Na Crimeia faz-se a festa à espera da guerra de Putin
Os diplomatas conversaram, e no terreno as tropas russas foram-se instalando, sem se fossem disparados tiros. A população russa da Crimeia festeja e no resto da Ucrânia há mobilização para a guerra.
Foi de Washington que veio o recado mais forte para Putin. O secretário de Estado norte-americano avisou que os Estados Unidos não vão estar presentes na cimeira do G8 de Junho, em Sochi. "Para além de não ter a cimeira do G8, o Presidente Vladimir Putin pode não ficar sequer no seio do G8", acrescentou John Kerry. Uma sanção que talvez não tenha grande eficácia. Em 2012, Putin faltou à reunião do grupo dos oito países mais industrializados do mundo, organizada pelos EUA, acabando por enviar o seu primeiro-ministro, Dmitri Medvedev.
Uma manifestação em frente ao parlamento da república autónoma da Crimeia agitava bandeiras russas enquanto ouvia nos altifalantes velhas canções soviéticas. Um activista pró-russo citava ao microfone as últimas declarações de Vladimir Putin.
À volta da estátua de Lenine, numa praça do centro da cidade, um cordão humano, com escudos de aço, protegia o líder da revolução de 1917, numa atitude de grande intensidade simbólica, como se ali estivesse o coração ameaçado da Crimeia.
Na rua Pushkin e adjacentes, a zona comercial da cidade voltou a ter animação, com lojas e cafés abertos, famílias passeando, jovens conversando nas esquinas. Nas áreas mais periféricas, as bancas dos mercados de rua voltaram a abrir, vendendo roupas, legumes, brinquedos, acessórios de telemóveis.
“Agora temos razões para ter esperança”, disse Vladimir Grigorechenko, 56 anos, comerciante. “Não acho que vá haver uma invasão. Mas o Presidente Putin já foi muito claro. Disse que vai proteger a população da Crimeia. Era isso que todos esperávamos ouvir. Ele só vai agir se houver uma provocação”.
A NATO reuniu-se ontem de emergência – embora sem sair da reunião nada de concreto. Apenas se reafirmaram posições. “Pedimos à Rússia que honre os seus compromissos internacionais e que retire as suas forças para as bases e se abstenha de qualquer interferência noutras partes da Ucrânia”, afirmou o secretário-geral, Anders Fogh Rasmussen. Putin concordou com a formação de uma equipa de mediadores que possa abrir a possibilidade de diálogo entre a Rússia e a Ucrânia. Mas isso não foi propriamente uma cedência.
Simferopol estava em festa.
Marinka, de 27 anos, que veio tomar um capuccino num café chique da rua Pushkin, disse que, nas últimas semanas, tem andado aterrorizada por causa do fascismo. “As pessoas que fizeram o golpe em Kiev são fascistas, pessoas intolerantes e más, que têm como objectivo aniquilar os russos da Ucrânia. Agora finalmente sinto-me protegida. Eu não acho que Putin queira invadir os anexar a Crimeia. Ele simplesmente disse que está do nosso lado. Não nos vai deixar sozinhos, à mercê dos fascistas”.
"Abaixo o fascismo"
Na rua, um cortejo de manifestantes passou a gritar “abaixo o fascismo”. Alguns rapazes corriam de um lado para o outro com bandeiras da Federação Russa. Polícias fardados cortavam o acesso automóvel em toda a zona do centro. Jornalistas montavam as câmaras nos tripés para captarem a atmosfera da cidade à espera da guerra. Duas raparigas de mini-saia e saltos altos distribuíam panfletos promovendo uma pizzaria. De um restaurante aberto, mas vazio, por ser demasiado caro, emanava música clássica.
Perto do Parlamento, bem como, segundo relatos de várias testemunhas, em Sebastopol, nos aeroportos e em várias estradas, estacionavam piquetes de militares fortemente armados, a quem todos chamam “os russos”, embora nada nos uniformes os identifique como tal.
Uma coluna de 13 veículos blindados deslocou-se de Sebastopol para Simferopol. Um grupo de soldados “russos” cercou uma base militar ucraniana, em Perevalne, pedindo-lhes que entregassem as armas. Os ucranianos, segundo relatos de jornalistas no local, não obedeceram. Os “russos” abandonaram o local, sem reacção. Há informações de que vários grupos destes “russos” percorreram as bases ucranianas pedindo-lhes, “a bem”, a rendição.
Na base militar ucraniana de Bachchiserai, a meio caminho entre Sebastopol e Simferopol, todo o pessoal recebeu ordem para estar em alerta máximo e não abandonar a base. Uma fonte deste quartel disse ao PÚBLICO, sob anonimato, que há lá dentro grande tensão, com os militares divididos entre os que se querem entregar aos russos e os dispostos a combater.
O chefe máximo da Marinha ucraniana, Denis Berezovski, anunciou a sua fidelidade ao novo governo pró-russo da república da Crimeia, o que levou o Governo de Kiev a considerá-lo um traidor e a demiti-lo.
Várias notícias não confirmadas dão conta de que muitas unidades militares ucranianas na península já se colocaram ao lado dos russos, no que parece ser uma guerra silenciosa e anónima que tornaria a eventual entrada final das forças russas num passeio sem violência por um território já conquistado e pacificado.
Os rumores e as informações duvidosas correm céleres por todo o território. As pessoas andam agarradas aos telemóveis, numa teia permanente de narrativas contraditórias e histórias incríveis.