Quem quer ser negro no Brasil?
Breve geografia do racismo à brasileira e a pergunta: pode o país eleger um Presidente negro em breve?
Em Dezembro, Ariana Reis, 32 anos, chegou ao fim de 14 anos dedicados à universidade: três de preparação para as provas de acesso, cinco do curso de Pedagogia, seis do de Medicina. No convite para a cerimónia de formatura, terminava com o seguinte: “Sou mulher, sou negra, sou da favela e hoje sou médica.”
Porque “é difícil”. Porque Ariana é a grande excepção num Brasil onde é raro encontrarem-se médicos negros nos hospitais. A “caçula” de 12 irmãos foi a primeira a ir para a universidade. Era a única mulher negra da sua turma na Faculdade de Tecnologia e Ciências da Bahia. Em seis anos a estudar Medicina, cruzou-se com apenas duas estudantes negras de outros anos. “Nos hospitais sempre me confundem com a menina que limpa o chão. Se cai qualquer coisa: ‘Você vem aqui, pega o pano, limpa.’ Quantas vezes eu já ouvi isso? Muitas vezes. [Olham para mim]: ‘Ah, é a enfermeira, a técnica.’ Se estou sentada lá na mesa — sabem que é um médico que está ali na mesa — [perguntam]: ‘É você? Ah…’” E Ariana responde: “Vou chamar a pessoa responsável por isso.” Ou então mostra o distintivo na bata: “Está aqui, sou médica.”
Isto acontece com pacientes brancos e negros: “Na verdade, os brancos ficam mais impressionados. Os negros me abordam mais porque não estão acostumados a ver na sua comunidade pessoas em cargos assim de mais prestígio.” Ariana tenta mudar o olhar de quem a ofendeu: um negro não faz só limpezas, é possível que uma médica seja negra.
De facto, ela raramente se cruza com médicas negras — médicos ainda vai vendo, mas poucos. Cresceu a ouvir: “Negro não presta.” E por isso: “Cresci dizendo: ‘Meu Deus, eu sou negra e negro não presta.’ Não tinha orgulho de ser negra. Meu pai era o primeiro a dizer que negro não presta, que negro faz sempre coisa ruim e que não é para ter orgulho de ser negro — ele sendo negro.”
Mas o pai, pedreiro, morreu com orgulho da filha negra. Estava bastante doente, com Alzheimer, quando Ariana soube que tinha conseguido a bolsa para entrar em Medicina — cancelando assim o curso de Pedagogia que estava quase no fim. Chegou a casa, e contou: “Pai, passei em Medicina. Eu acho que ele entendeu. No outro dia faleceu. Isso é uma dor para mim. Ironia do destino, né? Filha passando em Medicina, pai falecendo no outro dia.”
Apesar de tudo, quando pedia dinheiro para livros, para a escola, ele dava. “Era o maior sacrifício.” Mas ele dava. Na época de aulas, tinha o costume de a esperar à noite nas paragens de autocarro, porque o bairro era perigoso e “tem que ficar olhando”. “Sempre me incentivou. Sempre.”
Ela cresceu a ouvir que negro não presta, mas cresceu também a dizer que queria ser médica. Aos 15 anos, estava num hospital com o sobrinho que tinha caído. Virou-se para o médico, até ali brincalhão, “dando risada”, e disse: “Olha, eu estudo muito para ser médica como você.’ Houve um silêncio da parte dele. Aquele que estava brincando, sorrindo, conversando com a gente se fechou. E aí, como eu falo muito baixo, [pensei] que ele não ouviu, falei mais alto: ‘Olha eu estudo muito porque quero ser médica como você, como o senhor.’ Aí ele virou, olhou para mim como se dissesse: ‘Ponha-se no seu lugar, você não vai conseguir.’ [Pausa] Saí dali arrasada. Arrasada.”
Tinha levado “um balde de água fria”. “Mas não desisti por isso, não.” Afinal, Ariana é conhecida por ser “do contra”: “Se tinha aquilo para fazer e ninguém conseguia, eu ficava, ficava, ficava até conseguir.”
Tentou Medicina, antes de entrar em Pedagogia, por três vezes. Numa delas, em que “não passou”, chegou a casa, à varanda de um apartamento numa favela, e “chorou, chorou, chorou”, lembra a mãe, no mesmo sítio, agora numa noite de Fevereiro, já com a filha formada. E o irmão a dizer-lhe: “Você vai alcançar, vai alcançar.”
O irmão não está em casa da mãe na noite em que lá vamos, mas estão algumas das irmãs, sobrinhas e sobrinhos. Os jovens sentam-se na sala, logo à entrada, agarrados aos telemóveis e a olhar para o ecrã da enorme televisão. Vê-se logo a fotografia da cerimónia de formatura de Ariana, em formato gigante: ela de bata, cabelo arranjado, maquilhada. Morro acima, vivem as irmãs, noutras casas. Foi naquela sala que ela estudou e continua a estudar Medicina, com gente a entrar e a sair. No edifício ao lado, fiéis de uma Igreja Evangélica cantam alto, batem palmas.
