Para a direita radical, as medidas do Parlamento são contra-revolução

No processo de tomada de decisões na Ucrânia revolucionária há uma luta feroz entre os radicais de direita que conduziram a revolução e a oposição moderada, que muitos vêem como oligarcas corruptos.

Foto
O Sector Direito reclama um lugar no futuro poder da Ucrânia David Mdzinarishvili/Reuters

“Vamos esperar ordens”, diz um homem de baixa estatura e machado preso ao colete à prova de bala. “Vamos esperar pela decisão do Parlamento.”

Do interior do edifício, os gritos tornam-se mais estridentes. “Os guardas estão a torturá-los”, explica um homem baixo, de capacete na cabeça, Jeugen Hmara, 34 anos, cozinheiro num hotel. “Os presos são combatentes da Maidan e estão neste momento a ser interrogados ali, por guardas afectos ao regime”, diz o cozinheiro, apontando para o edifício branco, de portões encerrados, da prisão de Lukianska. “Temos de atacar agora.”

O grupo foi para aqui enviado pela comando central da Samooborona, a organização de autodefesa de Maidan. Recebeu uma informação segundo a qual uma horda de Titushki (designação por que são conhecidas as milícias pró-Ianukovich) se deslocava para a prisão de Lukianska. O Sotnia número 10, uma brigada que tem por missão acorrer a conflitos ou escaramuças que surjam em qualquer ponto da cidade de Kiev, foi chamado de urgência.

Alguns activistas e mirones já se tinham juntado em frente à prisão, prevendo a libertação dos detidos, que o Parlamento se preparava para aprovar. A ideia era festejar, abraçar os presos, levá-los em ombros sob aplausos e cânticos de louvor à libertação da Ucrânia. Já o propósito dos Titushki era matá-los.

Antecipando alguns problemas de comunicação e convivência entre estes dois grupos de manifestantes, o Sotnia número 10 foi enviado, no seu camião blindado, de rodas gigantes.

Não muito longe dali, o Parlamento prosseguia no seu afã legislativo. Nomeou Oleksander Turchinov, que na véspera assumira as funções de presidente do próprio Parlamento, como Presidente interino do país até às eleições, marcadas para 25 de Maio. Turchinov é um dos líderes do partido Pátria, chefiado por Iulia Timoshenko, libertada no sábado por ordem deste mesmo Parlamento.

Continuou ontem a tomar decisões, em maratona parlamentar revolucionária. Extinguiu o estatuto de língua oficial para o russo em regiões de população maioritariamente russófona, alterou algumas regras quanto à possibilidade de procedimento criminal contra detentores de cargos públicos e deveria decretar a libertação de mais uns tantos presos políticos.

É por isso que se espera em Lukianska, mas a decisão tarda. Segundo alguns responsáveis, presentes no local, do partido Patriotas da Ucrânia, um subgrupo integrado na organização de extrema-direita Sector Direito, os deputados não se entendem sobre quem devem libertar.

Os responsáveis do Patriotas da Ucrânia dizem estar em contacto com os seus amigos do partido de direita com representação parlamentar Svoboda, segundo os quais cada partido só quer libertar os presos da sua cor política. Aos outros considera-os criminosos de delito comum.

Em frente à prisão, como não se confirma a chegada das milícias Titushki, o Sotnia número 10 recebe ordens para retirar. É isso que diz ao megafone o seu líder, dirigindo-se já para o camião. Porém, nem todos concordam. Gera-se discussão, vários activistas de capacete, balaclava e escudo de ferro aduzem argumentos. Um homem esguio, de nariz comprido, olhos verdes, farda de camuflado, lenço palestiniano ao pescoço e as palavras “Slavonia Brotherhood” bordadas no boné, levanta a voz: “Se Iulia Timoshenko foi libertada imediatamente, sem que a decisão tivesse passado por um tribunal, então estes presos também terão de sair. São tão presos políticos como ela. Só porque talvez não beneficiem da simpatia do actual líder do Parlamento, não é motivo para que não lhes sejam aplicados os mesmos critérios. Se a decisão é política para uns, tem de ser para todos.”

O homem que tão eloquentemente expôs o seu ponto de vista chama-se Ieroslav Babich, tem 38 anos e é advogado. Mostra o cartão da ordem dos causídicos da Ucrânia, para confirmar. De momento não está a exercer, porque se dedica a 100% à causa de Maidan.

