Colecção Miró do BPN saiu ilegalmente de Portugal e leilão está em causa
Ministério Público pediu suspensão da venda em Londres e já ouviu testemunhas e decisão do tribunal é conhecida nas próximas horas. Direcção-Geral do Património denuncia saída ilícita das 85 obras do catalão.
A decisão do tribunal não é ainda conhecida, apontando fontes judiciais à Lusa, bem como fontes próximas do processo ouvidas pelo PÚBLICO, que a decisão do tribunal deve ser conhecida ao final da manhã de terça-feira, horas antes do início do leilão em Londres. No Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa estiveram presentes, além de Isabel Cordeiro, representantes da Parvalorem, sociedade criada no âmbito do Ministério das Finanças para recuperar créditos do BPN e que é proprietária das obras, da Christie’s e do Ministério das Finanças. Na sessão foi também ouvida por videoconferência a deputada socialista Gabriela Canavilhas, que se encontrava nos Açores.
A ex-ministra da Cultura foi, com Inês de Medeiros, José Magalhães, Pedro Delgado Alves e Vitalino Canas, uma das deputadas autoras de uma exposição à Procuradoria-Geral da República (PGR) que originou o pedido do Ministério Público para impedir a venda da colecção. O pedido, com carácter de urgência, foi conhecido segunda-feira e resultou na sessão em tribunal, que começou ao final da tarde e que foi presidida pela juíza Guida Jorge. No mesmo dia, o PÚBLICO teve acesso a um documento da Direcção-Geral do Património Cultural, assinado por Isabel Cordeiro, que denuncia que “não foram cumpridos” os “procedimentos legais” para a expedição da colecção de Portugal rumo a Londres.
O socialista José Magalhães disse ao PÚBLICO que os deputados se dirigiram à PGR, e não ao tribunal, porque desta forma o processo avançaria mais rapidamente. “A PGR tem meios muito importantes de avaliação e representa uma entidade com um peso institucional muito grande”, diz Magalhães, para quem a PGR “empresta uma autoridade especial às iniciativas de defesa do interesse público” — o Ministério Público representa o Estado e está aqui a interceder num caso no qual o papel do Estado é posto em causa.
Isso seguramente pesa também no processo de avaliação do tribunal, que é muito melindroso e difícil”, acrescentou o deputado, defendendo que “será um imbróglio consumar o leilão”, marcado para esta terça e quarta-feira a partir das 19h.
José Magalhães acredita ainda que a realização do leilão representa “um enorme risco” para a leiloeira, para um eventual comprador ou para o Estado português. Isto porque, lembra, “no Direito o que se faz de mal desfaz-se. A Christie’s está ciente do risco em que incorre ao participar na consumação de um facto que é controverso”.
Ao PÚBLICO, a responsável pela comunicação da Christie’s, Hannah Schweiger, disse que a leiloeira está a par dos acontecimentos em Portugal, escusando-se a fazer mais comentários. O PÚBLICO questionou o Ministério das Finanças sobre a audição em tribunal e sobre a presença, segunda-feira ao final da tarde, do presidente da Parvalorem Francisco Nogueira Leite na Secretaria de Estado das Finanças, mas não obteve resposta. Também o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, não esteve disponível para comentar o caso.
Uma colecção única
Para Gabriela Canavilhas, esta acção do Ministério Público prova “que as instituições funcionam”, “reforçando a confiança dos cidadãos”. De “consciência tranquila” por ter feito o que acha correcto, a ex-ministra da Cultura dissera na semana passada ao PÚBLICO que a iniciativa da providência cautelar para impedir o leilão surge na esteira do caso Crivelli — o actual Governo autorizou o empresário Miguel Pais do Amaral a vender no estrangeiro uma obra para a qual vários especialistas emitiram pareceres em que pediam que a pintura Virgem com o Menino e Santos fosse classificada como Tesouro Nacional. A deputada socialista tem sido nas últimas semanas uma das vozes mais críticas em relação à decisão do Governo de vender esta colecção que contempla praticamente todas as fases da vida artística de Joan Miró.