Quando entrou em Medicina, pagava três mil reais por mês (cerca de 920 euros) — mas tinha uma bolsa do ProUni, um programa do Ministério da Educação que paga 50% da mensalidade a alunos em instituições privadas. Quando estudou Pedagogia, fê-lo ao abrigo das cotas raciais, uma das políticas de acção afirmativa no Brasil que pretendem aumentar a percentagem de população negra nas universidades.
No segundo país com a maior população negra do mundo a seguir à Nigéria, ser negro é pertencer a uma maioria de 51% da população de 200 milhões. Mas o último Censos, de 2010, mostrava que apenas 26% dos universitários eram negros; e apenas 2,66% dos alunos que terminaram o curso de Medicina eram negros, num estudo feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais para o canal UOL. Estes números explicam-se, em parte, com a despesa da educação no Brasil: quem estuda em escolas privadas até ao fim do secundário tem mais hipóteses de entrar nas universidades públicas, as melhores.
Para conseguir pagar a universidade privada, Ariana fez uns trabalhos avulsos, como limpar a casa da irmã ou ajudar alguns colegas na faculdade. “É muito difícil. Consegui entrar na universidade porque cheguei num tempo em que meus irmãos já estavam trabalhando e puderam me ajudar também. As cotas ajudam e muito. Como é que a gente que vem da escola pública vai concorrer com esse pessoal da escola privada que não passou por greves de professores e de funcionários? É-lhes cobrado desde que nascem: ‘Vocês têm que ter um nível superior.’ Têm espelhos na família: médicos, engenheiros, professores. Nas famílias pobres, a maioria negras, a mãe é dona de casa, o pai é pedreiro, o pai está desempregado, o pai é bandido, o pai é ladrão.”
Ela estava entre os melhores da turma, diz. Em cirurgia, foi considerada a aluna-padrão. A diferença em relação aos outros é que tudo custava muito mais: saía de casa de madrugada para não apanhar engarrafamentos e garantir que estava nas aulas a tempo e horas, fazia “ginástica” ao dinheiro porque tinha de passar um dia inteiro fora de casa, tinha de comprar livros caríssimos, alguns a “mil, dois mil reais”…
Voltamos à história do convite. Queremos saber o significado daquela frase que ela colocou no final: “Mulher já é discriminada por si só, tem salários inferiores aos dos homens, se for negra ainda pior. Da favela, o pessoal acha que é ladrão. Virei médica: isso é possível.”
Para se ter uma ideia do que diz: com o mesmo nível de escolaridade, as mulheres brancas ganham 68,7% do salário dos homens brancos, enquanto os homens negros ganham metade e as mulheres negras menos ainda, 38,5% (dados retirados do estudo Igualdade Racial no Brasil: reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes, 2013, IPEA).
Ariana está num hospital militar como voluntária (mas tem um salário). Quer fazer bancos em hospitais do interior para ganhar algum dinheiro e estudar para fazer a prova de cirurgia geral. “Vou cursar dois anos de cirurgia geral em hospitais e terminando os dois anos vou prestar novamente prova para fazer residência em cirurgia pediátrica durante três anos.” Cirurgia porquê? “Gosto de resolver. E cirurgião resolve muito.”
“O país sempre foi racializado”
Nos seis anos em que ensinou Antropologia da Saúde no curso de Medicina na Pontífice Universidade Católica (PUC), Acácio Almeida não teve um único estudante negro brasileiro. “Precisamos de fazer com que os meninos negros estejam nos cursos de Engenharia, de Medicina, de Direito”, diz, no pátio interior da PUC em São Paulo, uma das universidades onde dá aulas (a outra é a Faculdade de Campinas).
As cotas raciais no Brasil já existem há mais de dez anos: a Universidade de Brasília, a primeira federal a fazê-lo, tem-nas desde 2004. Mas só em 2012 é que passaram a ser obrigatórias nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia, dividindo-se assim: 50% para alunos que estudaram nas escolas públicas (e que tenham baixos rendimentos) e, dentro destas, uma percentagem para negros (“pretos” e “pardos”, como define o Censos) e para indígenas proporcional à do Estado onde está a instituição.
Doutorado, o primeiro na família toda a ter uma licenciatura, Acácio Almeida, 48 anos, regressa ao tempo das discussões sobre políticas de acção afirmativas antes de estas serem implementadas, algo que gerou, e continua a gerar, acesas discussões: “O argumento contra as cotas defende que vêm racializar um país que nunca foi racializado. Mentira! Esse país sempre foi racializado, as pessoas é que não tinham vergonha na cara para se perguntarem porque é que não há estudantes negros dentro de uma sala de aula. Preencher as fichas a dizer de que raça somos é essencial porque precisamos de saber quantos [negros] são, onde estão, em que lugares estão — e estão nas periferias, não estão nas universidades, estão nas piores condições de saúde.”
No geral, o número de alunos no ensino superior aumentou bastante entre 2001 e 2010: 109%, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais, passando de 1,7 para 3,3% da população brasileira. Porém, a desigualdade persiste: 2,3% dos negros e 4,3% dos brancos estavam na universidade, de acordo com o Censos 2010.
