Mário Coluna, um marionetista para a história

Foi um dos jogadores mais influentes da história do Benfica e o motor do meio-campo que se tornou bicampeão europeu. Foi, acima de tudo, um líder. Dentro e fora de campo.

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O verdadeiro poder de influência de Mário Esteves Coluna, o certificado do prestígio que foi granjeando nos relvados ano após ano, chegou em 1967, aquando da organização de um jogo de homenagem ao guarda-redes espanhol Ricardo Zamora. O argentino Helenio Herrera desempenhava, na ocasião, a função de treinador de uma equipa composta por alguns dos melhores futebolistas do planeta, uma espécie de selecção mundial. Entre eles estava o médio do Benfica.

No balneário, Herrera deixou duas ideias aos jogadores. A primeira era que nada tinha a recomendar-lhes, a não ser que fizessem em campo aquilo que estavam rotinados para fazer nos clubes. A segunda era que o capitão seria Mário Coluna. “Fiquei admirado”, confessaria o internacional português anos mais tarde.

Sim, a voz de comando de Coluna já ecoava nos bastidores do futebol. Ele, que era descrito como um capitão de poucas palavras, que muitas vezes nem precisava de abrir a boca para pôr a equipa em sentido. Ele, que chegara a Lisboa como um jovem tímido e que havia seriamente considerado voltar para Moçambique, depois de um período de adaptação com altos e baixos.

Jogar calçado? Só aos 15 anos
Filho de pai português e de mãe moçambicana, Mário Coluna nasceu em Magude, Moçambique, e cresceu num bairro pródigo em produzir futebolistas de eleição, cujas ruas já haviam sido palmilhadas por Vicente, Hilário ou Matateu. O sonho de ser mecânico de automóveis, porém, seria largamente ultrapassado por um talento invulgar para o desporto.

Mas o futebol não foi amor à primeira vista. Ainda adolescente, começou por participar em combates amadores de boxe e, aos 15 anos, ingressou num clube local que promovia a modalidade, o João Albasini. Depois, arriscou no atletismo e chegou a bater o recorde de Moçambique do salto em altura, com uma marca de 1,825m, antes de se fixar definitivamente no futebol.

“Só comecei a jogar futebol calçado aos 15 anos”, revelou há tempos em declarações à Benfica TV. E fê-lo justamente no João Albasini, que agrupava um conjunto diversificado de desportos. “Quando era júnior, no Lourenço Marques, jogava de manhã nos juniores e à tarde ia jogar nos seniores no João Albasini”, recordou.

Por essa altura, o talento de Coluna já não passava despercebido. De tal modo que começou a despertar atenções fora de portas. De Portugal, chegava uma proposta do FC Porto de 90 contos por dois anos de contrato. Ao saberem da oferta do rival, Sporting e Benfica contrapuseram 100 contos. “Se fosse para vir para o Sporting, o meu avô não o deixava vir de maneira nenhuma”, adiantou a filha do jogador. “Ele era menor e, sem a autorização do pai, não podia viajar para a metrópole”.

Depois de uma viagem de 34 horas, Mário Coluna aterrou em Lisboa em Agosto de 1954, com 19 anos. “Quando cheguei ao aeroporto, estava lá um dos meus tios à espera. O Benfica quis mandar-me para uma pensão. E o meu tio disse: ‘Não, não, ele vai para minha casa”, explicou. Ele, que rapidamente passaria a integrar o lar do jogador.

Foram tempos difíceis, os que marcaram os primeiros passos na Luz. Com o lugar no ataque barrado por José Águas, Coluna sentiu dificuldades de adaptação e chegou a pensar em voltar para Moçambique, mas os funcionários que então trabalhavam no lar do jogador tinham ordens para não o deixar sair. O sacrifício inicial acabaria por dar frutos.

Com Otto Glória como treinador, acabou por ver a sua posição redefinida no campo. Em Moçambique, graças a um remate poderoso e a uma capacidade atlética fora do comum, jogava como avançado, mas em Portugal foi baixando no terreno até se impor, inquestionavelmente, como médio interior. “Passei a jogar a interior direito, interior esquerdo. Ia para a frente, ia para trás e foi assim que ganhei a confiança dos meus treinadores”.

No arranque da temporada 1954-55, foi célere a deixar a sua marca. Marcou nas primeiras quatro jornadas e terminou a época de estreia com 17 golos, só atrás de José Águas na lista de melhores marcadores. “Nunca joguei nas reservas, nunca fui suplente, joguei nas selecções todas”, enfatizou, com orgulho, perante as câmaras da Benfica TV.

Tal como aconteceria com Eusébio, não tardaram as aproximações de clubes estrangeiros, interessados na contratação do pilar do meio-campo “encarnado”. O Vasco da Gama e o Flamengo, impressionados pela performance de Coluna numa visita do Benfica ao Brasil, foram os primeiros a avançar, em 1956. “Foi Salazar que não deixou sair, porque não havia profissionalismo. Ninguém saía”, recordou Coluna.

