Doar o corpo à ciência
O ensino da anatomia pode usar modelos e programas de computador cada vez mais próximos da realidade, mas eles ainda não substituem a investigação em cadáveres humanos.
Aos 44 anos, Verónica Leal decidiu doar o corpo à ciência. “Já andava há muitos anos a pensar nisto, mas deixava para trás”, revela a bancária nascida na África do Sul e a viver em Portugal desde 1991. Não tinha nenhum motivo em particular para não o fazer, apenas nunca tomou a iniciativa. Quando finalmente se decidiu, em 2011, e pediu algum tempo ao chefe para tratar do assunto, dizendo-lhe que ia doar o corpo, ele acedeu prontamente. Doou-o porque diz que é importante para os avanços da medicina e a formação de novos médicos. Porque sabe que há falta de corpos nas escolas médicas. Foi a escassez de cadáveres nas instituições de ensino e investigação que levou à criação da legislação que ainda hoje vigora. O decreto-lei 274/99 de 22 de Julho estabelece quais os procedimentos a adoptar, quem pode receber os corpos doados e que os fins são o ensino e a investigação. “A utilização de cadáveres tem um papel insubstituível na didáctica das ciências da saúde”, afirma Duarte Nuno Vieira, membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que esteve directamente envolvido na redacção da lei, na altura como director do Instituto de Medicina Legal de Coimbra.
Desde a publicação do decreto-lei, há quase 15 anos, o número de doações e de cadáveres que tem chegado às instituições é cada vez maior, apesar de não ser ainda suficiente para muitas delas. Se algumas instituições recebem 50 ou 100 intenções de doação por ano, outras há em que essas intenções não atingem uma dezena. Também a quantidade de cadáveres que efectivamente chega às faculdades é reduzida, com algumas a receberem cerca de 12 ou menos por ano.
É possível dar o corpo às faculdades de medicina ou de ciências da saúde das universidades públicas de Lisboa, Porto, Coimbra e Covilhã. O primeiro contacto pode ser presencial, por telefone ou correio electrónico. Regra geral, o doador preenche uma declaração de doação cuja assinatura deve ser reconhecida pelo notário. Depois de completado o processo, recebe uma carta de agradecimento e um documento com os procedimentos que os familiares ou amigos devem seguir após a sua morte.
Verónica Leal escolheu a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa (FCM-UNL), uma das seis escolas médicas do país que recebem doações, segundo o site da Sociedade Portuguesa de Anatomia. “Fiz uma pesquisa na Internet para saber onde podia fazer [a doação], contactei a faculdade e enviaram-me uma carta com as indicações. Foi tudo muito rápido, não foram burocráticos.”
Apesar da rapidez do processo, os responsáveis pelas escolas médicas e gabinetes de doação afirmam que doar o corpo à ciência não é um acto que se resuma ao preenchimento de um documento. Para Luís Taborda Barata, presidente da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior (FCS-UBI), na Covilhã, doar é uma “parceria” que se estabelece entre o doador e a instituição. “É necessário que o potencial doador contacte a faculdade, venha visitar-nos e entenda um pouco melhor no que consiste doar o corpo, estabelecendo-se uma certa cumplicidade.”
Por vezes, os doadores querem ter um contacto mais profundo com as faculdades. Teresa Sousa, funcionária do gabinete de doação da FCM-UNL, está disponível para esclarecer as dúvidas dos doadores e dos seus familiares, o que continua a acontecer muitas vezes depois de finalizado o processo. Enquanto doadora, Verónica Leal gostaria de continuar a receber notícias da faculdade: “Podiam enviar informações, para nos manter actualizados sobre a medicina de hoje em dia, sobre a doação ou sobre novas leis”, sugere, concordando com a importância da criação de uma ligação entre a faculdade e o doador.
A doação do corpo, como considera o psicólogo Carlos Céu e Silva, é muito mais do que um donativo, é um gesto que pode ser encarado como um desafio existencial, pois “doar é acreditar num futuro que não nos pertence” e que nunca vamos conhecer.
Maria da Purificação Babo, doméstica lisboeta, de 64 anos, pensou muito no assunto antes de decidir doar o seu corpo à FCM-UNL. Decidiu-se finalmente quando soube que uma amiga já o tinha feito. A amiga acabou por morrer seis meses depois. Tal como Verónica Leal, Maria da Purificação Babo acredita na importância das doações para o futuro da ciência, em particular da medicina.
