O mundo de Vasco, o poeta cavaleiro a quem nada falta, coube todo na Gulbenkian
Dia de homenagem ao poeta e ensaísta numa casa que conhece bem. Vasco Graça Moura sentou-se na plateia para ouvir os elogios e sorriu: "Não sou vaidoso, sou objectivo."
“Só espero que nestas cadeiras também estejam alguns dos meus leitores”, diz ao sentar-se para falar com os jornalistas, num intervalo da sessão que começou por sublinhar a importância da sua obra poética e o papel que tem vindo a desempenhar na vida pública, sobretudo nos círculos culturais.
“Talvez a poesia tenha sido a via a que me dediquei mais”, reconhece ao PÚBLICO, mas isso porque sempre viu as suas traduções de outros autores (Shakespeare, Dante, Rilke ou Petrarca) como obras suas, de alguma forma. Se é a poesia, a prosa ou a actividade política - foi fundador do PPD, secretário de Estado em dois governos e eurodeputado durante dez anos - que mais marcas vai deixar, pouco parece importar a Graça Moura, que no ano passado festejou 50 anos de carreira numa cerimónia no Porto, a sua cidade. Prémios e homenagens têm sido frequentes neste meio século e, admite, têm alimentado o seu ego. Quando lhe perguntamos se o deixam vaidoso, responde com um sorriso: “Não sou vaidoso, sou objectivo.”
De Vasco Graça Moura (VGM) nunca se pode esperar uma resposta convencional, adverte Marcelo Rebelo de Sousa, professor de Direito e comentador, um dos muitos que não quiseram faltar a este colóquio comissariado pelo ensaísta Eduardo Lourenço. “O que podemos esperar sempre é uma boa discussão porque o Vasco adora uma polémica e é, em tudo o que faz na vida, um homem apaixonado, que se entrega sem concessões, com uma riqueza infindável de dimensões que o torna fascinante de muitas maneiras”, diz Rebelo de Sousa, lembrando que se conheceram no início dos anos 1970, nos círculos culturais do Porto. “É um bom jurista, embora não praticante, um grande crítico literário e poeta, e um tradutor absolutamente genial.” Mas, continua, Graça Moura é ainda “um homem culto”, sempre atraído pela história, a música e as artes plásticas, “que conhece profundamente”, e um “animal político” capaz de conciliar uma visão transversal - foi assim sempre que desempenhou funções como a da presidência da Comissão dos Descobrimentos - com uma partidária, de que está já afastado há largos anos.
Epopeia e melancolia
Também foi no Porto que o presidente da Gulbenkian, Artur Santos Silva, conheceu Graça Moura, de quem é amigo desde a juventude. Coube-lhe, como anfitrião, abrir o colóquio, salientando o papel central do poeta na vida cultural portuguesa dos últimos 40 anos, dando como exemplo a sua actividade à frente da Imprensa Nacional-Casa da Moeda e do Serviço de Bibliotecas e de Apoio à Leitura da própria fundação. Vasco Graça Moura, acrescentou, “é digno de partilhar a galeria dos grandes vultos da renascença”.
Foi também “na matriz greco-latina a que chamamos Renascimento” que Eduardo Lourenço inscreveu o “homem de acção”, o “amigo” e “humanista” que sempre se quis ver implicado na vida do seu país, numa comunicação a que deu o título O mundo de Vasco, entre a epopeia e a melancolia: “O mundo de Vasco é o mundo todo com o seu mistério e o seu enigma insondáveis”, continuou. “É um teatro-mundo de configuração barroca e iluminista” em que o autor, “consciente de que vivemos no Ocidente uma espécie de noite de Deus”, continua a ser um europeísta convicto, daqueles que nunca lê Portugal numa perspectiva complexada em relação à Europa.
Numa intervenção em que garantiu que, tanto na vida como na obra, Graça Moura troca uma “coloração cultural canónica” pela “curiosidade humana e o espanto daquilo que somos e que fazemos”, Lourenço comparou ainda o ensaísta e poeta a Jorge de Sena, dizendo que também ele fez do mundo da cultura “um cântico de combate (…), em suma, uma arena – aquela em que nos perdemos ou misericordiosamente nos salvamos”.
Arenas políticas e culturais Graça Moura conheceu várias, mas em todas, asseguram Marcelo Rebelo de Sousa e o musicólogo Rui Viera Nery, sobre respeitar os seus adversários, mesmo os que se moviam em círculos ideológicos opostos.
Nery, que falou da sua faceta como gestor cultural, enalteceu sobretudo a sua “capacidade de gerar consensos sempre que se trata de proteger o interesse público”, mesmo que nunca se tenha preocupado em adoptar um “tom ameno ou conciliador”, acrescentou o poeta Nuno Júdice.
Júdice e o jornalista do PÚBLICO Luís Miguel Queirós viraram-se para a obra poética. O primeiro elogiou-lhe a capacidade de surpreender com as suas intuições, a “vastíssima erudição” e o profundo conhecimento da poesia portuguesa, sobretudo a de Camões, a quem dedicou vários ensaios de referência: “O nosso século XVI teria sido bom para o Vasco se cruzar com um tal Luís de Camões, a quem teria muitas perguntas a fazer…" O segundo propôs um percurso livre pelas suas obras publicadas, destacando a “espontaneidade com que usa o vocabulário disponível”, “a qualidade da prosódia” e a naturalidade com que a sua poesia expressa opiniões sobre os mais diversos temas.
Frontal, por vezes incómodo nas suas posições, VGM é para muitos uma figura incomparável na cultura portuguesa. Lourenço chama-lhe ainda “o cavaleiro Vasco”, aquele que “combateu como ninguém à sombra de Camões e camonianamente”, numa vida intensa em que produziu “uma das mais altas poesias do seu tempo”: “Os deuses concederam-lhe a graça de ser um grande poeta e dando-lhe isso, nada lhe falta.”
O intelectual público
O Presidente da República não se deteve na sua dimensão de escritor, de “virtuoso das letras”, a que “em definitivo acabará por impor-se”, mas quis antes realçar um outro aspecto da sua biografia que “corre o risco de ser ofuscado”: “Refiro-me à figura do intelectual, do cidadão empenhado, que ao longo das últimas décadas tanto contribuiu para a valorização da nossa vida democrática.” Graça Moura “tem representado um papel da maior importância para a consolidação, entre nós, de uma sociedade que preza os valores da liberdade e da cultura”. Um intelecutal cuja “palavra, não raro inflamada e polémica, se faz ouvir metodicamente”.
No final, o Presidente atribuiu-lhe a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada. Na sessão de encerramento, Graça Moura tinha já confessado, segundo a Lusa, que considerava a homenagem "excessiva em si mesma" e que se sentia "a cair das nuvens".