E é exactamente esta característica que faz desta colecção “uma das mais extensas e impressionantes ofertas de trabalhos do artista que alguma vez foi a leilão”, como escreveu a Christie’s quando anunciou o leilão no final de 2013. São 85 obras que percorrem as diferentes fases da produção artística do catalão, da sua vida e dos acontecimentos do seu tempo, motivo também pelo qual a directora-geral do Património defendeu a sua permanência em Portugal e a consequente integração num museu público português.
Considerando “indiscutíveis as potencialidades” da permanência da colecção em Portugal para “o desenvolvimento do tecido museológico, cultural e, inclusive, turístico do país”, a directora-geral do Património Isabel Cordeiro pediu a classificação da colecção Miró e desaconselhou “a saída definitiva” das obras do país. A 13 de Janeiro, a Secretaria de Estado da Cultura disse ao PÚBLICO que a aquisição da colecção de Joan Miró não era considerada “uma prioridade” no actual contexto de organização das colecções do Estado.
No documento da DGPC enviado ao presidente da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, Abel Baptista, do CDS-PP, e a que o PÚBLICO teve acesso, detalha-se que a direcção-geral sugeriu à tutela há mais de um ano, a 20 de Setembro de 2012, a “incorporação em museu público da colecção de 85 obras de Joan Miró ou, em alternativa, a aquisição das melhores obras da referida colecção pelo Estado”.
Além de pedir a classificação das obras, explica-se que o facto de não terem sido cumpridos os prazos legais para o pedido de autorização de expedição das obras foi denunciado à Secretaria de Estado da Cultura a 15 de Janeiro, apenas seis dias antes da inauguração, em Londres, da exposição pública em que a Christie’s reuniu os 85 trabalhos. A Lei de Bases do Património Cultural obriga a que a saída de bens culturais seja precedida de uma comunicação à DGPC com pelo menos 30 dias de antecedência, o que não aconteceu.
Na exposição assinada por Isabel Cordeiro, relata-se ainda que a DGPC recebeu a 16 de Janeiro os pedidos de expedição para Londres dos advogados da Parvalorem e da Parups (a outra sociedade criada para recuperar créditos do BPN), estando o leilão agendado para daí a 18 dias. No dia seguinte, a DGPC pediu às sociedades a “confirmação da actual localização” da colecção, resposta que não obteve até à data do documento enviado ao Parlamento. Uma autorização de saída só pode ser dada com a presença das obras em causa em Portugal.
Isabel Cordeiro diz no documento que apenas teve conhecimento da intenção de saída destas obras a 6 de Janeiro através da imprensa. Data em que procedeu “de imediato a DGPC à solicitação de pareceres especializados” sobre a relevância cultural deste conjunto artístico do catalão e as “possibilidades efectivas da salvaguarda e valorização da colecção em território nacional”.
Os pareceres foram pedidos a David Santos, o novo director do Museu do Chiado, e a Pedro Lapa, director do Museu Berardo, como o PÚBLICO noticiou. Ambos destacaram a “indiscutível relevância de que se reveste a colecção”, assim como a “importância da sua protecção legal, designadamente através da classificação”. Foram estas informações que seguiram depois para o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, a 15 de Janeiro. Dois dias depois, a 17 de Janeiro, Isabel Cordeiro desaconselhou a Barreto Xavier “a saída definitiva da colecção”, considerando que manter as obras em Portugal é uma “oportunidade única que constitui para o Estado português de reforçar significativamente o seu posicionamento estratégico enquanto detentor de uma colecção de arte moderna de primeira importância”.
O Estado espera arrecadar 35 milhões de euros com a venda das obras em Londres, segundo a avaliação da leiloeira. Mas caso a venda não aconteça, o contrato entre as partes obrigará o Estado português a indemnizar a leiloeira Christie’s, disse na última edição do semanário Expresso o presidente da Christie’s Europa, Jussi Pylkkanen.
Não sendo conhecidos valores exactos dessa potencial indemnização, a deputada socialista Inês de Medeiros diz ao PÚBLICO que se tal acontecer, “deve ser imputado com gestão danosa quem no Governo tomou a decisão” de deixar sair as obras do país num contexto de ilícito.