“As dificuldades justificam uma política pública de leitura, nas escolas e fora delas”

Entrevista a Teresa Calçada, coordenadora do gabinete da Rede de Bibliotecas Escolares.

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Teresa Calçada pediu a reforma no final de Dezembro João Cordeiro

Não é exagero dizer que Teresa Calçada é a mãe da Rede de Bibliotecas Escolares (RBE). Técnica do Instituto Português do Livro desde 1982, esteve na génese da criação da Rede de Bibliotecas Municipais e, anos mais tarde, fez parte do grupo que pensou as bibliotecas nas escolas, acabando por assumir a sua direcção. No final de 2013, depois de 17 anos à frente da RBE, pediu a reforma. "Não sei bem porquê", confessa. Contudo, tem a certeza que o trabalho começado não pode voltar atrás. Para já, vai fazer voluntariado com a sua amiga Isabel Alçada, autora e ex-ministra da Educação, na associação Voluntários de Leitura. Vão às escolas ler com os mais pequenos. 

O Ministério da Educação e Ciência já fez saber que "está a analisar a substituição de Teresa Calçada que deixa o cargo por aposentação".

Actualmente, há bibliotecas em todos os estabelecimentos de ensino?
Todos os agrupamentos têm biblioteca. O sistema responde a todos os alunos que estão na escola. O que acontece é que às vezes há escolas do 1.º ciclo que não têm, mas têm serviço de biblioteca. Ou seja, a sede de agrupamento obriga-se a ter um serviço de itinerância.

Não devia haver uma biblioteca em cada escola?
Não. Desde o início do programa que está previsto nos objectivos que todas as escolas com uma dimensão de 100 ou mais alunos tenham biblioteca. Mas todos os alunos devem ter [acesso a] biblioteca ou serviço de biblioteca. Hoje, isso está assegurado.

A RBE tem vindo a sofrer cortes no seu orçamento. Houve anos em que o investimento ultrapassou os quatro milhões de euros, mas em 2013 tinha apenas 625 mil euros. Como é este ano?
O orçamento deste ano é equivalente ao do ano passado, que caiu. Caiu porque o sistema não precisa do que já precisou, houve picos e velocidade cruzeiro. Por outro lado, caiu porque houve quebra na despesa do Orçamento do Estado com a situação financeira que se vive na Europa e em Portugal, em particular.

Sentiu diferenças no tratamento da RBE entre governos PS e PSD?
Muito do que representa ter hoje esta rede deve-se a todos os ministros, desde o professor Marçal Grilo, que foi o precursor, passando por Guilherme d’Oliveira Martins, Augusto Santos Silva, Maria de Lurdes Rodrigues, Isabel Alçada e agora Nuno Crato. O programa mereceu sempre o respeito dos governantes.

Esqueceu-se de alguns ministros, o professor David Justino e Carmo Seabra, ambos do PSD.
Todos! O programa mereceu o respeito de todos, para além da questão dos partidos. Quando fizemos 12 anos houve um fórum em Lisboa, vieram dois mil professores bibliotecários e na primeira fila coabitavam os vários ex-ministros da Educação, de partidos diferentes.

O programa teve a sorte de trabalhar com pessoas interessantes que compreenderam filosófica e socialmente o papel das bibliotecas. No nosso país, onde os níveis de literacia são baixos, os políticos compreendem que as bibliotecas são instrumentais para as competências leitoras.

Essas competências têm vindo a mudar? Até que ponto a biblioteca escolar deixa de fazer sentido com as novas tecnologias, onde tudo se pode ler e procurar num tablet?
Hoje há multiliteracias que são mais completas. O que as bibliotecas têm é a obrigação de ajudar à capacitação leitora. Não há resultados a Matemática ou a qualquer outra disciplina curricular que não passe pelas competências leitoras.

As bibliotecas têm o papel de valorizar a curiosidade e a informação mas também treinam as competências para a leitura e para o uso das ferramentas todas. Aos professores, cabe-nos ajudar à leitura e à descodificação deste complexo mundo multimodal.

Qual é o maior desafio dos professores bibliotecários?
O grande desafio é desmistificar. Ajudar os alunos a perceber que, não é porque está na Internet que a informação é verdadeira. É preciso ajudá-los a distinguir o verdadeiro do falso, a saber manipular a informação, a ter um comportamento crítico.

Ninguém nasce leitor, aprendemos a ser no papel, agora temos de aprender naquilo que é a lógica dos gadgets e isso, é para nós, um dos objectivos das bibliotecas.

Porquê?
Porque a função da biblioteca é fazer leitores e isso é difícil porque não se é naturalmente leitor. É cada vez mais difícil fazer leitores porque o tempo é mais rápido e, paralelamente, o tempo da leitura é lento. É um paradoxo, o qual somos convocados a contrariar. A leitura vindo a complexificar-se e hoje captar a atenção, fazer modos de relacionamento — porque estamos a falar de tecnologia e de comunicação —, tudo isso é difícil. Temos dificuldade em comunicar com os alunos se não usarmos as tecnologias, mas não é um complemento, e sim um instrumento, e isso é uma dificuldade para muitos professores.

Um aluno que entra hoje na biblioteca não vai à procura de uma enciclopédia mas de um computador?
Naturalmente, como qualquer um de nós. É um instrumento que existe onde está tudo. Agora é preciso saber validar a informação que se recebe.

