobre a actual crise na Crimeia, que no domingo decidiu em referendo a separação da Ucrânia e integração na Federação Russa. Esse processo não foi reconhecido pela União Europeia e os Estados Unidos, que esta segunda-feira anunciaram sanções contra vários dirigentes.
Acabei de ler que o Ocidente aplicou sanções, mas o que li é uma piada. É uma reacção extremamente débil, que mostra que o Ocidente não tem determinação suficiente para se opor à agressão e nem sabe muito bem o que fazer, uma vez que ainda está a falar numa solução diplomática. Mas qual solução diplomática? Não se negoceia com terroristas. O que aconteceu na Crimeia foi a primeira vez desde 1945 que se fez uma anexação – quer dizer, excepto quando Saddam Hussein anexou o Kuwait.

Em 2008, o Exército de Putin invadiu a Geórgia…
Sim, mas não anexou – e essa é uma distinção importante. Nessa altura foram tímidos e nunca tentaram oficializar a anexação – embora o tenham feito, de facto. Tiveram pudor em integrar a Ossétia do Sul e a Abkházia na Rússia. Se tivesse havido uma reacção mais forte em 2008, talvez se tivesse evitado esta crise. Cada vez que se adia a resposta forte contra um ditador, o preço sobe. Porque ele não vai parar. Putin precisa de vitórias de política externa para melhorar a sua reputação e a sua imagem na Rússia. Depois de estar no poder há 15 anos e com a economia em queda, tem de provar ao público russo que tem uma causa.

Num artigo que escreveu para o The Wall Street Journal, defendeu que o Ocidente devia “usar os bancos e não os tanques” para conter a actual ofensiva russa na Ucrânia. Mas acabou de descrever a reacção como fraca. Quer isto dizer que a via militar passou a ser a única resposta possível?
É fraca por causa dos nomes envolvidos. O que Obama fez é uma piada. Foi atrás de alguns burocratas, mas ninguém espera que os burocratas influenciem Putin – eles são subordinados, são peões. O dinheiro a sério está nas mãos dos oligarcas, que podem realmente influenciar os acontecimentos na Rússia. Se o seu dinheiro ficar em risco, acho que eles serão capazes de encontrar uma maneira de lidar com Putin. Neste momento, estas sanções terão o efeito contrário: terão um efeito reduzido, se é que terão algum, e apenas aumentarão a confiança de Putin, que reconhecerá que o Ocidente é demasiado fraco para ir atrás dos peixes grandes.

Na sua opinião, qual é o objectivo da Rússia com esta operação? Ainda há alguma hipótese de travar a escalada?
Putin só tem uma preocupação na vida, que é manter-se no poder. Os líderes ocidentais ainda acreditam que podem negociar com ele, mas Putin é uma causa perdida. Ele não tem nenhuma maneira de desistir desta operação: o Führer, o líder, não sobrevive na derrota, por isso ele só pode avançar. Onde é que isto pode parar? Não sei. A Ucrânia tornou-se vital porque os acontecimentos em Kiev enviaram o sinal errado ao povo russo. Para Putin, a Crimeia é o gatilho. Por isso acho que ainda avançará mais: ele quer remover o Governo ucraniano. Por isso fez todas aquelas declarações a dizer que não reconhecia o Governo, e por isso a Rússia quer todas estas mudanças constitucionais para tentar travar as eleições a 25 de Maio. Esse é um momento importante: se a Ucrânia conseguir sobreviver sem grande agressão até essa data, realizar as eleições e ter um Presidente e um Governo legitimamente eleito, Putin perdeu o jogo. E é por isso que ele está a tentar provocar a instabilidade no leste da Ucrânia. Hoje vemos as notícias e são os provocadores russos que passam a fronteira para criar tensão e tentar atiçar a violência.

Quer dizer que não está optimista quanto a uma resolução da crise. Antecipa uma invasão militar russa na Ucrânia?
Não o excluiria. Estou muito preocupado que esta resposta fraca da América possa dizer a Putin que ele ainda tem muita margem de manobra para a expansão. Não estou nada optimista. A única forma de parar um ditador é demonstrar força. Até agora o Ocidente não mostrou força nenhuma, voltamos a ouvir sussurros de uma possível solução diplomática. No minuto em que começam a sussurrar, Putin vê isso como uma fraqueza. Os ditadores crescem e fortalecem-se com as fraquezas ou indecisões dos seus adversários. Se não mostrarmos firmeza e determinação, eles tornam-se arrogantes.

Em 2007, desafiou Vladimir Putin ao candidatar-se à presidência da Rússia, mas nas suas entrevistas recentes diz sempre que não está disponível para concorrer novamente.
Vamos ser precisos: na Rússia ninguém se candidata. Mesmo em 2007, que era um estado vegetativo comparado com o que se passa agora, não se tratava de uma candidatura, mas sim de demonstrar que as condições [políticas] não eram justas, nem sequer próximo. Aqui em Portugal uma candidatura implica um partido político, uma campanha na televisão, a recolha de fundos…, tudo isso está fora de questão na Rússia de Putin. Lá, se uma pessoa faz uma declaração política, está posta de lado. Por isso, a candidatura fazia parte do meu protesto contra as violações dos procedimentos democráticos e dos direitos humanos básicos.