Estes são números que se espelham nas relações raciais diárias. Já depois de ascender socialmente, Acácio Almeida foi tendo vários episódios de discriminação. Exemplos: estava parado num estacionamento à espera que o empregado lhe viesse trazer o carro. “Não estava com uniforme de quem trabalha no estacionamento, e o cara chega com um ticket para mim…” Mais exemplos: “Fui dar um curso de formação de questões raciais para funcionários da saúde na prefeitura. As pessoas começam a chegar. Vem uma mulher que se vira para mim e não teve dúvidas: ‘O senhor é vigia de que unidade?’” Na defesa da sua tese, estava de fato e gravata, no prédio da universidade, e havia “um cara transportando coisas com um carrinho de mão”. “Aí, ele me viu e falou: ‘Ei irmão, dá uma força aí!’ Isso para mim foi super-significativo. Posso ter um doutorado, mas ainda me identificam como pobre.”
Na dúvida, diz sempre: “É, sim, racismo.” “Porque vivemos num país racista, então prove que a sua atitude não é racista.”
Transformação lenta
Se alguma vez pediram a Carlos Alberto Reis de Paula para “dar uma força aí, meu irmão” no Tribunal Superior do Trabalho (TST), não sabemos. O primeiro negro a presidir a esta instituição e o primeiro magistrado negro num tribunal superior do país em 1998 (o próprio TST) prefere que os episódios de racismo de que foi alvo durante a vida “fiquem nas brumas da história”.
Encontramo-lo em finais de Janeiro, em Brasília, pouco antes de deixar de ser o presidente do TST — atingiu o limite de idade, 70 anos, em Fevereiro. No caminho até ao TST, atravessámos a esplanada dos ministérios, passámos pelos inúmeros edifícios ministeriais, vimos o Senado, andámos no meio do centro do poder. Vimos o edifício do Ministério de Relações Exteriores — que até 2010 nunca tinha tido um diplomata negro no cargo de embaixador (segundo a BBC).
E aí pensamos: com quantos colegas negros em posições idênticas à sua é que Carlos dePaula se cruza todos os dias? “Veja só: quando fui nomeado e tomei posse como ministro do Tribunal Superior do Trabalho, a 25 de Junho de 1998, eu era o primeiro ministro [magistrado] negro num tribunal superior de justiça aqui no país. Através dessa conscientização, a situação modificou. Em 2003, tivemos a nomeação do primeiro negro para o Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, que hoje é presidente dessa corte maior aqui no Brasil [e o juiz do processo ‘mensalão’]. Temos já a presença de negros no Supremo Tribunal de Justiça, que é um facto extremamente relevante. É um processo de conscientização e é um processo pelo qual o Brasil vai-se transformando.”
Isto falando do poder judiciário, porque quanto aos outros órgãos de poder “a proporção é sempre muito reduzida”. “O Brasil está-se transformando mas é uma transformação lenta.” Por exemplo, “se fizer uma análise da sociedade, vai notar que a presença de negros é muito reduzida nas posições de comando, das empresas privadas, das empresas públicas e da própria administração pública”. E vamos descobrir também que negros e brancos continuam com salários desiguais: em 2013, os negros ganharam mais de metade (57,4%) que os brancos, revelou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
“Se [dissesse] que o Brasil é um país em que não há discriminação, não estaria sendo fiel aos factos”, comenta. “Não podemos esquecer que o Brasil foi um país de escravidão de negros que vinham de vários países de África. Essa escravidão perdurou até 1888, por quase 400 anos. Isso é uma marca na formação cultural de um povo. A própria Constituição diz que a discriminação é um crime: se prevê, é porque ocorre. Essa discriminação, através de políticas públicas, gradualmente vai-se reduzindo.”
Mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), região onde nasceu, foi professor na Universidade de Brasília (UNB), onde participou no debate e introdução de cotas para alunos, uma “atitude pioneira em relação à universidade pública”, diz. Porém, não existem cotas para professores negros, e a sua presença na UNB era “muito reduzida mesmo”. “Dos mais de 300 professores, não havia dez professores negros”, recorda o professor que se reformou em 2012.
Mas acções afirmativas existem há muito mais tempo, lembra o ministro. “A grande descoberta do Brasil foi a partir da Constituição de 1988, um marco. Estabeleceu como valor último a cidadania e universalizou os direitos em relação à cidadania.” Por exemplo, “está expresso que os portadores de deficiência terão 10% das reservas em concurso público”; “que as mulheres têm de ter uma participação na vida política brasileira” e para isso a legislação “assegura determinado percentual”. Mais: “Quando se cuida da estruturação da ordem económica e financeira do país, diz-se que as empresas brasileiras pequenas, constituídas apenas por brasileiros, têm de ter leis que as protegem em relação à concorrência de outras empresas maiores. Isto são modalidades de acção afirmativa.”