“Deixei de acreditar no sistema jurídico, tornei-me extremista”, diz ele. Depois conta que fez parte do grupo de advogados que representou os três presos políticos que se encontram ali, na prisão de Lukianska. A defesa não foi bem-sucedida, foram condenados a seis anos de prisão efectiva. Recorreram para o Supremo Tribunal, que ainda não tomou decisão alguma, apesar de os réus já estarem a cumprir pena há dois anos e meio.

Os condenados são Igor Mosichuk, Vladimir Shpara e Serguei Bevz, que eram líderes autárquicos na cidade de Vasilkovskoi, eleitos pelo partido Patriotas da Ucrânia. Segundo Ieroslav, os três autarcas inviabilizaram a construção de um casino, empreendimento de um poderoso homem de negócios da região, com a cumplicidade do chefe da polícia. Este, que se preparava para receber subornos de milhões, decidiu vingar-se contra os três políticos, forjando provas de que estariam envolvidos na preparação de um acto terrorista. Nas suas casas foram encontradas armas e explosivos, que os incriminaram em tribunal. O caso, ocorrido em 2011, foi empolgado pelos media leais ao regime, sob o título de “Terroristas de Vasilkovskoi”.

Ieroslav, que já se tinha aproximado do partido Patriotas da Ucrânia desde 2008, aceitou a defesa destes arguidos. Ficou responsável pelo caso de  Vladimir Shpara. Mas “o tribunal nunca foi justo nem decente. Os juízes não queriam ouvir nem considerar as provas, tudo estava decidido desde o início”, conta. “Por isso decidi desistir. Agora faço justiça como extremista. Estou aqui, e vou libertar aqueles três homens, com estas armas que tenho na mão.”

Ieroslav Babich é agora militante do Patriotas da Ucrânia, cujo símbolo é uma suástica ligeiramente distorcida. São os caracteres “NI” cruzados, que significam "Nazi Idea", diz Ieroslav, para logo corrigir, “Nacional Idea”. O Patriotas da Ucrânia tem no seu programa a proibição imediata do Partido Comunista e do Partido das Regiões, do ex-presidente Viktor Ianukovich.

“Nós achamos que o que está a ser feito no Parlamento neste momento é contra-revolução”, diz Ieroslav. “As pessoas que arriscaram, que estiveram dispostas a dar a vida por este país durante a luta de Maidan é que deviam estar agora no poder, a dirigir a Ucrânia. O novo Presidente, Oleksander Turchinov, nunca o vi nas barricadas. O que estamos a assistir é aos oligarcas a reposicionarem-se, tentando obter cargos, à custa da revolução de Maidan. Eu acho que quem devia agora ser chamado ao poder são os que realmente fizeram a revolução, o Sector Direito.”

Andrei Lazovi, um dos líderes do Sector Direito, pega agora no megafone para exortar todos os presentes a dirigirem-se ao Parlamento, para exigirem a libertação de todos os presos políticos e a marcação não apenas de eleições presidenciais, mas também de eleições legislativas a 25 de Maio.

Após alguma discussão, concluem que não são suficientes para fazer ouvir a sua proposta e decidem levá-la ao palco da Praça da Independência. Lazovi fica incumbido de conseguir tempo de antena no palco da Maidan. Quando os milhares de pessoas que enchem a praça de manhã à noite o ouvirem, correrão para o Parlamento com a nova exigência.

“Amanhã o Parlamento será obrigado a votar a nossa proposta”, diz Lazovi ao megafone. “Amanhã estaremos aqui à mesma hora para abraçar os nossos companheiros libertados.”

Agora é preciso lutar por uns minutos no palco da Maidan, a tribuna do novo poder  – o espaço onde se digladiam os grupos da vanguarda da revolução, com o Sector Direito, de extrema-direita, à frente, e a oposição política, vista por aqueles como uma corja de oligarcas oportunistas. O palco é a última instância de decisão da Ucrânia libertada, mas não é a Maidan, diz Ieroslav. “O palco já foi transformado em festa, em discoteca, tomado pelos traidores da Maidan. Temos de os tirar de lá. Não podemos ir para casa. A revolução continua."

Sugerir correcção
Comentar