Perdeu o interesse na política?
A política pode existir em muitos formatos. O actual processo eleitoral na Federação Internacional de Xadrez (FIDE) é muito político; tem dois pólos: por um lado temos o senhor [Kirsan] Ilyumzhinov, o incumbente, que é totalmente apoiado pelo Governo da Rússia. As embaixadas russas têm estado a desenvolver uma campanha pela sua eleição em todo o mundo, como se fazia dantes. E eu estou novamente a lutar contra a ditadura Putin, mas noutro território. A diferença é que neste território eu tenho uma hipótese de ganhar. E aqui eu posso fazer campanha em vez de estar a lutar contra a polícia de choque.

Quer dizer que não voltará a fazer campanha pela Frente Civil Unida?
A Rússia é uma ditadura. Quando me perguntam por que deixei a Rússia, em Fevereiro de 2013, eu respondo: voar para a Rússia agora seria uma viagem sem volta. E eu acredito que posso ser mais activo e útil fora da Rússia. Agora durante a crise ucraniana, não creio que pudesse ser muito útil se, na melhor das hipóteses, estivesse em prisão domiciliária em Moscovo. Assim, posso escrever editoriais, posso dar entrevistas, todos os dias o meu Twitter tem mais seguidores. Posso fazer muito mais coisas aqui do que se estivesse em Moscovo, isolado do resto do mundo. Ter outro mártir numa cadeia russa não ajudaria o mundo a confrontar o regime de Putin.

Como é que classifica a sua actividade política? Vê-se como um dissidente, como um provocador?
Eu sou um activista dos direitos humanos. Tudo o que eu fiz na Rússia foi lutar por direitos fundamentais. Muitas pessoas não acreditam, mas eu nunca tive ambições políticas na Rússia. Para mim era suficiente criar as condições para que existisse igualdade e concorrência e o país pudesse avançar confortavelmente na direcção certa. Nunca me vi como um homem que queria desempenhar funções executivas.

E como é que avalia Vladimir Putin? Como estudioso da História, há alguma personagem histórica com quem o compare?
Sim, com Adolf Hitler. Fui o primeiro a dizê-lo e fui muito criticado, porque Hitler representa o mal absoluto. Mas o que eu digo é que o algoritmo por detrás das acções de Putin é similar ao de Hitler. Em geral, sou muito cauteloso a fazer paralelos históricos, mas alguns paralelos são muito naturais, por exemplo, os Jogos Olímpicos de Berlim (1936) e de Sochi (2014). Porque é que não comparo por exemplo com Pequim (2008) ou até Moscovo em 1980? Porque esses foram construídos para promover o regime, o importante ali era o sistema. Agora era tudo Putin, como em 1936 era tudo Hitler – ou seja, duas olimpíadas foram construídas em torno de uma pessoa. Para promover, não o Estado, mas o triunfo da vontade de uma pessoa: os Jogos Olímpicos são como uma espécie de droga intoxicante para ditadores. Agora, Hitler demorou dois anos antes de começar ataques maciços contra a Áustria; Putin demorou duas semanas a começar a sua agressão contra a Ucrânia. Portanto, se quisermos comparar o calendário, estamos agora como em 1938, e a Ucrânia e a Crimeia são o ponto de viragem. Se o Ocidente pestanejar, passamos a 1939. Mas podemos aprender com a História, e assim mudar a História. Não acho que seja inconcebível pensar que Putin um dia poderia carregar no botão, e ao contrário de Hitler, ele tem armas nucleares. Podemos ver como o homem está cada vez mais paranóico.
 

Foi muito crítico dos Jogos Olímpicos de Sochi. Imagina que dentro de quatro anos, quando a Rússia receber o campeonato do Mundo de Futebol, o processo será semelhante? O Mundial servirá para a legitimação política do regime, ou em quatro anos muita coisa mudará?
Penso que mais vale pensar no que vai acontecer nos próximos quatro meses e até quatro dias. Espero sinceramente que o regime de Putin não sobreviva durante tanto tempo, porque já estamos a ver os danos que ele pode causar, hoje, em 2014. Acho que se sobreviver mais quatro anos, o mundo ficará quase à beira da Terceira Guerra Mundial. A cada semana que passa, Putin fica mais louco, e não vejo que isto possa continuar por mais quatro anos. Nas actuais condições económicas, não creio que a Rússia seja capaz de organizar um evento como o Mundial. Senão vejamos: só Sochi custou 52 mil milhões de dólares. Agora para o futebol – e basta ver o que está a acontecer no Brasil – estamos a falar de dez cidades diferentes. A Rússia é um país muito grande, vai ser preciso construir muita infraestrutura. Não penso que a economia russa consiga sobreviver à corrupção de larga escala que será absolutamente inevitável. Mesmo em condições normais seria um enorme desafio: nas actuais condições, com o potencial efeito das sanções e o impacto na economia da anexação da Crimeia, acho que o melhor é começar a apostar que o campeonato de 2018 não se vai realizar na Rússia, porque não me parece possível.