Não há dúvida de que o Brasil precisa das cotas raciais, defende. Porquê? “O Brasil tem mais de 50% [de negros], mas isso não se retrata dentro das universidades, nem nos demais segmentos no país. Se quero buscar cidadania, tenho de dar igualdade de oportunidades a todos e para isso obrigatoriamente tenho de passar pelo ensino. A grande tese reside aí: criar oportunidade para todos concorrerem de forma igual. Para isso [as pessoas] têm que ter tido a oportunidade de se qualificar e passado obrigatoriamente pela universidade.” Este não deve, porém, ser um trabalho isolado, deve ser feito em paralelo com o “aprimoramento” do ensino básico e secundário público, diz, porque tem sido “reservado àqueles que têm piores condições económicas e sociais”, e “não há uma boa estrutura nas escolas, os professores não são valorizados, os recursos pedagógicos são reduzidos” e há ainda muitas desistências.
Como é que a sua experiência o levou onde está, então? Natural do interior de Minas Gerais, da cidade Pedro Leopoldo, estudou Filosofia e Teologia, fez depois “um bom curso na Faculdade de Direito”. A mãe era doméstica, o pai, que se formou em Engenharia Agrónoma em 1933, foi “um exemplo maravilhoso”. Era de uma família pobre — o avô era porteiro de uma secretaria de Estado e a avó era também doméstica, “praticamente não tinham recursos”. “O meu pai, sempre sonhador, gostava de estudar e lutava com dificuldade.”
Gradualmente, os negros têm vindo a ocupar espaços públicos na sociedade, nota. Carlos de Paula formou-se, foi professor, foi juiz e sente que “a gente passa a não sofrer a discriminação que boa parte das pessoas sofrem”. Quer dizer, “no Brasil, temos uma discriminação em relação aos pobres, os pobres são discriminados, mas de forma especial os pobres que são negros e de forma especial as mulheres que são negras”.
“Escravidão mental”
Aline Teles, 31 anos, aprendeu a gostar de si própria no Instituto Biko, um organismo em Salvador que promove a ascensão política e social de negros e tem vários programas, como a preparação para o vestibular (o exame de acesso à universidade).
O Biko é uma referência para muitos jovens. Ariana Reis diz mesmo que há um antes e um depois do Biko na sua vida. Para Aline Teles, estudante de humanidades e políticas da cultura na Universidade Federal da Bahia, também: antes, esticava o cabelo, usava rabo-de-cavalo, não gostava de se ver no espelho. “A gente não se aprende a gostar, a se valorizar. Só comecei a gostar do meu cabelo do jeito que ele é, a assumir ele dessa maneira, depois que passei pelo instituto, pelas aulas de Cidadania e Consciência Negra.”
Aprendeu a gostar de um cabelo “crespo” e da cor da sua pele. Fez todo “um processo muito doloroso”, porque “isso mexe muito com a gente”. “Até você se olhar no espelho e dizer: ‘Puxa, você é bonita desse jeito, seu cabelo é lindo.’ E entender porquê tanta discriminação a gente sofre, de uma criança olhar para a outra e dizer: ‘Não vou falar com você porque o seu cabelo não balança…’”
No Biko, Aline começou a “olhar-se” ainda a outro espelho, o dos modelos, e a ver professoras que usavam cabelos naturais ou a ouvir falar de personagens históricas que lutaram como lutou o próprio Biko, activista sul-africano contra o apartheid.
Antes de Barack Obama ter lançado a campanha “Yes, we can” já o Instituto Steve Biko proclamava “sim, nós podemos”, diz Sílvio Humberto, um dos fundadores.
Sílvio Humberto define-se como classe média — a família não o é, os pais lutaram bastante para que ele estudasse em escolas privadas. Hoje é vereador na prefeitura de Salvador pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). “Sou a excepção: 50 anos, doutorado, funcionário público. A regra é as pessoas negras não chegarem [a lugares de topo], independentemente da sua vontade. E você precisa de questionar por que é que não chegam.”
Sentado no seu pequeno escritório em Salvador, com o retrato de Nelson Mandela atrás, Sílvio Humberto explica que essa afirmação positiva é importante porque o racismo entra de tal forma na cabeça das pessoas que se torna “uma espécie de escravidão mental”.
Por isso, no Biko, há a disciplina Cidadania e Consciência Negra, onde se dão ferramentas aos alunos para enfrentarem o racismo de frente, se trabalha a auto-estima e se tenta incutir o espírito de que os sonhos dos alunos são possíveis. O instituto passa a mensagem aos estudantes: “Busque o seu sonho, o seu sonho precisa de ser a sua primeira escolha.”
Foi no Biko que Ariana Reis, por exemplo, encontrou quem tivesse acreditado no seu sonho de ser médica. Encontrou também uma identidade, passou a ter “orgulho em ser quem era, em ser negra”. “E consegui mudar todos à minha volta”, conta. Levava os sobrinhos, a mãe para palestras. Mostrava: “Aquele dali é advogado, aquele aí é economista, aquele ali é engenheiro. Nunca tinham visto tantos negros com cargos de prestígio juntos.”