Por ser uma decisão tão importante tomada em vida e com repercussões no futuro, Carlos Céu e Silva acredita, assim como os responsáveis das instituições que recebem as doações, que doar deve ser uma atitude consciente. Privilegiando deste modo uma convicção pessoal, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto tem como política nunca aceitar doações do corpo numa primeira entrevista. “As doações têm de ser feitas presencialmente. Quando a pessoa vem, é-lhe mostrado o museu e o ambiente das salas de aula. Depois vai para casa pensar, e só numa segunda fase é que aceitamos a doação”, explica António Sousa Pereira, director do instituto.
Para as instituições que utilizam os cadáveres no ensino e na investigação, a doação é um gesto de altruísmo e generosidade. “Todo este processo beneficia a sociedade, é para isso que existe, não só no sentido da evolução da ciência mas no sentido da preparação de melhores profissionais de saúde, tanto a nível pré como pós-graduado”, considera Diogo Pais, responsável pelo Gabinete de Doação e Cadáveres da FCM-UNL.
Verónica Leal concorda que o seu gesto é um “dever para com a sociedade e as pessoas que tratam dos outros”, acreditando mesmo que a utilização de cadáveres poderá diminuir a experimentação em animais, dos quais se assume uma defensora.
Modelos ou corpos?
Embora algumas escolas comecem a optar por modelos anatómicos e programas de computador, outras há que consideram que a formação não tem o mesmo valor nem os alunos ficarão tão bem preparados sem o contacto com os corpos. “Há vários estudos, sobretudo americanos e alguns ingleses, que demonstram que a falta de contacto dos alunos de medicina com a dissecção do corpo humano se saldou numa baixa da formação”, afirma António Gonçalves Ferreira, director do Instituto de Anatomia Normal da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL).
Contudo, nas universidades portuguesas a opinião é divergente. Enquanto para algumas instituições a utilização de cadáveres é fundamental não só na formação inicial de médicos e outros profissionais de saúde mas também na formação para as várias especialidades ou para a melhoria de determinadas técnicas, para a FCS-UBI, as 17 intenções de doação e os dois cadáveres recebidos desde a sua fundação há 14 anos são considerados suficientes. Nesta faculdade, o ensino da disciplina de anatomia, conforme explica o seu presidente, é diferente do da generalidade das escolas médicas, estando integrada nos dois primeiros anos de licenciatura e com recurso a modelos.
Já no Departamento de Anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), o ensino é baseado no estudo de peças anatómicas e não em modelos, afirma a sua directora, Dulce Madeira. Por isso, os 12 cadáveres de que a faculdade dispõe actualmente, embora sejam suficientes para as aulas de licenciatura, são poucos para os cursos de especialidade: “Os estudos de pós-graduação implicam diferentes tipos de dissecção, dependendo dos objectivos do curso”, diz Dulce Madeira.
Um dos argumentos mais usados pelos defensores da utilização de cadáveres humanos no ensino é o das diferenças encontradas de pessoa para pessoa. “Nos modelos, é tudo igual, nada varia, mas no corpo humano há uma variabilidade anatómica significativa”, explica Duarte Nuno Vieira, também professor na Universidade de Coimbra e, até há pouco tempo, director do Instituto Nacional de Medicina Legal. “Os órgãos não têm, como nos desenhos, sempre aquela cor tão nítida e não se diferenciam sempre tão facilmente.”
A questão religiosa
Apesar de algumas religiões reconhecerem também a importância da doação do corpo, as crenças religiosas são muitas vezes apontadas como factores impeditivos dessa doação.
É essa também a opinião de Verónica Leal. “Uma pessoa católica pensa que, quando morre, vai para o céu.” Educada num colégio de freiras na África do Sul, diz que o “cinismo” e a “falsidade” a que assistiu nesses tempos a fizeram questionar a sua fé. Tornou-se ateia, influenciada pelo ateísmo do pai. Mesmo Maria da Purificação Babo, católica, assume as suas dúvidas: “Não acredito plenamente na vida eterna nem nas coisas que a Igreja quer fazer acreditar.”
