Cartas, postais, fotos e diários vão ajudar a contar a história da emigração portuguesa
Um professor de História nos Estados Unidos está a analisar palavras e imagens de quem partiu e de quem ficou para estudar o fenómeno migratório do nosso país.
O docente, que este ano é investigador residente no Instituto de Estudos Avançados em Humanidades e Ciências Sociais em Wassenaar, na Holanda, quer alargar o âmbito da sua investigação e estudar cartas, fotos, postais e diários de emigrantes portugueses de todo o país, ilhas incluídas, dos séculos XIX e XX. Trata-se de um projecto académico, um estudo histórico, social e cultural com base na correspondência familiar, nos múltiplos pontos de vista dos intervenientes nos movimentos migratórios – mulheres, maridos, noivos, pais, filhos, irmãos, parentes. Dos que partiam e dos que ficavam.
“A correspondência familiar pode oferecer uma janela para nos adentrarmos nessas perspectivas e nas dimensões humanas e afectivas da separação e do projecto do retorno ou da possível reunificação. Nas cartas, os emigrantes e suas famílias falavam dos sonhos, esperanças e medos; faziam avaliações e calculavam riscos; negociavam novas funções criadas pela ausência; confrontavam dúvidas e tensões; partilhavam informações sobre os locais de destino e sobre a experiência migratória; e exprimiam sentimentos que ajudavam a manter as relações vivas, apesar da distância e do tempo”, refere o docente numa troca de emails com o PÚBLICO. As cartas ajudavam a consolidar vínculos afectivos, apesar da distância e do tempo de separação.
As cartas trocadas, os postais de saudade, as fotos que viajaram em malas e os diários escritos à mão permitem aceder à voz de gente comum que os números das estatísticas, muitas vezes, não transmitem nem reflectem.
O projecto está no início. Marcelo Borges recebeu poucas cartas de Portugal, mas tem sido contactado nesse sentido. E vem recebendo alguns retratos formais, quer individuais quer de grupo. “Seria muito interessante poder ter acesso a alguns álbuns familiares para ver como aparece representada a presença dos ausentes no estrangeiro”, comenta. Ainda sem definir limites em termos de material para o estudo, o professor pretende ter uma representação geográfica o mais abrangente possível, a maior diversidade de destinos, e centrar-se num período temporal que vai das últimas décadas do século XIX aos anos 60 do século passado.
Complementar o estudo académico com outras perspectivas quotidianas, contando experiências dos emigrantes, nomeadamente através do que foi sendo escrito em diários pessoais, é também uma abordagem que lhe interessa. Nos próximos dois anos, Marcelo Borges espera ter resultados parciais em forma de artigos e, durante esse tempo, preparar um estudo mais abrangente que deverá resultar na publicação de um livro sobre a emigração portuguesa.
“Uma alternativa que não desaparece”
Há mais de 20 anos que o professor de História estuda as migrações portuguesas – tem, inclusive, artigos publicados sobre o tema e participado em colectâneas académicas em Portugal. “Historicamente, a emigração portuguesa é uma emigração com ideia de regresso. Quem partia era, regra geral, quem queria melhorar a sua posição no local de origem. Já a realidade tem sido mais diversa.” Muitos partiam e não voltavam. Casavam-se, constituíam família, consolidavam a sua posição no local de acolhimento, e acabavam por ficar. Na sua tese de doutoramento em História, na Universidade de Rutgers, em Nova Jérsia, Estados Unidos, centrou-se no tema, sobretudo na emigração algarvia para a Argentina nos séculos XIX e XX. “A maior particularidade das migrações do Algarve para a Argentina é que este país foi o principal destino internacional quando a grande maioria dos emigrantes das outras regiões de Portugal ia para o Brasil ou outros destinos. Uma vez na Argentina, os algarvios desenvolveram comunidades com perfis ocupacionais específicos em várias zonas do país, nomeadamente como pioneiros no trabalho do petróleo na Patagónia ou do cultivo intensivo de flores para os mercados urbanos nos arredores de Buenos Aires.”
No ano passado, cerca de 120 mil portugueses saíram do país. A emigração não é um fenómeno recente, as suas características alteraram-se, mas há coisas que não mudam. “Um aspecto saliente é a permanência ao longo do tempo. Ainda que num contexto tão diferente como o Portugal dos fins do século XX e o de inícios do século XXI, que também recebeu imigrantes, a emigração é uma alternativa que não desaparece”, refere. As possibilidades do mercado de trabalho, as políticas dos países receptores e os contactos mantidos com quem já partiu e criou ligações ajudam a explicar a escolha do destino.
Há o que permanece e o que muda. “Talvez a particularidade mais clara é que, como em outros países do Sul da Europa que estão a viver o mesmo fenómeno, esta emigração inclui mão-de-obra altamente qualificada. Este é um fenómeno novo em Portugal”, realça. “Nas últimas décadas, o país tem investido muito na educação, mas as possibilidades laborais nem sempre são as mais adequadas”, acrescenta, sublinhando que este cenário deveria levar o Governo a “repensar as prioridades de planificação e de políticas de Estado”. Todavia, o docente não rotula de preocupantes os movimentos migratórios. “Tanto no presente como nas migrações históricas, as migrações também constituem oportunidades.” Oportunidades de trabalho, de melhorar a vida, de começar ou recomeçar.