Na altura em que competia, os xadrezistas eram umas verdadeiras estrelas pop. O que é que aconteceu com o xadrez que justifica a diminuição do interesse e da atenção dos media?
É um paradoxo, porque se olharmos para o número de pessoas que jogam xadrez agora é significativamente maior do há 40 anos ou 25 anos. Mas é verdade que já não aparece nas primeiras páginas dos jornais, onde aparecia quando eu jogava contra [Anatoli] Karpov nos anos 80. Nessa altura, havia um elemento de Guerra Fria nos jogos, União Soviética contra os Estados Unidos. E nos meus jogos contra o Karpov, era a Perestroika contra a velha União Soviética. Agora, apesar de haver mais pessoas a jogar xadrez, a concorrência é tremenda: há muitos outros desportos e muitos outros jogos. E aí, entroncamos num problema maior para o xadrez, que é a má gestão da federação internacional (FIDE).
Durante 19 anos temos perdido muitas oportunidades para apresentar uma nova visão para o xadrez. Hoje em dia não faltam patrocinadores, o que é preciso é uma boa ideia e uma boa apresentação. O xadrez toca várias áreas fundamentais: a educação, as redes sociais, a tecnologia, e há muitas coisas que podemos fazer. Apesar de o xadrez não ser concorrente do futebol ou basquetebol no que diz respeito às atenções no grande ecrã, quando passamos para o pequeno ecrã, tem muitas vantagens competitivas. Num ecrã de telemóvel, pode-se jogar, pode-se aprender xadrez, podem-se seguir torneios. Tem tudo a ver com a criatividade e a gestão, e é por isso que eu acredito que se me tornar o presidente da FIDE em Agosto as coisas podem facilmente dar a volta. Existe o potencial, mas isto não é elementar: há que investir o nosso tempo, energia e reputação.

Além da candidatura à presidência da FIDE, que ligação ainda mantém actualmente com o xadrez? Ainda joga? 
Deixei de competir profissionalmente há nove anos, embora ainda faça jogos de exibição e muitas sessões com crianças, através da Fundação Kasparov. Mas a minha actividade profissional acabou.

Agora é mais xadrez político…
Continuo muito comprometido com a promoção da educação do xadrez em todo o mundo, e a Fundação Kasparov está em Nova Iorque, Bruxelas, Joanesburgo, Singapura, vai abrir dentro de três semanas na Cidade do México. Continuo activamente a promover o xadrez.

Há alguns meses, solicitou a cidadania croata. É um seguro de vida?
Não é o meu seguro de vida, mas é a minha garantia de viajar em liberdade. Ao viajar com um passaporte russo, sabia que a qualquer minuto poderia ser minado pelo Governo, e com a minha actividade, precisava de ter a possibilidade de me deslocar livremente. Como já estava a ficar sem páginas no meu passaporte, e tinha zero hipóteses de o renovar, estudei as minhas várias opções.

Acha que Putin tem um problema pessoal consigo?
É pessoal. Mas também é essa a estratégia do regime, que tem de se certificar que neutraliza as pessoas mais perigosas entre a oposição. Nesse aspecto, é tudo muito pessoal – Putin não se pode dar ao luxo de fazer repressão em massa, como fez por exemplo Estaline. Eles tentarão sempre manter a escala reduzida, algumas centenas de prisioneiros políticos, mas não milhares, porque sabem que se forem longe demais, o regime não tem a estabilidade necessária para aguentar.

Pretende instalar-se na Croácia?
Não, tenho uma casa alugada lá, mas vivo em Nova Iorque. A minha mãe ainda está em Moscovo.

Vai renunciar à cidadania russa?
Não. Esse era o grande desafio na escolha de outra nacionalidade. Por exemplo a Estónia, um país com que tenho alguma ligação, não era uma possibilidade porque a legislação não prevê a dupla nacionalidade.

Pensa alguma vez voltar a viver em Moscovo?
Nunca digo nunca. Já tive tantas mudanças na minha vida. Agora vivo em Nova Iorque, embora passe mais tempo em aviões. Mas o mais provável é que volte a Moscovo, não acredito que o regime de Putin vá durar para sempre. Aliás, espero que não dure muito mais tempo. Ainda sinto que tenho obrigações e responsabilidades de ajudar o povo da Rússia. Mas neste momento o meu país foi feito refém por um gangue de criminosos.

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