Fundado em 1992 por pessoas ligadas ao movimento negro, o Biko tinha e continua a ter como objectivo aumentar o número de estudantes negros nas universidades. Em 21 anos, “cinco mil pessoas foram beneficiadas pelas acções do instituto”, calcula Sílvio Humberto. “A grande conquista do instituto é colocar a universidade dentro do projecto de vida e de trabalho da população negra”, diz.
Quanto às cotas, “perdemos tempo”, parecemos “um cachorro atrás do rabo”, quando questionamos a sua pertinência “dentro desse discurso de conservadorismo racial que defende que raça não existe”: reforça-se, assim, o “mito da democracia racial que considera que o problema é social”. Voz convicta: “Desigualdade racial promove desvantagem social e não o contrário.” Paradoxo: “O que o mito da democracia racial vai proporcionar é essa des-racialização dos conflitos. Você chega a um ponto que acha que o problema é social — e isso até chega à cabeça dos negros. O racismo é tão complexo que não é uma questão de maioria, não são números. Essa maioria precisa de se reconhecer como maioria racializada. Enquanto achar que é uma maioria, mas não politiza o facto de ser uma maioria e não reconhece politicamente que há uma desigualdade racial, você vai achar que não há tratamento diferenciado. Somos todos iguais, mas as oportunidades que temos não são.”
Talvez por isso, como conta a estudante Layane Fonseca, 26 anos, “há muitos estudantes que têm vergonha de dizer que são cotistas”, como ela. O que critica: “Enfraquece toda a luta que o movimento negro teve para se constituírem as cotas.”
Perversidades do racismo
Em Salvador, dia 2 de Fevereiro, é dia de culto a Iemanjá, rainha do mar, um dos orixás venerados por religiões afro-brasileiras como o candomblé.
A festa acontece em Rio Vermelho e começa de madrugada, com a peregrinação ininterrupta à capela da colónia de pescadores. São 7h, o sol já vai alto e as ruas em volta da praia estão cheias, mas nada que se compare com o que irá acontecer umas horas mais tarde: um mar de gente compacto a fazer a festa em cada canto.
Na areia, grupos de negros e brancos, brasileiros e muitos turistas esperam que os barcos levem as oferendas: espelhos, flores, bonecas, todo o tipo de objectos. Uma primeira observação: estamos em frente a um exemplo da miscigenação racial harmoniosa no Brasil. Há pessoas de todas as cores, a festa é importante para os negros, brancos também veneram Iemanjá. Mas olhamos à volta: porque é que a representação da deusa da fertilidade só é feita com figuras brancas, de cabelos lisos, tirando umas T-shirts que nos irão levar à festa Iemanjá, é Black, e que têm estampada uma mulher com caracóis?
“Ainda estamos a desconstruir o mito da democracia racial”, diz a historiadora Wlamyra Albuquerque, que nos irá guiar pelas fronteiras do racismo na festa, tentando “desmontar” um mito que “aprisiona até hoje” os brasileiros. “O facto de a festa reunir pessoas diferentes não quer dizer que elas se reconheçam ou vivam como iguais. Há uma democracia no sentido de circulação em espaços como a praia, por exemplo, mas nem todas as pessoas circulam em todos os lugares sem distinção.”
Passados tantos anos, o Brasil ainda está refém desse conceito sobre a especificidade das relações raciais brasileiras propagado por Gilberto Freyre nos anos 1930: a democracia racial era fruto de uma espécie de brandura da colonização e escravatura lusas. Certo, nunca existiu uma política de segregação racial no Brasil, como nos Estados Unidos e na África do Sul. Mas o país construiu-se socialmente “entendendo que brancos e negros são diferentes e ocupam lugares diferentes na estrutura social”, contextualiza Wlamyra Albuquerque. “Não é preciso ter placas proibindo a entrada de negros porque isso está posto no modo como os lugares são construídos e no tipo de público que atraem. Essa subtileza, essa forma quase imperceptível de estabelecer fronteiras, é das coisas mais perversas da sociedade brasileira: cada qual sabe qual é o seu lugar.”
É por essa geografia que vamos circulando com Wlamyra, então. Professora na Universidade Federal da Bahia, especialista em relações raciais e escravatura, autora de livros como O Jogo da Dissimulação e de Uma História da Cultura Afro-Brasileira, com Walter Fraga Filho, ela vai-nos mostrar a forma como a sobreposição entre condição social e condição racial se processa numa das festas mais populares da Bahia.
“Salvador é a boca por onde entraram os africanos escravizados, mas também todas as culturas africanas que recebemos e reinventámos”, diz. “Então a importância de Iemanjá está no facto de a gente não deixar esquecer esse passado da forte presença dos povos africanos.”
Chegam rodas de dança, festeiros, chegam mães e pais de santo, chega o candomblé, a religião popular na Bahia, para prestar homenagem a Iemanjá. Mas aqui também se pode sambar e beber, por isso multiplicam-se as feijoadas privadas onde se paga para entrar. O lado festivo faz “parte das culturas africanas reinventadas na Bahia e é uma maneira de expor publicamente a força das culturas negras nesse país”, diz.
