Uma poesia revigorada pelo frio que sopra da morte
“O frio é a porta do desaparecimento, a proximidade do não-ser”, diz o poeta e ensaísta Antonio Gamoneda, autor de Líbro del Frío (1992) e uma das vozes mais poderosas e singulares da poesia espanhola.
Nascido em Oviedo, em 1931, tinha apenas um ano quando lhe morreu o pai, autor de um livro de poemas modernistas. Criado pela mãe num bairro operário de León, começou a trabalhar aos 14 anos como estafeta num banco. Em 1960, estreou-se como poeta com Sublevación Inmóvil, cujo lirismo magoado tinha já pouco a ver com os hábitos mais realistas da poesia espanhola da época. Só voltou a publicar em 1977, quando sai Descripción de la Mentira. Um inquérito a 60 poetas e críticos promovido em 2013 pela revista Quimera incluía este volume, a par de Libro del Frío, que Gamoneda editou em 1992, entre os dez melhores livros de poesia espanhola dos últimos 35 anos.
Prémio Cervantes em 2006, Gamoneda reuniu a sua obra poética em Esta Luz (2004), mas regressou recentemente à poesia com Canción Errónea (2012). O PÚBLICO entrevistou-o na Póvoa do Varzim, onde o poeta e ensaísta participava nas Correntes d’Escrita. Falou do seu percurso de vida e da sua poesia, mas também deixou alguns conselhos práticos aos jovens que não se revejam na actual sociedade de consumo. E honrando o que é já uma tradição nas suas entrevistas, arranjou maneira de dizer que acha que o grande poeta da sua geração é Claudio Rodríguez, e não, como outros pretenderão, Jaime Gil de Biedma. A Assírio & Alvim lançou recentemente Oração Fria, uma grande antologia bilingue da poesia de Gamoneda, com tradução e apresentação de João Moita.
Perdeu o seu pai quando tinha apenas um ano, e a sua mãe ensinou-o a ler com um livro de poemas que ele publicara. Deve ter achado que a poesia era a forma natural da linguagem escrita?
Claro, porque tive o conhecimento simultâneo dos signos da escrita e de uma linguagem que não era a da rua, nem a da família, nem sequer a da rádio. Era uma linguagem que, na sua dimensão mais sensível, mas também na ordem dos significados, não se comportava como a linguagem convencional.
E sentia, já então, que era uma linguagem que lhe dizia directamente respeito, pelo que revelava de um pai que já não pôde conhecer?
Sim, havia também uma componente sentimental, até porque a minha mãe venerava a memória do meu pai, e a sua condição de poeta, e de algum modo passou-me essa atitude. Fui poeta por necessidade.
Cresceu, educado pela sua mãe, num bairro operário de Leão. O seu pai, que escreveu esse livro de poemas modernistas – Otra más alta vida –, também vinha de meios proletários?
Quando publicou o livro [em 1919], levava uma vida boémia e ganhava algum dinheiro como ourives. Conservo peças feitas por ele. Parece que teria alguma remota ascendência aristocrática, mas a família era muito pobre. Era um homem com poucos estudos, mas culto, e que tinha boas relações. Quando eu nasci, em Oviedo, ele era director do diário La Voz de Asturias.
Fala muitas vezes da poesia como um intensificador da linguagem. Mas associa essa energização da palavra não a metáforas que sugiram altas temperaturas, incandescência, mas, pelo contrário, ao frio, ao arrepio, à morte.
É verdade, mas na minha poesia o frio não é símbolo de indiferença, é um frio branco, e o branco participa da luz. Melhor do que as minhas próprias palavras, há uma frase de José Lezama Lima que diz isto: “a luz é o primeiro animal visível do invisível”. O frio é a porta do desaparecimento, a proximidade do não-ser. A vida é um estranho acidente: não sabemos porque estamos aqui, mas sabemos que vamos deixá-la. Entre duas inexistências, existe esta coisa rara e singular. E se é muito difícil dizer alguma coisa acerca do que está antes, já do que virá depois, sim, sabemos que é nada. E temos a percepção de que a nossa vida se vai progressivamente esvaziando, de que as coisas, e os seres humanos, vão desaparecendo. Nós mesmo sentimos esse avanço do desaparecimento. E a isso que está à nossa frente, eu defini como o território do frio.
E ele assola a sua poesia desde cedo, não parece ser apenas o reflexo do envelhecimento do autor.
Pois não. Tive essa consciência desde muito novo. Mas também é preciso ter em conta que a minha juventude coincide com os anos em que o pensamento dominante era o existencialismo, e o núcleo do existencialismo diz que o homem é um ser para a morte.
Integram-no na geração dita de 50, mas embora se tenha estreado em 1960, com Sublevación Inmóvil, só voltou a publicar em 1977, quando saiu Descripción de la Mentira. Durante quase vinte anos foi um poeta sem livros. Por causa da censura?