Um médio com poder
O estatuto de líder desde cedo saltou à vista. Nesses tempos, Coluna seria mesmo um dos poucos negros com verdadeiro poder no exercício da sua profissão e com um raio de influência alargado, que se transformaria numa espécie de figura paternal e de exemplo para a maioria dos jovens jogadores. “Eu dentro do campo mandava. Chamava a atenção aos meus colegas”, admitiu.

Jaime Graça, outra das figuras de proa do Benfica de então, atesta essa versão: “Era ele que conduzia a forma de nós ocuparmos os espaços no campo. ‘Vai mais à frente, miúdo, ou vem mais atrás’. Ele levava o jogo todo a dar indicações”, assinalou.

Era Coluna quem, qual marionetista de eleição, puxava cirurgicamente os cordelinhos de um Benfica que encantaria a Europa. Conquistou a Taça dos Campeões Europeus em 1961 e 1962, marcando em ambas as finais (frente a Barcelona e Real Madrid) e esteve perto de conseguir o “tri” frente ao AC Milan, um ano mais tarde. Nesse 25 de Maio de 1963, viveu um dos dias mais difíceis da carreira.

Ainda durante a primeira parte, no Estádio de Wembley, uma entrada mais dura de um italiano causou-lhe uma fractura no pé. Numa época em que as substituições ainda não eram permitidas, Coluna aguentou estoicamente os 90 minutos, claramente diminuído fisicamente, até à derrota final (1-2). O líder, o exemplo voltava a vir ao de cima.

A partir desse ano, tona-se capitão do Benfica, cargo que desempenha durante sete temporadas e que acaba por assumir também na selecção nacional. Um dos símbolos da geração dos Magriços, é no Mundial de 1966 que brilha mais intensamente. “O jogo mais difícil foi quando defrontámos os ingleses. Tinham mais público e a própria selecção inglesa foi amparada pela arbitragem”, apontou.

Também sob a orientação de Otto Glória, com a camisola de Portugal mantinha a mesma influência que tinha no Estádio da Luz: “O treinador quando falava connosco na cabine dizia: ‘Vamos jogar assim, assim. Lá dentro do campo, quem manda é o Mário Coluna”.

O próprio jogador daria uma demonstração desse raio de influência durante o Campeonato do Mundo, num episódio caricato que envolveu o seleccionador nacional. “Salvei o Otto Glória de ser expulso do banco. Houve uma jogada em que o árbitro marcou falta contra Portugal e o Otto Glória levantou-se do banco, foi até à linha e o árbitro foi ao nosso banco. E quando o vi a ir, fui atrás dele. Quando chego lá, o árbitro já estava a levantar o braço para expulsar o Otto Glória. Eu cheguei e bati no braço do árbitro e, no meu fraco inglês, disse: “Mr. Referee, I’m the captain of my team. I’m so sorry about my coach [Sr. Árbitro, sou o capitão da minha equipa. Peço desculpa pelo treinador]”.

A despedida e o regresso a África
Coluna convenceu o árbitro com a mesma facilidade com que convenceu milhares de adeptos ao longo da carreira. No Brasil, era por muitos considerado “o Didi de Portugal”, por cá também ficou conhecido como “o Senhor Coluna”, aquele que, em 1969-70, ao fim de 16 anos de serviço, diria adeus ao Estádio da Luz, após 525 jogos oficiais (328 como capitão).

Nessa temporada, Otto Glória abandonou o Benfica à 19.ª jornada, tendo sido substituído, até ao final da época, por José Augusto, que deixaria Coluna de fora do “onze”. Foi o mote para a despedida, que não aconteceria sem as honras devidas. Para a ocasião, foram “convocadas” algumas das estrelas mais cintilantes do futebol mundial, como Geoff Hurst, Bobby Moore, Luis Suárez ou Uwe Seeler.

A 8 de Dezembro de 1970, Coluna partia rumo ao Olympique Lyon, pelo qual cumpriria mais duas temporadas, para regressar mais tarde a Portugal, concretamente ao Estrela de Portalegre. No Alentejo, desempenharia as funções de jogador-treinador no clube que assistiu ao adeus definitivo ao futebol.

O regresso a África, às origens, foi o passo seguinte de um homem que se preocupava com o desporto para lá do rectângulo de jogo. Chegou a ser deputado pela Frelimo e presidente da Federação Moçambicana de Futebol, acabando também por criar uma academia. Afinal de contas, tinha sido a modalidade que o tinha colocado nas bocas do mundo. O futebol, é verdade, proporcionou-lhe uma carreira. Coluna devolveu a cortesia oferecendo-lhe um nome para a eternidade.

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