Mas Alfredo Teixeira, teólogo e antropólogo do Centro de Estudos de Religiões e Cultura da Universidade Católica Portuguesa, considera que o distanciamento das pessoas face às doações cadavéricas está mais relacionado com elas próprias e com a forma como lidam com a morte do que com as religiões que professam.
“Se não tivesse havido dissecação de cadáveres e investigação, certamente que a medicina não estaria tão avançada como está hoje”, considera por sua vez Anselmo Borges, padre da Sociedade Missionária Portuguesa e professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Afirmações que evidenciam que a Igreja Católica reconhece a importância da investigação com cadáveres.
O padre católico admite que a ideia de que a salvação requer a reanimação do corpo possa ser um entrave à doação, mas clarifica: “Tradicionalmente, pensava-se que a ressurreição implicava a reanimação do cadáver. Ora, a fé cristã, quando é bem compreendida, afirma que a ressurreição dos corpos não é reanimação de nada.”
Os actos de generosidade são valorizados pelas religiões— e algumas consideram a doação do corpo para a ciência como um acto generoso. Por entenderem que poderá vir a ajudar outras pessoas, os budistas, segundo Paulo Borges, presidente da União Budista Portuguesa, não se opõem à doação do corpo. “Recomendamos que, para que as pessoas tenham desenvolvimento espiritual, pratiquem o desapego do corpo.”
Desde que o objectivo seja salvar vidas, os judeus admitem a doação de órgãos para transplantes, no entanto, baseando-se no “princípio da proibição de desfigurar cadáveres”, não autorizam a doação de corpos às universidades para investigação, esclarece o rabino Eliezer Shai di Martino, da comunidade israelita de Lisboa.
Também a comunidade muçulmana em Lisboa não exclui a possibilidade da doação de órgãos para transplantes porque isso irá ajudar outras pessoas. Mas a religião islâmica, que privilegia que o enterro ocorra tão depressa quanto possível após o falecimento, demonstra maior renitência quando se trata de doações para ensino e investigação.
Rituais da morte
O manuseamento do cadáver ou a morte em si não são assuntos discutidos facilmente por todos os cidadãos. Apesar da convicção com que tomou a decisão, Maria da Purificação Babo teve dificuldade em comunicá-la à família. O marido e os filhos não gostam de falar da morte. Apesar de ser católica, não quer ter uma cerimónia fúnebre. “Detesto, e sempre detestei, cerimónias de morte.” Tudo o que pede é que no dia em que morrer não haja tristeza. O mais importante para si é sentir-se celebrada em vida. “Agora é que gosto de receber flores, depois será um desperdício.”
O psicólogo Carlos Céu e Silva defende que os rituais da morte podem ajudar a aceitar uma perda, mas afirma que as pessoas estão cada vez menos envolvidas nesses rituais, entregando a tarefa a uma agência funerária que trata de tudo. “Entregamos a uma instituição, clinicalizamos a situação, tomamos medicação para superar o eventual trauma, e tudo isso parece ser um substituto de uma estrutura social que acompanhava a experiência da morte e que já não existe”, refere Alfredo Teixeira. Para este teólogo, vivemos actualmente em sociedades onde a ritualidade desempenha um papel cada vez menor e onde é visível uma maior dificuldade em “lidar directamente com essa experiência crítica da morte”.
Porque os rituais e as despedidas fazem parte do processo de luto, a realização de todas as cerimónias está salvaguardada pela lei, incluindo a posterior cremação ou enterro. Contudo, algumas famílias não aceitam entregar o corpo do seu familiar a uma instituição para que seja utilizado no ensino e investigação. Mesmo que tenha sido essa a vontade do falecido. “A família sente-se no direito de reservar para ela o corpo”, explica Carlos Céu e Silva, “mas a família tem de respeitar o desejo do familiar”, sob o risco de que o seu desejo de posse se torne um desrespeito e um “acto de egoísmo”.
O respeito pela vontade dos indivíduos faz parte dos valores promovidos pelas religiões. “Se a pessoa ofereceu o seu cadáver para investigação, isso é um acto cristão louvável e a família deve respeitar essa vontade”, defende o padre católico Anselmo Borges. O mesmo acontece na comunidade hindu de Portugal: “Cabe a cada pessoa decidir [a doação do corpo], tal como a doação de órgãos”, diz um responsável que prefere não ser identificado. “A [nossa] religião não proíbe, não há nada escrito em relação a isso, apesar de não termos conhecimento de alguém que o tenha feito.”