Atravessamos o mar de gente e paramos a olhar a fila imensa que se disponibilizou a esperar horas para entregar uma oferenda. Enquanto isso, Wlamyra guia-nos com as lentes da divisão racial: “A presença do povo de santo não é reprimida mas, por outro lado, há tentativas de mostrar essa festa como uma festa ‘clean’. Se formos para os grandes hotéis, há banquetes e samba, encontramos várias referências das culturas negras, só que não encontramos negros. Mas é certo que [negros] estejam servindo em bandejas ou tocando para que as pessoas dancem. Isso parece um paradoxo, mas explica o modo como as relações raciais se reconstroem no Brasil: não se nega a importância das populações negras, mas isso não quer dizer que se aceite a presença dos negros, mesmo em lugares como a Bahia, em que os níveis de desigualdade sócio-raciais são muito fortes.”
No momento em que falamos, passa um grupo de jovens brancas, vestidas de hospedeiras de bordo, caracterizadas para um pequeno show algures. Wlamyra comenta: “Todo o padrão de beleza continua sendo branco no Brasil. Basta olhar as campanhas publicitárias, as mocinhas das telenovelas, todas as personagens correspondem a um padrão estético marcadamente europeu. As nossas principais representantes de beleza são mulheres brancas, esguias, que deixam de fora qualquer pertencimento à condição racial negra.” Como mulher, como é que Wlamyra sente isso? “Eu acho que sou linda!”, ri-se. “Sinceramente, acho que há um certo desperdício dos media brasileiros, uma falta de inteligência no modo como pensam os padrões de beleza. Ficam à volta de modelos que estão em todos os lugares.”
Continuamos a andar, paramos em frente a um grupo que ensaia capoeira, em tempos considerada crime, por isso o facto de estarem aqui “é uma forma de se reafirmar a população negra no espaço público” e isso “é simbolicamente dito sem ser verbalizado”. Passa uma criança a vender água e sumos: não tem mais de dez anos. Wlamyra aponta: “Você não vê criança branca vendendo.” E: “Note que a grande maioria dos vendedores de rua é negra, não há branco servindo na festa, todos os que servem ou nos oferecem coisas para comprar são negros”, diz. “[É preciso] questionar o modo como se naturalizou a condição de subalternidade dos negros. É responsabilidade de todos, independentemente da cor da pele, de desconstruir essa naturalização.”
Alguém apregoa a venda de rosas atrás de nós. “Por exemplo, uma rosa custa 12 reais. Ela tem que ser sempre molhada, cuidada. [Alguns vendedores vêm para aqui dormir dois dias antes]. É muito esforço para ganhar pouco dinheiro. Isso mostra o nível de pobreza que ainda existe.”
Nascida na periferia de Salvador, Wlamyra é filha de uma dona de casa e de um militar de baixa patente e sempre estudou em escolas públicas. Até que teve um professor que a provocou a ir para a universidade numa altura em que ainda não havia cotas. Trabalhava de dia, estudava à noite. Ascendeu socialmente e mesmo assim continua a viver episódios de racismo. Recentemente, entrou num consultório médico numa área rica da cidade e teve alguém a perguntar: “A senhora tem a certeza que vai a esse prédio?”
Os rolezinhos, por exemplo, são, para ela, um exemplo de que a “melhoria da condição económica do país está deixando claro o quanto a democracia racial no Brasil é uma farsa”, pois “não se trata só de ter ou não dinheiro”. (Os rolezinhos provocaram polémica no final do ano passado porque grupos de jovens da periferia, alguns negros, marcavam encontros em shoppings criando o pânico entre lojistas e segurança.)
Passa um grupo de meninas vestidas de azul, cada qual com tom de pele diferente. No Brasil, o Censos divide racialmente a população em pretos e pardos (negros), amarelos, indígenas e brancos. “Uma das coisas que mais intrigam é entender como no Brasil é possível o racismo”, já que há tanta mistura. “As pessoas sabem que quanto mais elas se aproximam de um modelo branco, tanto em termos de tom de pele, como de forma de cabelo ou outras características, mais elas têm a chance de escapar do racismo. Então se olhar para a festa encontra pessoas de pele negra com cabelos louros muito lisos ou que usam uma maquilhagem que disfarça o tom da sua pele. Isso só quer dizer que elas lêem essa gramática do racismo e procuram se proteger das suas formas mais perversas”, diz. “A identidade é sempre relacional e a identidade racial também: se está num lugar onde as pessoas a vão reconhecer pelo tom da pele e está com alguém muito branco, provavelmente está em desvantagem em relação àquela pessoa; se está com alguém com tom de pele mais escuro, isso pode trazer desvantagem a essa pessoa.”
Como se classifica Wlamyra? “Eu sou negra. Com certeza. Mas sei que é mais fácil para mim dizer isso. Sendo professora universitária, podendo circular em vários espaços e sendo dona do meu próprio discurso, podendo falar a partir do que sei como pesquisadora sobre relações raciais, isso me dá uma certa protecção e possibilidade de enfrentar o racismo.”
