Quanto pode custar ao país uma geração de filhos únicos?
Em 2013, Portugal voltou a registar uma quebra recorde em termos de natalidade: nasceram apenas 82.538 crianças, muitos dos quais permanecerão como “filhos únicos” e provavelmente superprotegidos. Lá fora, a chegada destes miúdos ao mercado de trabalho já suscita inquietações.
“Quando estes miúdos chegam ao mercado de trabalho (…), exigem tarefas bem definidas e um constante feedback (…). E é muito difícil dar-lhes um feedback negativo sem esmagar os seus egos”, lamenta-se o empresário e escritor norte-americano Bruce Tulgan, autor do livro Not Everyone Gets a Trophy, citado num artigo da revista norte-americana The Atlantic.
Na publicação, não faltam patrões a denunciar as dificuldades em empregar jovens com pouco mais de 20 anos de idade. “Eles precisam que tudo seja soletrado e exigem ser levados ao colo”, aponta um. Será, conclui-se no artigo, o resultado de terem crescido sempre com alguém — os pais, mas também professores — a monitorizar todos os aspectos da sua vida e de terem crescido como pequenos príncipes.
Se em Portugal o fenómeno ainda não é tão visível, é porque o país chegou mais tarde ao problema demográfico. Afinal, como recorda o historiador Manuel Loff, “os anos de 1975 a 1976 foram os de maior nupcialidade, se não de toda a história do século XX pelo menos desde o final da II Guerra Mundial, e essa nupcialidade gerou a mais alta natalidade também”.
Em 1976, por exemplo, nasceram 186.712 crianças. Aqui, “além do impulso optimista típico dos períodos de libertação”, concorreram factores como o regresso dos 250 mil soldados que estavam nas trincheiras africanas e dos cerca de 200 mil emigrantes que tinham partido para a Europa, além dos quase meio milhão de retornados.
Mas os efeitos da quebra de natalidade que se seguiu (“não só por causa da crise económica, que tem no segundo resgate do FMI os piores anos, mas também porque as mulheres começaram entretanto a aceder a meios de contracepção e a poder programar autonomamente a sua vida”, como recorda ainda Loff) começam já a ecoar nos consultórios portugueses.
“Posso, quero e mando”
“Nas famílias, o facto de se ter só um filho pode levar a uma concentração das expectativas nessa criança, passando a ser não apenas o alvo de todas as atenções, como aquela que terá de ser tudo aquilo que os pais foram, desejavam ser ou querem que ela seja. Por outro lado, também há uma concentração dos bens materiais, o que pode levar a estimular na criança a parte narcísica e omnipotente do ‘posso, quero e mando’ ou do ‘quero tudo, já, porque eu sou eu e tenho direito a tudo’, que mais tarde causará graves problemas, não só à pessoa em causa, mas aos que a rodearem”, alerta o pediatra Mário Cordeiro.
O especialista ressalva, porém, que “é possível ser-se filho único e não se ser ‘estragado’, pretensioso, arrogante, narcísico e omnipotente”. Tudo depende “do modelo educativo e dos exemplos parentais e das figuras de referência”.
O problema incide assim na pressão que se criou em torno da parentalidade e do lugar da criança na família. “Assistimos a uma idealização da criança que não existia no passado, em que os filhos vinham como vinham e eram quem eram. Hoje, estamos muito menos expostos à infância, ou seja, vive-se com muito menos crianças à volta. E as que existem vivem em quotidianos de quase Big Brother, sempre debaixo do olhar de adultos quase escolhidos a dedo e quase sem espaço para uma brincadeira que não seja formatada pelos adultos e controlada pelos adultos”, observa Vanessa Cunha, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Ora, se se recusa às crianças a possibilidade de “aprender caindo, é natural que se caminhe para uma geração de adultos com dificuldade em gerir adversidades”.