Se a família não respeitar a vontade do doador e não comunicar a morte à instituição a que foi doado, estará a violar o respeito ético pela vontade manifestado pela pessoa em vida, diz Duarte Nuno Vieira. “Nenhum desejo se deve sobrepor ao desejo individual, se o corpo foi doado conscientemente.”
Embora os filhos de Maria da Purificação Babo não se tenham mostrado receptivos quando comunicou a doação do seu corpo, ela acredita que respeitarão a sua vontade. Verónica Leal, filha única e solteira, avisou a mãe, mas admite que no último momento ela poderá opor-se. Espera ainda que, quando chegar a altura, os amigos saibam como agir. Como salvaguarda, leva sempre consigo uma cópia da declaração de doação, junto do cartão com o tipo de sangue. “Espero que numa ambulância, um dia, saibam o que é para fazer.”
Estando dependentes da informação dada pelas famílias para tomarem conhecimento que os doadores faleceram, os institutos sabem que muitas mortes não chegam a ser comunicadas, ou porque as famílias não querem entregar os corpos, ou porque nem sequer sabem que houve uma doação por parte do falecido. “Temos doações já muito antigas. Pela idade dos doadores seria razoável pensar que já não estarão vivos neste momento, mas de facto não chegaram cá”, conta Dulce Madeira, cujo departamento recebe agora cerca de 110 intenções de doação por ano, mas que há 14 anos recebia apenas 15.
Vontade partilhada pela família
Para os responsáveis das instituições, criar um litígio com as famílias que vão contra o desejo do doador está fora de questão, por isso propõem soluções para esta situação. Uma delas passa por incluir as famílias nas sessões de esclarecimento. É importante que as famílias percebam por que é que o familiar vai doar o corpo e como devem proceder após a sua morte. E acreditam que este gesto possa ser preponderante no sucesso das doações em Portugal.
A maior parte das instituições prevê que a declaração de doação tenha a assinatura do doador reconhecida em notário. “É uma garantia de que o processo está a ser o mais rigoroso possível”, explica Luís Taborda Barata sobre o procedimento da Universidade da Beira Interior. No ICBAS, para além do reconhecimento da assinatura, exige-se a presença de testemunhas. “Só aceitamos a doação quando essa vontade é partilhada com a família. São os familiares as testemunhas que normalmente acompanham a pessoa na ida ao notário. E são eles que depois se encarregam de nos comunicar que a pessoa morreu”, explica António Sousa Pereira.
Alguns dos doadores da FMUP já questionaram o seu Departamento de Anatomia sobre a forma legal de garantir que os familiares entreguem o cadáver. A obrigação da família é moral e ética, porque a lei não contempla esta situação. Duarte Nuno Vieira lamenta que a lei sobre a doação de corpos para o ensino e a investigação não tivesse criado um meio de salvaguardar o respeito pela decisão do doador, tomada em consciência e de vontade própria. “Deveria haver um registo desse desejo e desta manifestação para que, depois de a pessoa falecer, ao registar-se o óbito, imediatamente se detectasse que a pessoa tinha feito aquela declaração em vida.”
Alguns dos responsáveis pelos gabinetes de doação também concordam com a revisão desta lacuna na legislação. “É preciso assegurar que esse é um direito do doador e que é um direito que só pode ser revogado pelo próprio”, lembra Luís Taborda Barata. “É um desejo que tem de ser cumprido, assim como tem de ser cumprido e respeitado o desejo de não ser doador.”
Actualmente, em Portugal, todos os cidadãos são potenciais doadores, em primeiro lugar de órgãos para transplantes e depois de órgãos ou do corpo para ensino e investigação. Por um lado, todos os interessados em doar o corpo para o ensino e investigação devem fazê-lo junto das escolas médicas. Por outro lado ainda, todos os que não desejem ser doadores devem manifestar essa vontade inscrevendo-se no Registo Nacional de Não Dadores (Rennda), uma base de dados informatizada acessível aos hospitais, institutos de medicina legal e escolas médicas.
