Pai de criança maltratada sente-se "grato" para com ama suspeita de agressões
Inspectora da Segurança Social impressionada com estado de apatia de menores em creche clandestina no centro de Lisboa. Julgamento começou ontem
O pai de uma das crianças agredidas numa creche clandestina que funcionava no centro de Lisboa em 2011 foi ouvido esta quarta-feira no arranque do julgamento da ama.
A sexagenária foi denunciada por um vídeo feito por um vizinho que a mostra a bater repetidamente num dos menores que tinha à sua guarda. Nas quatro assoalhadas da Avenida Miguel Bombarda onde funcionava o infantário improvisado Vavá, como era conhecida a mulher, armazenava 17 crianças, com idades que iam dos três meses aos três anos. Berçário era coisa que não havia, mas este, como muitos outros detalhes, eram coisas que escapavam ao interesse dos pais, que mal conheciam as instalações onde todos os dias iam deixar as crianças por um preço mais do que módico: entre os 40 e os 150 euros mensais, explicou a inspectora da Segurança Social que mandou fechar a creche depois de o vídeo das agressões ter passado na SIC e chegado às mãos da polícia.
Quem só ia buscar a criança às 2h da manhã ou a entregava também ao fim-de-semana pagava mais, 250 euros. Mas a ama estava sempre disponível, nunca dizia que não. “Se calhar foi esse o erro dela: deixou-se chegar a um estado tal de exaustão que pode ter tido algumas consequências”, observou à saída do tribunal o advogado da arguida, Túlio Araújo.
É essa disponibilidade constante que o pai de um dos meninos agredidos, que trabalha por turnos na AutoEuropa, ainda hoje elogia. Que aproveitassem para ir ao cinema, que ela tomava conta das crianças, recordam-se os pais de a ouvir dizer.
Educadora de infância de profissão, e desde sempre ciente de que confiava o menino a uma creche clandestina, a mulher do funcionário da AutoEuropa só se culpabiliza por nunca se ter apercebido de que os problemas do infantário ultrapassavam a mera questão da inadequação das instalações.
Quando, em Junho de 2011, as autoridades fecharam o local, que servia também de residência à ama, foi chamada para levar dali a criança, tal como os outros pais. Nesse mesmo dia viu o vídeo: “Era o meu filho a levarna cara da Vavá”, na marquise onde os miúdos almoçavam por turnos, em cadeirinhas.
Eram alimentados em grupos de seis, todos do mesmo prato e com a mesma colher, explicou em tribunal a única adulta que ali trabalhava além da ama, uma empregada doméstica russa. “Não fazia grandes mimos às crianças. Tratava-as como adultas”, descreveu.
Um director comercial que também lá tinha um filho ainda hesitou quando esta se lhe queixou, ainda o escândalo não tinha rebentado, de ter levado “uma sapatada no rabo por ter feito chichi nas calças”. Acabou por continuar a deixá-lo no apartamento, depois de a ama ter garantido que tudo não passava de imaginação infantil.
A inspectora da Segurança Social já tinha mandado a ama fechar uma outra creche improvisada que esta abrira nas Avenidas Novas no ano anterior, nos mesmos moldes desta. Quando foi à Avenida Miguel Bombarda com as autoridades fechar este infantário, a inspectora deparou-se com um pormenor que a impressionou até hoje: o silêncio e a apatia das crianças que ali estavam.
“Nas horas que ali fiquei não ouvi um choro, um gemido, nada – apesar de terem lá entrado vários adultos que não conheciam”, recordou. “Tinham um olhar fixo, encontravam-se num estado de apatia”. Estariam dopadas? O advogado da ama assegura que não, que chegaram a ser-lhes feitos exames toxicológicos que nada revelaram. Questionado sobre se esses testes abrangeram a totalidade das 17 crianças, Túlio Araújo responde: “Neste momento esse assunto já não tem importância”.