Editorial: No divã para pensar em 1914 e em 1974

Helmut Kohl diz sempre que “a Europa continua a ser uma questão de guerra e paz”. E tem razão.

Hoje temos uma Europa sem união, sem estratégia e sem solidariedade, que encolhe os ombros perante o nacionalismo crescente, é complacente face ao extremismo descarado e ignora com cortesia o engrossar do cortejo de deputados radicais, anti-imigração e anti-Europa nos parlamentos nacionais.

Em 1994, ainda próximos dos acontecimentos, comemorámos o 25 de Abril muito colados à narrativa dos factos — quem estava onde, a que horas e a fazer o quê. Hoje, quando pensamos nos 40 anos da democracia portuguesa, damos os factos da operação como adquiridos (embora haja ainda uma ou duas perguntas “operacionais” por responder) e reflectimos sobre o país que entretanto foi construído: somos o país das cunhas e das “jotas políticas”, mas onde os bebés já não morrem à taxa de 60 por mil nascimentos (a taxa desceu para 3); o país com liberdade de expressão e de imprensa, mas sem transparência em relação aos accionistas de alguns jornais; o país que enterrou o conceito de “crime político”, mas onde a lentidão da justiça não tem fim à vista; o país que evoluiu de um ensino básico insipiente e aplicado graças à intervenção da GNR – que ia buscar crianças a casa para as levar à escola — para uma progressiva aproximação das médias internacionais, mas que acaba de cortar 40% das bolsas de doutoramento e 65% de pós-doutoramento, quando quase metade desse financiamento vem dos fundos comunitários.

Com a I Guerra Mundial passa-se o mesmo. Se há umas décadas nos dávamos por satisfeitos com o relembrar das manobras militares, os bastidores da diplomacia e a análise sobre vencidos e vencedores, hoje estamos em processo de auto-análise colectiva. A Europa, este Verão, vai deitar-se num divã e olhar para si própria. O exercício, de resto, já começou.

Portugal apresentou a sua candidatura à CEE logo em 1977 — três anos depois do 25 de Abril. Mário Soares teve a sabedoria de identificar o país com o ideal europeu e as preocupações dos seus fundadores, homens que tinham visto a Europa ser devastada por duas guerras mundiais no espaço de 20 anos e que acreditaram que sem uma união formal dos países europeus o continente não teria paz.

Há dois anos, Helmut Kohl — que fez a reunificação alemã e defendeu o euro como “instrumento de paz” essencial para evitar a guerra — disse que, 70 anos depois do fim da II Guerra Mundial, “a Europa continua a ser uma questão de guerra e paz”. É crucial relembrar o timing das suas palavras. O velho chanceler alemão, que Bill Clinton disse um dia ser o mais importante estadista europeu vivo, falou de guerra e paz dias depois de o seu partido, a CDU de Angela Merkel, ter hesitado apoiar a Grécia e um influente ministro alemão ter sugerido que a Grécia deveria sair do euro. Em 2012 Kohl repetiu o que dissera 20 anos antes, quando avisou sobre os perigos de uma Europa fraca e não solidária. Hoje não temos a rivalidade de impérios, nem a excessiva militarização, nem a crença de que as guerras podem ser breves, nem sociedades pouco democráticas que definiam a Europa do início do século. Mas as ilusões de grandeza, a irracionalidade política e diplomática, os erros de percepção e análise e a desconfiança sobre o outro ainda existem na Europa. É tempo de rever as lições aprendidas.

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