A existência de uma base de dados de doadores, semelhante ao Rennda e disponível para as escolas médicas, poderia assegurar que a vontade manifestada em vida pelo doador era cumprida. “Não é legítimo que um direito individual, manifestado em vida, na total posse das suas faculdades, não seja respeitado”, defende Duarte Nuno Vieira. Por outro lado, permitiria que os corpos doados para o ensino e investigação pudessem ser distribuídos por todas as instituições que deles necessitassem. “Poderia haver vantagem, porque haverá instituições que têm falta e outras excesso”, salienta Luís Taborda Barata. Por exemplo, o professor de anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), António Bernardes, afirma que os oito cadáveres no seu departamento são “manifestamente insuficientes”.
Embora a Sociedade Portuguesa de Anatomia e as instituições que recebem doações disponibilizem informação nos seus sites, não existe nenhuma campanha de sensibilização a nível nacional. “Cada vez que Paulo Barbosa, o anterior director [do Departamento de Anatomia da FMUP], ia à televisão e tocava no tema, o número de doações aumentava, o que prova que por vezes as pessoas não as fazem porque não têm conhecimento”, refere Dulce Madeira, actual directora.
A divulgação através da televisão, com acções de sensibilização por parte de figuras públicas, em que as faculdades explicassem as vantagens do processo, é aliás uma solução proposta por Verónica Leal. “Se houvesse mais divulgação, se calhar haveria mais doações.”
Sensibilizar a nível nacional
Os líderes religiosos poderão ter também um papel de esclarecimento. “Se a Igreja Católica aconselhar os cristãos a oferecerem o seu cadáver, e fizer algo no sentido de influenciar essa oferta, também é um acto digno de louvor”, incentiva o padre Anselmo Borges. Em Bruxelas, conta o director do ICBAS, as doações para a Universidade Católica de Lovaina eram promovidas por um bispo. “Actualmente, têm um programa de doação de corpos extremamente desenvolvido, em que todos os anos chegam centenas de cadáveres à faculdade.”
A quantidade de doações ou cadáveres que chega às instituições depende não só da divulgação mas também da localização geográfica dos institutos. Inicialmente, Verónica Leal tentou doar o corpo à Universidade de Coimbra, zona onde viveu entre os nove e os 17 anos, mas foi-lhe dito que deveria fazê-lo na sua área de residência, em Lisboa, daí a escolha ter recaído na FCM-UNL.
Na realidade, os cidadãos podem doar o corpo a qualquer instituição do país, mas estarão a facilitar o processo se optarem pela que esteja mais perto da sua área de residência, porque as instituições que recebem os cadáveres é que são as responsáveis por assegurar o transporte desde o local onde têm lugar as cerimónias fúnebres (quando são realizadas) até às suas instalações, contratando uma agência funerária. Além disso, é necessário pagar taxas camarárias por cada concelho por onde o cadáver passa, explica João O’Neill, director do Departamento de Anatomia da FCM-UNL. “Tem de haver uma racionalização, não podemos assumir o transporte de corpos que estão mais perto de outra faculdade. São custos brutais.”
Desta forma, as restrições orçamentais podem levar as faculdades a rejeitar ou a reencaminhar as doações. “Já nos aconteceu ter pessoas de fora a quem sugerimos, no momento da doação, que seria mais fácil se fosse para outra instituição. E já nos aconteceu conseguirmos orientar um cadáver para uma outra faculdade”, revela Dulce Madeira, acrescentando que, no entanto, quase todos os corpos existentes na FMUP foram generosamente transportados pelos familiares.
Assim as faculdades ficam, muitas vezes, limitadas às doações da sua região, acabando as que estão localizadas em Lisboa por aceitar as doações do Sul do país, vindas muitas vezes de doadores estrangeiros, principalmente ingleses a residir no Algarve.
Base de dados das doações
Na Universidade Nova de Lisboa, as doações têm aumentado nos últimos dez anos. São já 2185 doações registadas, com cerca de 50 cadáveres a chegar à faculdade todos os anos. Para Diogo Pais, este constitui um número suficiente para o ensino e a investigação nesta faculdade. Durante muitos anos, foi a única instituição com capacidade para receber cadáveres em Lisboa porque o Instituto de Anatomia Normal da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa estava em obras.