Junto aos grandes hotéis do Rio Vermelho, há uma avenida com restaurantes e cafés. A decoração de alguns é moderna, poderia ser em Nova Iorque ou em Lisboa — e os preços também. Estão cheios de gente, o ambiente é exactamente como Wlamyra Albuquerque descreveu: quanto mais caro, mais branca é a massa de gente que lá está.
A auto-estima
A escultura Navio Negreiro é gigante, ocupa toda uma sala do Museu Afro-Brasil, em São Paulo. É para lá que nos leva Emanoel Araújo, o autor da peça, director e fundador do museu — doou mais de duas mil peças da sua colecção — numa das sessões de fotografia.
Situado num pavilhão desenhado por Oscar Niemeyer, em pleno Parque Ibirapuera, o museu nasceu com “uma provocação”, diz o seu ideólogo, “não só para os brancos mas também para os negros” porque há na comunidade negra, “que é a maioria, uma falta de auto-estima”.
À imagem do que o Instituto Biko faz com os seus alunos, também este museu quer sublinhar o orgulho negro. Seguimos para a sala onde se mostram diversas personalidades históricas negras importantes, porque a memória que se pretende avivar é essa: importante não foi só Pelé, foi também o geógrafo Milton Santos, o editor Francisco Paula Brito, o psiquiatra Juliano Moreira, o poeta Cruz de Sousa, o engenheiro Teodoro Sampaio, o engenheiro André Rebouças… “Há uma quantidade de negros no Brasil que esteve na academia imperial de Belas-Artes, na literatura, na engenharia, que estava em todos os ramos da existência humana brasileira”, comenta. “Este museu pretende ser um espelho para essa auto-estima. O estigma da escravidão é perverso e continua, mas é preciso que as pessoas não se deixem perturbar.”
Aspecto importante é este não ser um museu do negro, mas um museu que tenta ligar o Brasil a África, fundamental na construção do país, até porque a riqueza do país foi também construída pelos escravos — que, por sua vez, ajudaram ao enriquecimento das oligarquias, “a mão-de-obra foi e continua sendo negra, é ela que de certa forma ainda está na base da pirâmide e carrega o peso”.
Nascido em 1940, em Santo Amaro da Purificação (Bahia), Emanoel Araújo vem de uma família de ourives. Se há energia que passa para quem o conhece, é a da confiança e auto-estima. Sentado num dos sofás dos escritórios do museu, um open space quente num Verão paulista com as mais altas temperaturas dos últimos tempos, vai-se abanando e responde à pergunta sobre se se considera, então, uma excepção. “Sou mais um brasileiro que quase deu certo.”
Obviamente, o “quase” é irónico: ele é um artista plástico que recebeu diversos prémios importantes, criou dois museus (antes deste, o Museu de Arte da Bahia), foi director da Pinacoteca de São Paulo, que renovou, durante dez anos (1992-2002)… Segredo: “Trabalho e vontade, que é fundamental para alcançar o que você deseja. Isso não tem cor. E a vontade é força sua.”
Obstáculos, por ser negro, existiram, sim. “Mas os obstáculos a gente tira de letra. Em todas as actividades humanas, sobretudo num país de terceiro mundo ou num país emergente, você tem que ter a paciência, a impertinência e a teimosia para poder fazer.” Depois, teve a sorte de conhecer quem acreditasse nele.
O que não significa que tudo seja uma questão de vontade, como se poderia depreender das palavras de um homem que descreve o Brasil como o país ambíguo. Defensor da aplicação da lei de 2003 que obriga o ensino da História Afro-Brasileira nas escolas, Emanoel é também pró-cotas raciais, pró-políticas de acção afirmativas, mas num espírito de ir “um pouco mais adiante”. Trata-se “de um lugar de direito do povo brasileiro, e o povo brasileiro é índio, é negro, é mulato, é branco, é imigrante. Para aos negros, resta sempre a questão de estar no último escalão da sociedade, porquê?” E “somos um país que ainda tem quilombola — pessoas que fugiram na época da escravidão e fizeram comunidades livres e independentes — e trabalho escravo”.
Voltamos, assim, à questão da ambiguidade com uma frase que ele repete de cor: “Sempre digo que o Brasil é um país ambíguo, uma ambiguidade em que tudo pode e tudo não pode, tudo é e tudo não é. Durante muitos anos, dizia-se que o Brasil era uma democracia racial e essa democracia racial era uma espécie de benesse de um olhar branco sobre o negro, o negro que vinha e vem de todos os estigmas da escravidão.” Hoje já ninguém acredita nesse mito da democracia racial, garante.
Estamos agora no núcleo da exposição onde se mostram as grandes figuras negras. Emanoel Araújo tem por cima a peça com Pelé a dar um chuto numa bola. Como lê o facto de as áreas de exportação da imagem do Brasil, o carnaval e o futebol, terem uma presença tão forte dos negros, perguntamos-lhe? “Fica restrito à exploração do corpo de um futebolista ou de uma negra com seus trajes mínimos rebolando na frente de uma câmara. Isto é ainda uma questão da imagem perversa que se tem do negro no Brasil. Porque se está limitando a uma questão simplória a presença negra no Brasil, que é o corpo.”
