Troika impôs medidas com "pistola à cabeça" dos países ajudados e sem controlo democrático
Entrevista a Liem Hoang Ngoc, eurodeputado socialista francês e um dos dois responsáveis do Parlamento Europeu (PE) pela investigação em curso à acção da troika de credores da zona euro e Fundo Monetário Internacional (FMI) nos países sob programa de ajuda externa – Portugal, Grécia, Irlanda e Chipre.
Nas suas deslocações aos países sob programa de ajuda, e depois das audições aos responsáveis das instituições europeias que integram a troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI) descobriu alguma coisa que já não soubesse?
Sim, descobri nomeadamente que as três instituições da troika estão longe de estar de acordo sobre todas as opções que foram impostas a cada um dos Estados sob programa de ajuda. Na Grécia, o último país que visitámos, pude constatar que o FMI e o BCE estavam em desacordo sobre a ideia de uma reestruturação da dívida grega e isso teve implicações extremamente graves, porque levou à aplicação de medidas de consolidação orçamental muito estritas recomendadas pela Comissão Europeia.
Essa é para si a maior surpresa dos programas da troika?
São coisas que transpiravam, mas, quando se tem a confirmação, há coisas que causam arrepios, porque tiveram implicações enormes na vida das pessoas. As medidas impostas não foram objecto de deliberação em nenhuma estrutura democrática. Foram os tecnocratas das três instituições que impuseram, com a pistola apontada à cabeça dos governos em causa, medidas que não foram discutidas democraticamente ao nível europeu.
Os responsáveis da troika justificam as opções assumidas com a situação de emergência que a zona euro viveu em Abril, Maio de 2010 por causa da perspectiva de falência da Grécia e do risco de contágio aos outros países mais frágeis. Dizem que não havia alternativa ao que foi feito...
É verdade que assumiram o discurso de que não havia alternativa. Só que estas instituições não partilham de todo as mesmas teses. É verdade que Jean-Claude Trichet [ex-presidente do BCE] e Olli Rehn [o membro da Comissão Europeia responsável pelos assuntos económicos e financeiros] são os que estão mais próximos em termos de apoio às reformas estruturais e à consolidação orçamental. Trichet evita dizer que o BCE ultrapassou alegremente o seu mandato quando foi recomendar medidas muito precisas de política orçamental, fiscal e estrutural aos Estados-membros. O BCE e a Comissão agiram sem mandato no tratado da UE. Há um verdadeiro problema de base jurídica no funcionamento da troika. As decisões foram impostas sem base jurídica e isso levanta um verdadeiro problema, porque os países em causa não têm escolha.
A Comissão e o BCE estavam sob uma enorme pressão política da Alemanha, Holanda, Finlândia...
Esse é precisamente o problema, porque, quando não há procedimentos democráticos, decide-se com arranjos intergovernamentais no Eurogrupo [os ministros das Finanças do euro]. E quem decide no Eurogrupo é o peso predominante da Alemanha. Na Grécia ouvi falar de colonialismo, a palavra não é apropriada, mas esse sentimento vem do facto de as decisões terem sido impostas em resultado de acordos intergovernamentais num Eurogrupo em que predomina a voz alemã. No futuro não se pode deixar que decisões tão importantes como as recomendações de política macroeconómica fiquem unicamente sob o controlo dos Estados. É preciso uma co-decisão com o PE, é preciso um método comunitário, senão os nossos compatriotas considerarão que são os tecnocratas que decidem ou alguns países que se coordenam entre si nas costas do interesse geral.
Pensa que a Comissão poderia, ou deveria, ter feito algo de diferente, por exemplo, enfrentando os Estados? Ou a Comissão sobreinterpretou a vontade da Alemanha e foi mais papista do que o Papa?
A Comissão deveria ter envolvido o PE.
Para votar os programas de ajustamento?
Como estamos numa ausência total de base jurídica, se se quisesse verdadeiramente deliberar sobre escolhas completamente opacas, muitas vezes antagónicas entre si, o PE deveria ter sido envolvido para decidir questões que os tecnocratas acabaram por impor por vezes sem qualquer bom senso.
Mas quem é que falhou aqui? A Alemanha e outros países ditos rigorosos que impuseram as suas escolhas, ou a Comissão, que não desempenhou o seu papel de guardiã do interesse geral europeu?
A Comissão não foi a garante do direito comunitário. Em Chipre, a primeira proposta de envolver os bancos nos custos do resgate foi claramente contra a directiva [lei europeia] que garante os depósitos de menos de 100.000 euros. A Comissão falhou nesse caso e felizmente que o parlamento cipriota se opôs à medida. Em última análise foram os Estados que tomaram todas as decisões e sabemos que os Estados não têm qualquer interesse em ceder soberania, por isso não envolveram o PE. Também sabemos todos que a Comissão é fraca e que certos Estados, em 2009, quiseram uma Comissão fraca e por isso reconduziram Durão Barroso [como presidente] e nomearam comissários também eles fracos.
Os Estados sob programa de ajuda tiveram a possibilidade de mudar ou ir contra as imposições da troika?
Não, por isso usei deliberadamente a expressão "pistola apontada à cabeça". A escolha era: ou aceitavam o memorando [que estabelece as contrapartidas da ajuda], ou não tinham ajuda.
