Carta aberta ao senhor ministro da Educação e Ciência
O frágil e muito promissor edifício da investigação científica construído em Portugal nas últimas décadas está em risco. Risco sério: porque poderemos a breve prazo vir a recuar para ocupar de novo o lugar na cauda da Europa. Centros, laboratórios, programas de investigação e candidaturas a bolsas têm sido afectados por cortes brutais de financiamento público, capazes de provocar descontinuidades e impor bloqueios. Mas o pior é que este recuo pode não estar associado apenas à crise financeira que o país atravessa e que obviamente compreendemos, mas a opções numa área que representa muito pouco na despesa do Estado – e dos fundos estruturais da União Europeia, sublinhe-se – e é uma alavanca decisiva para a modernização de Portugal.
Em paralelo, os critérios e os processos de avaliação dos concursos da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) têm-se revelado pouco claros e transparentes. Sobretudo, a avaliação dos concursos de 2013 causou situações de uma injustiça gritante que urge resolver. As constantes mudanças de regulamentos, a falta de planificação, as permanentes alterações dos prazos, e a confusão burocrática anexa, caracterizam infelizmente os programas que têm sido lançados, ao que acresce o perigo de regresso a um modelo clientelar e não meritocrático de avaliação pelo pares.
Será necessário perceber se a FCT tem uma estrutura funcional capaz de dar conta do edifício científico. Para isso, será necessário pôr o dedo na ferida e perceber até onde vai a falta de recursos, materiais e sobretudo humanos, e como evitar uma excessiva dependência de calendários circunstanciais impostos pelo Ministério das Finanças ou das apetências clientelares pelo fundos estruturais que aí vêm. Ou seja, como pode a FCT criar as condições de estabilidade para defender a autonomia da ciência?
Preocupa-nos também a desorientação geral com que têm sido tratadas as candidaturas das mais jovens gerações. Partilham elas expectativas e compromissos que são defraudados sem complacência. A geração situada entre os 30 e 40 anos – que se tem imposto pelos seus currículos de investigação guiada pelos melhores padrões – corre o risco de ser varrida, perdendo-se o investimento realizado nas últimas duas décadas e regressando-se ao atraso paroquial de onde saímos há ainda muito pouco tempo.
Estamos conscientes que, quando as taxas de sucesso em concursos públicos para a investigação (bolsas e projectos) baixam para números risíveis, quase seria preferível não abrir os mesmos concursos. Mantê-los equivale a continuar um simulacro de “excelência” e “internacionalização”, em que por vezes o custo dos avaliadores acaba por ser superior ao número de bolsas atribuídas. Ora, em “casa onde não há pão” e onde as regras deixam de ser claras, criou-se todo um clima de suspeição, resultado directo do desinvestimento e do reforço dos poderes das clientelas.
Os apoios à investigação dependem do reforço das boas instituições e dos bons investigadores e projectos, avaliados correctamente e por critérios rigorosos (outra conquista recente que nada tem a ver com a existência de menores recursos). Acreditamos, pois, que seria fundamental, em relação às instituições, recompensar as melhores e “reformar” as piores.
As carreiras de investigação como as de professor nas universidades estão fechadas. E o modelo de crescimento das universidades e dos centros de investigação, se existe, faz-se à custa de trabalho precário, contratos de poucos anos, chegando até aos cinco meses para cobrir apenas o semestre. Por sua vez, os riscos de não fomentar a autonomia e a liberdade na criação da ciência são enormes, se não se respeitarem as diferentes escalas. Por exemplo, a simples vinculação das bolsas individuais a projectos faz desaparecer temas e objectos de enorme potencial inovador, que se não fazem parte da agenda do “grande professor” não existem. A passagem de todas as bolsas de doutoramento para as universidades elimina a liberdade de alguns estudantes escolherem instituições internacionais de ponta nas suas áreas. Também é de recear que as agendas de investigação, progressivamente dominantes nos centros de investigação, sejam cada vez mais a agenda dos decisores políticos de circunstância e dos naturais interesses que os apoiam. Por todas estas razões, impõe-se a defesa da autonomia, da liberdade científica e da investigação fundamental, guiada pela avaliação rigorosa da qualidade e do impacto na comunidade e na sociedade.
Porque não aceitamos que se destrua o processo de criação de um ensino superior feito no contacto permanente com a investigação científica, lutamos pela autonomia, mas não podemos prescindir dos recursos financeiros que a sustentam. Tão-pouco podemos aceitar que o futuro das gerações mais jovens de investigadores altamente qualificados fique hipotecado e seja, pura e simplesmente, espatifado.
É natural que, num período de crise, os escassos recursos sejam canibalizados pelos interesses mais poderosos e o próximo exercício dos fundos da União Europeia vai torná-lo seguramente mais claro. Mas esperamos que seja respeitado o consenso em torno da ideia de que o investimento em investigação científica é, de facto, o mais rentável para que o desenvolvimento do país não seja apenas aparente.
Investigadores e professores universitártios