Numa das conversas informais com Emanoel Araújo, ficou na cabeça uma frase que ele disse: “Ninguém quer ser negro no Brasil.” Porque “se sofre com isso”: “É um país que durante séculos instituiu diversas cores para que as pessoas se afastassem do negro. Tem moreno, moreninho, preto, pretinho, formiga, pardo… Uma infinidade de cores para que se possa escapar dessa condição racial.”
Um Presidente negro?
Há um sketch do Cabaret da Raça, um espectáculo em cena há 17 anos em Salvador, que faz uma brincadeira com o que Emanoel Araújo está a referir em relação às várias tonalidades da pele. Uma actriz, mulata, diz à plateia que é morena e que deve ter um antepassado negro na família.
Márcio Meirelles, encenador e director do Bando de Teatro Olodum, conta que quando estrearam a discriminação ainda era mais flagrante: não havia anúncios com negros, não havia novelas com negros, mas uma revista que apareceu na altura, Raça, mostrava que havia um público de classe média negro que “queria se ver, queria ver a sua imagem”.
Como encenador, Márcio procurou colocar a questão sobre o que é ser negro no Brasil e o espectáculo reflecte isso. Daí a ambiguidade do sketch da morena, porque essas são interrogações num país que tem “preto e pardo (misto)” como opção no Censos.
Na altura, Meirelles — que é “considerado branco no Brasil”, “de classe média” e teve “toda uma formação eurocêntrica” — quis investigar a cultura africana no teatro e o porquê de o público negro ser uma percentagem mínima da plateia. Ainda antes da implementação das cotas, fizeram uma campanha: cobravam meia entrada a negros. “Era uma brincadeira, qualquer um que dissesse ‘sou negro, quero pagar meia entrada’, pagaria. Era uma forma também de provocar essa discussão que está no espectáculo: o que é ser negro?”
O cenário está agora um pouco diferente, há mais negros na academia e em outras áreas da sociedade, mas “não muda muito” a questão do racismo. “Existe racismo, a gente é condicionado a isso e o próprio negro é racista — a maioria do contingente policial é negro, e eles primeiro checkam se os outros negros são bandidos ou não; nos ônibus primeiro, são os negros revistados, nas lojas os empregados são negros e são eles que são primeiro discriminados. No Brasil, o racismo sempre foi negado, então é muito difícil combater uma coisa que não existe e isso torna o racismo mais perverso.”
Hoje, porém, a ascensão social de classes que eram mais pobres, o consumismo e o acesso a informação estão a operar aquilo a que ele chama “uma revolução cultural no Brasil” e isso “coloca outras questões e outros problemas” como associar os negros aos pobres. “Um negro primeiro tem que provar que é rico e que não está ali para roubar. Você tem um primeiro momento em que a cor, a pele, grita mais alto que as questões sociais.”
É uma questão que Sílvio Humberto também coloca: “As vezes em que fui discriminado foi porque era um negro que estava entrando num espaço que era das pessoas brancas. O racismo na Bahia não se manifesta porque as pessoas negras não estão nesses espaços. A ascensão social das pessoas negras, não individualmente mas colectivamente, começa a promover mudanças e possibilidades maiores de choques e das pessoas exteriorizarem o seu racismo.” Concluindo: “É um bom teste sobre se vivemos racialmente de forma harmónica: coloque as pessoas juntas, vamos disputar o mercado de trabalho, vamos disputar as oportunidades.”
Significa esta ascensão de uma classe média negra que o Brasil poderá eleger um Presidente negro em breve? “Impossível”, responde Acácio Almeida em São Paulo. “Existe uma resistência muito grande.” Sílvio Humberto, em Salvador, ironiza: pode ser que o Brasil eleja um Presidente antes de a Bahia ter um governador negro. “Mas dadas as condições objectivas ainda tem muita água para passar debaixo dessa ponte.” No Museu Afro-Brasil, um artista brincou com a imagem de Obama e de Emanoel Araújo, sobrepondo-as. Ele ri-se quando lhe falamos dela e fazemos a mesma pergunta. “Obama só foi eleito porque não é afro-americano, é filho de uma mãe branca e de um pai negro. Se tivesse o estigma da escravidão, não seria eleito. Os EUA são democráticos há 250 anos, teve um apartheid, é outro país. O Brasil está a anos-luz de distância.” Wlamyra Albuquerque: “Não acredito nisso. Sinceramente, acho que não se trata de ter ou não um Presidente negro, mas em que medida a questão do negro é uma questão nacional.”
Muitos perguntaram, já, se algum dia Joaquim Barbosa se candidataria. O próprio respondeu que “não” várias vezes. Recentemente, porém, disse que era “preciso fazer algo para incluir os negros no mainstream da sociedade” e que “o Brasil nunca tratou a sério esse assunto”. Citado pela Afropress numa conferência em Londres, dizia: a desigualdade racial é “um dos problemas-chave na política brasileira”.