Inaugurado em Maio de 2013, o teatro anatómico (local onde se realizam as dissecções) da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa está preparado para voltar a receber cadáveres desde Setembro do ano passado. “[Nos últimos anos] encaminhámos [os cadáveres], na medida do possível, para a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, outros para Coimbra ou para o Porto”, diz António Gonçalves Ferreira.
Agora que as obras na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa estão finalizadas, António Gonçalves Ferreira pretende contactar os mais de 300 doadores que têm em base de dados. “Passámos anos a dizer às pessoas que não podíamos [aceitar doações] porque estavam a decorrer obras. Agora estamos a relembrar-lhes que temos todo o interesse em que contactem connosco.”
Desde que passou a aceitar novamente doações, a FMUL tem recebido uma doação por semana, pelo que o docente estima que no futuro essas intenções se traduzam em 12 a 24 cadáveres a chegar por ano ao departamento. Quem doa o corpo à ciência tem as mais variadas origens e motivações. Os institutos, embora concordem que a maioria são pessoas idosas, ou de meia-idade, do sexo feminino, ainda não estudaram o perfil do doador. Dulce Madeira acrescenta: “Curiosamente, temos cada vez mais doações de gente muito nova, o que é um bom sinal. Se calhar as pessoas compreendem melhor a importância.”
António Bernardes, professor de anatomia na FMUC, costuma alertar os alunos para a importância das doações. “Todos os anos, na primeira aula de anatomia digo aos meus alunos que há poucos cadáveres para ensino e investigação comparativamente ao número de alunos. Não podem criticar que no ensino da anatomia se faz pouca dissecção, enquanto não tiverem eles próprios oferecido o corpo para ensino e investigação.”
Já as motivações que levam alguém a doar o corpo passam sobretudo pela contribuição para os avanços científicos ou até como um agradecimento por terem sido salvas pela medicina. Embora exista quem aponte a crise económica e o custo dos funerais como uma motivação, António Sousa Pereira discorda, referindo que as pessoas que doam o corpo ao ICBAS são, muitas vezes, do escalão social médio-superior.
“Quando doam o seu corpo, pressupõem que somos guardiões desse respeito. E somos”, afirma por sua vez Diogo Pais. “Uma das preocupações que temos desde 1987 é que todos os anos recebemos os alunos do primeiro ano no teatro anatómico e fazemos uma apresentação sobre o processo de doação, reforçando a importância do respeito. Ter tanto ou mais respeito pelos corpos falecidos como têm pelos vivos, como se fosse um ente querido, uma pessoa da família.”
O respeito é mantido não só na utilização do cadáver mas também na recepção do corpo, garantido que este é “anonimizado”. “Assim que o corpo entra, é feito um registo computorizado, o único sítio onde estão as informações compatíveis sobre o corpo: número de identidade e número convencional que é atribuído. A partir desse momento, só funciona o número convencional”, esclarece António Gonçalves Ferreira.
João O’Neill acrescenta: “Os processos estão guardados em cofre, completamente sigilosos, e todos os actos de investigação ou ensino que são praticados naquele corpo são anotados e arquivados em relatório, como previsto na lei.” Uma vez concluídos os estudos, o corpo é normalmente cremado, porque a decomposição dos corpos embalsamados é mais difícil. Mas se o doador escolher ser enterrado, isso também é possível, diz o director do departamento de anatomia da FCM-UNL.
Embora nem Verónica Leal nem Maria da Purificação Babo desejem uma cerimónia fúnebre na altura da sua morte, a primeira diz respeitar demasiado a mãe para se opor a uma questão religiosa que fosse importante para ela. “Se a minha mãe quisesse fazer [uma cerimónia fúnebre], eu aceitaria, pelo respeito que lhe tenho, mas a religião é-me totalmente indiferente.”
Maria da Purificação Babo, por sua vez, deixou explícita a sua vontade numa carta que entregou a cada um dos filhos, juntamente com uma cópia da declaração da doação do corpo. “Gosto muito de viver e estou muito contente com a vida. Se o estudo do nosso corpo servir para descobrir doenças, porque não?” Se tudo correr como deseja, as cinzas de Maria da Purificação Babo serão depositadas no local onde nasceu a sua mãe, no Fundão. É um desejo partilhado com os filhos.
Com João Ruela Ribeiro