Não, ou não só. Escrevi, de facto, um livro em 1966 ou 1967, Blues Castellano, que foi censurado e só veio a ser publicado em 1982. Mas passei também muitos anos sem escrever.
Porquê?
Havia outras coisas a fazer, outras urgências. Vivi a oposição ao franquismo na clandestinidade. Mas não creio que esses 20 aos tenham sido inúteis para a minha poesia. Quem sabe se não terei estado a carregar baterias?
É isso que explica o fôlego impressionante de Descripción de la Mentira?
Quando escrevi Descripción de la Mentira foi como se tivesse explodido.
Testemunhou a guerra civil, viveu na pobreza, combateu activamente o franquismo, mas a sua poesia é muito pouco explicitamente política.
O sítio da política é a acção, a manifestação, o comício, até o púlpito, mas não a poesia. Política, sim, mas como qualquer cidadão. A oposição, a rebeldia, o sofrimento social, tudo isso está subjacente na minha poesia, mas de modo implícito. Introduzir tematicamente a política na poesia é muito fácil. Mas o material mais forte da poesia nunca foi o tema: com um bom tema pode fazer-se muito má poesia.
Como é que alguém criado na pobreza vê a sociedade consumista dos nossos dias? E o modo como as conquistas sociais estão a regredir na Europa?
Vou responder-lhe, mas deixe-me fazer antes uma nota de rodapé a uma coisa que disse há pouco, quando me incluiu na geração de 50. Eu sou coetâneo desses autores, mas a geração de 50 nunca existiu, foi Jaime Gil de Biedma que a inventou, e ele próprio disse que era uma operação de marketing. É uma falsa geração. Entre um grande poeta como Claudio Rodríguez e um bom poeta de sinal contrário, como Biedma, não há nada em comum.
Agora, a sua pergunta. Eduardo Lourenço diz que as velhas ideologias são hoje inúteis. Estou de acordo. Mas penso que há uma revolução pendente. Assistimos a uma perversa operação mundial, que consiste em embaratecer o preço do trabalho, porque o capitalismo precisa de o fazer para se aguentar. Creio, pois, que poderá haver uma revolução, mas não necessariamente semelhante às revoluções clássicas que acompanhavam as ideologias. Uma coisa é clara: há que destruir o consumismo. E para isso é preciso dar uma nova dimensão àquilo a que chamo a cultura da pobreza. Por exemplo: vou com uns amigos ao Porto, mas vamos todos no mesmo carro. Outro exemplo: eu sou pescador e a minha filha está doente – tu, que és médico, cura-la, e eu pago-te em pescado. Digo-o de forma simples, mas o sentido é este. É preciso acabar com as grandes superfícies, a cultura da pobreza tem de ter uma componente de cooperativismo, de troca, para que não se produzam as mais-valias que iriam parar ao capital.
Já vai havendo algumas pequenas experiências desse tipo.
Em Berlim, há quase um bairro inteiro a funcionar assim. E em Espanha há pequenas iniciativas, se calhar não totalmente acertadas, mas que vão nessa direcção. Quando recebo jovens em minha casa, digo-lhes: não griteis, não atireis pedras, que é o que eles querem: é melhor irem três no mesmo carro para o trabalho.
Já que fez essa ressalva quanto à geração de 50, a sua poesia não parece, realmente, muito próxima da de outros autores do seu tempo, e quando lemos um livro como Descripción de la Mentira podemos talvez mais facilmente pensar em Lorca.
Talvez porque Descripción de la Mentira resulta de um tempo de destruição, de destruição violenta. Tenho amigos que foram torturados, outros que se viram forçados ao suicídio. É por isso que é um livro mais violento.
Um tópico recorrente na sua poesia é o do esquecimento. Dir-se-ia que propõe uma espécie de arte do esquecimento.
Há uma relação dialéctica entre memória e esquecimento, são duas caras da mesma moeda. Há um poeta franquista, Manuel Alcántara, cuja obra não me interessa nada, mas que tem este verso magnífico: “o melhor da recordação é o olvido”. A memória tem um funcionamento imprevisível, e também o esquecimento, e é pela mesma razão que é imprevisível o que vou escrever – há um elemento gerador a trabalhar, mas só tomo consciência dele quando já está escrito.
A poesia portuguesa da sua geração teve relações próximas com a espanhola, uma ligação que depois se atenuou e que agora talvez esteja a regressar com os autores mais novos. Manteve, ou mantém, contacto com poetas portugueses?
Conheci alguns. Na minha longínqua juventude, até tive Miguel Torga em Leão. E dedicou-me um livro, ele que nunca fazia dedicatórias. Escreveu: “a António” e assinou “T.”.
Dedicatória, sim, mas não exageremos…
[Risos]. Mas também conheci pessoalmente Mário Cesariny. E embora nunca o tenha encontrado, troquei correspondência com Herberto Helder: uma pessoa talvez um pouco difícil, mas um grande, grande poeta. E há o caso muito triste do Luís Miguel Nava, que era visita de minha casa.