Pressão sobre os pais
Nada que surpreenda numa sociedade em que as famílias são cada vez mais verticais. “Há muitos adultos, pais, tios e avós, para poucas crianças”, descreve Vanessa Cunha. Dos 89.841 bebés nascidos em 2012, 48.766 eram primeiros filhos. E se, de entre os bebés nascidos nesse mesmo ano, os segundos filhos ainda eram significativos (30.499), os terceiros filhos caíam drasticamente para os 7730.
Pior: “Não apenas ao nível das famílias há poucas crianças, como estas têm poucos primos — os pais também já pertencem a uma geração de poucos irmãos —, há poucas crianças nos prédios e a vida faz-se menos em ‘espírito de aldeia’, comunitário, mas muito fechado entre quatro paredes, seja de casa, do automóvel ou dos próprios infantários e escolas”, acrescenta Mário Cordeiro.
Quanto às razões para os casais recearem o salto para o segundo filho, todos de acordo. “Questões financeiras e de conciliação do trabalho com a vida familiar adiam ou levam mesmo à recusa da transição para o segundo filho”, aponta Vanessa Cunha. Àquelas razões somam-se motivos latentes. “A parentalidade de per si passou a ser um problema e a estar debaixo de uma forte normatividade. Antigamente, ser pai ou ser mãe era algo que se aprendia com a geração anterior e as pessoas não viviam angustiadas porque tinham dado uma palmada ao filho. Hoje, há informação, pediatras, revistas da especialidade, psicólogos e toda uma camada de profissionais ligados à infância que estão sempre a colocar condições e exigências que levam as pessoas a sentirem que ser bom pai ou boa mãe é uma missão quase impossível”, defende a socióloga. E se ao segundo filho “as pessoas começam a relativizar tudo isso, porque percebem que face aos mesmos inputs saem filhos diferentes, quando não se passa do primeiro estas coisas continuam muito empoladas”.
Tome-se como exemplo o crónico problema da falta de tempo dos pais. “É algo que na verdade sempre existiu. Dantes, as mães não se sentavam a fazer desenhos ou pinturas com os filhos e hoje fazem-no. A diferença é que agora nas entrevistas surgem pessoas que não querem ser pais, ou não querem partir para o segundo filho, porque não se sentem capazes de o fazer nem se sentem preparadas para a grande dose de sacrifício pessoal que sentem que têm que fazer em prol da criança.”
Superprotecção
Raciocínios deste tipo seriam impensáveis sem as transformações ocorridas na sociedade portuguesa nas últimas décadas. Manuel Loff recua até aos seus tempos de estudante: “Acabei a 4.ª classe em 1974, numa escola masculina de bairro camarário, onde era normal, quando vinha a Primavera, um terço dos meus colegas faltarem porque iam trabalhar para as obras.”
E mesmo nos anos 80 a concepção da identidade das crianças e do seu papel social ainda incluía o seu dever de contribuir para o orçamento familiar — por exemplo, em regiões como o Minho, onde o trabalho infantil era proporcionalmente inverso à taxa de escolarização. “O aumento global da escolaridade, a melhoria das condições de planeamento familiar e uma perspectiva muito diferente do papel da mulher só depois se conjugaram para permitir que triunfasse o conceito romântico de família, típico do século XIX, e que implica um grande investimento na educação dos filhos como representação dos sonhos e aspirações dos pais, com estes a serem capazes de proteger o bem-estar dos filhos, mesmo que isso implique sacrificarem o seu próprio bem-estar, até chegarmos a este extremo de superprotecção das crianças e dos adolescentes, num mundo em que a competição é cada vez mais dura.”
Sem querer assumir-se como “profeta da desgraça”, Mário Cordeiro lembra que o preço a pagar pode ser mais elevado do que se pensa. “Temos a obrigação de exigir políticas concertadas, maior atenção à infância e uma perspectiva desta não apenas na actualidade e no presente, mas projectando-a no futuro. Foi o que fizeram os países mais evoluídos, como os nórdicos, na sequência da II Grande Guerra e da fragmentação do tecido social que esta causou.”