Em Portugal, que margem teria o actual Governo para alterar um memorando que foi negociado pelo seu antecessor?
Ah, mas descobrimos que os conservadores [PSD] estiveram associados à negociação do memorando por parte do Governo demissionário. José Sócrates não estava sozinho a negociar, tinha – entre aspas – nos calcanhares uma pessoa chamada Eduardo Catroga, que fez tudo para endurecer o memorando com o apoio de Durão Barroso na Comissão. Isto foi o que José Sócrates nos disse em Portugal.
E o actual Governo o que disse?
O que o Governo fez foi sobretudo conversa fiada. Isto foi o que Sócrates nos disse. Houve pessoas que ensaboaram a tábua antes das eleições. Barroso e a Comissão modificaram os critérios de cálculo da dívida portuguesa em 2011, o que resultou num défice maior que levou à imposição de medidas de austeridade negociadas no memorando mais duras do que as que Sócrates queria. E, depois da sua vitória, o Governo português aplicou medidas de austeridade ainda mais duras. Em Portugal procedeu-se a uma desvalorização interna [de salários] pretendida pelo FMI em simultâneo com uma consolidação orçamental acelerada. E o cúmulo do cúmulo é que não só o PSD aplicou uma política de austeridade mais dura, como há coisas bastante opacas que aconteceram: a privatização da Energias de Portugal (EDP) fez-se em condições que merecem ser esclarecidas. Podemos perguntar-nos se não houve um conflito de interesses quando observamos que o senhor Catroga está à frente da EDP privatizada que é hoje detida pelos chineses.
Pensa que a dívida grega deveria ser reestruturada agora, mesmo quando a maior parte está nas mãos dos governos do euro e do BCE?
O BCE detém hoje 34.000 milhões de títulos gregos. Vai ser preciso reestruturar a dívida grega, senão o país terá 50 anos de austeridade e uma dívida que vai explodir, porque a austeridade mata o crescimento económico. O que sugiro no relatório – mas penso que o PPE [direita moderada europeia] o vai rejeitar – é que o BCE assuma perdas. Se houver um perdão de 50% sobre os 34.000 milhões, o BCE perde 17.000 milhões. Não é uma perda enorme porque para o BCE trata-se de criação monetária. E criação monetária na ordem dos 17.000 milhões não é de todo inflacionista, sobretudo no momento em que é a deflação que ameaça, como diz o próprio Mario Draghi [presidente do BCE]. Debati esta questão com Yannis Stournaras [ministro grego das Finanças]. Ele coloca a questão, mas vê que, no Conselho, a Alemanha não gosta quando se fala de criação de moeda pelo BCE. Por isso, está em negociação um prolongamento dos prazos de reembolso da dívida [contraída com os empréstimos dos países do euro] e uma redução dos juros. É uma solução mediana que permitirá aligeirar um pouco o fardo, mas não é a solução mais forte.
Pensa que a dívida portuguesa também deveria ser reestruturada?
É uma questão, mas não a invocámos na viagem. Ninguém levanta esse problema, porque Portugal está a regressar aos mercados para se financiar e toda a gente teme que uma reestruturação provoque uma tensão sobre as taxas de juro. Não ouvi ninguém em Portugal colocar o problema, também porque o que o Governo nos fez foi conversa fiada.
Os outros governos foram mais abertos?
Muito mais, muito mais mesmo. Na Grécia, com Stournaras, tivemos um debate muito bom. Na Irlanda, Michael Noonan [ministro das Finanças] disse claramente que quer que o ESM [mecanismo de socorro do euro] resolva retroactivamente o problema dos bancos, assumindo 30% da dívida irlandesa resultante do salvamento dos bancos feito quando o ESM ainda não existia. E, em Chipre, as autoridades são muito críticas face à troika e à política de dois pesos e duas medidas assumida em função dos interesses financeiros de cada um.
Então o Governo português é o mais "pró-troika"?
Absolutamente! É conhecido que o Governo português é o melhor aluno da troika, foi por isso mesmo que fomos lá em primeiro lugar.
E a conversa fiada foi feita por quem? Pelo vice-primeiro-ministro Paulo Portas?
Maria Luís Albuquerque também não esteve mal nesse aspecto.
Entre Portugal e Grécia, qual é o programa mais duro?
A Grécia e Portugal são dois exemplos de aplicação dos dois travões ao mesmo tempo, a austeridade orçamental e a deflação salarial, com as mesmas consequências catastróficas sobre o crescimento económico e sobre a dívida. A Irlanda é um caso à parte, porque foi no início uma crise bancária que se fez pagar depois com um resgate que pesa sobre as pessoas através da austeridade.
Que conselho é que daria ao Governo português para sair desta crise?
Aconselharia o Governo a considerar que as reformas estruturais estão feitas e que é preciso aplicar uma política macroeconómica adequada para apoiar o crescimento. Isso pressupõe que se recupere margens de manobra, nomeadamente em matéria de política orçamental, o que significa renegociar algumas coisas no quadro do memorando a propósito da redução do défice. O que temo é que, num contexto de regresso ao mercado e de programa cautelar [para proteger o país de eventuais flutuações excessivas das taxas de juro], se venham a endurecer as políticas de austeridade.