Isso significa que os recheios das bibliotecas mudaram? Há menos livros?
A RBE tem uma política de abate dos livros, o que é complicado. Temos feito abate de manuais escolares, por exemplo. Se houver muita falta de espaço, claro que tem de se fazer. Temos bibliotecas de escola que são maravilhosas, como as dos grandes liceus e aí não há razão para tirar os livros. Mas de há dez anos para cá que deixámos de comprar enciclopédias para as novas bibliotecas. Hoje há uma colecção digital e se é menos rica é porque a produção em português ainda é frágil, mas tende a aumentar.

Mas voltemos à simulação da entrada de um aluno numa biblioteca. Para onde é que se dirige?
Claro que a sua primeira vontade é usar os gadgets. Depois chegam aos livros quando orientados. Por exemplo, quando o professor bibliotecário lhe mostra que demora mais tempo no computador do que no livro. Depois, o gadget tem a perversidade da cópia e o professor bibliotecário explica que não pode copiar, que tem de por a fonte de onde tirou a informação. É uma aprendizagem. Aprende-se a fazer, fazendo.

O aluno que entrava na biblioteca da escola há 17 anos era diferente do de hoje?
Há 17 anos, já havia computador. Mas hoje as escolas estão muito à frente. Podemos ter a infelicidade, neste momento em que temos problemas financeiros, de ter mais dificuldade em substituir materiais, mas penso que não se pode recuar na questão do patamar das novas literacias e dos equipamentos associados, senão é dificílimo recuperar. De facto, chegámos a um patamar que não podemos perder sob o risco de retomarmos indicadores de analfabetismo.

Com o desinvestimento que tem vindo a ser feito, esse risco existe?
Há um risco. A idade das trevas existe! A nossa escola, com todos os defeitos e virtudes, tem tido um papel importantíssimo na mobilidade social. E agora que esta questão está dificultada por razões do desemprego e dificuldades vividas pela classe média, por maioria de razão deve apostar-se na educação porque é o único capital que as pessoas têm para a mobilidade social. Por isso a RBE tem de sobreviver com êxito. As dificuldades justificam uma política pública de leitura, nas escolas e fora delas.

Com a sua saída, o que é que ficou por fazer?
Temos objectivos que ainda não foram concretizados. Primeiro, cobrir todo o universo das escolas — faltam as do 1.º ciclo. Segundo, não comprometer os recursos humanos sem os quais não há bibliotecas.

Actualmente, há agrupamentos que tinham três e agora têm apenas um professor bibliotecário.
Houve uma redução, mas faço os possíveis para compreender o país em que estou e num país em que bens como a saúde e a educação levam cortes, as bibliotecas escolares não podiam ficar intocáveis.

O que fizemos foi lutar para que o programa não fosse posto em causa e isso implicou uma diminuição dos recursos. Procurámos readaptar-nos às novas circunstâncias. Mas estamos a trabalhar no fio da navalha e achamos que chegámos a um patamar em que não podemos atacar os recursos humanos porque uma casa sem gestor não pode funcionar e manter um nível de colecção em todos os suportes que alimentem o próprio edifício. Uma rede sem equipamentos e sem pessoas com formação não existe.

Que outros objectivos faltam concretizar?
Ter uma colecção. É preciso ter a consciência que para ter pessoas letradas é preciso ter instrumentos e usá-los.

A biblioteca escolar é um espaço onde os alunos vão nas horas vagas ou há um trabalho com o resto da escola?
Existe determinado tipo de matérias curriculares que podem ser feitas entre a sala de aula e a biblioteca. A escola é uma rede de informação. Quando nascemos era essencialmente para levar a literatura aos alunos. Hoje não temos medo que a biblioteca seja instrumental e construtora do sucesso académico dos alunos. E esta é uma mudança muito importante em todos, nomeadamente nos professores.

Mas a biblioteca também é o local para onde os professores mandam os alunos mais indisciplinados, quando se portam mal na sala de aula.
É para os que se portam mal e que vão ajudar a professora bibliotecária. Mas é também um lugar de acolhimento para os que têm de estar mais horas na escola, para os que gostam de estudar, para os que não gostam e vão à procura de ajuda. A biblioteca é uma forma de inclusão social.

Os resultados dos alunos portugueses nos testes da OCDE, que foram elogiados por esta organização, também se devem à RBE?
Eu não quero dizer que não! Eu penso que qualquer análise mais cuidada verifica que são muitos os elementos que contribuem. Pois se em todo o mundo contribuiu não é no nosso país que deixa de o fazer. A biblioteca é o local onde os alunos podem ir e consultar, fazer trabalhos, ouvir música, ler, ver filmes. Como é que isso não contribui para o seu sucesso? O mesmo se pode dizer do Plano Nacional de Leitura (PNL) ou do Plano Tecnológico. Claro que foi muito importante para mudar o rosto da escola.

A RBE foi ofuscada com a criação do PNL?
As bibliotecas escolares faziam o que o PNL veio fazer, mas este foi criado como uma imagem de marca, o "Ler +", trouxe uma valorização social à leitura e é natural que as pessoas conheçam mais do que a rede. A RBE é o tosco, é a infra-estrutura como é o refeitório ou o ginásio, está lá e depois vem a superestrutura que é o PNL. Claro que vem com um lado mais festivo, como a cigarra [da fábula A cigarra e a formiga]. A tristeza é se não houver a formiga, que é a biblioteca. O PNL foi óptimo para as bibliotecas e este não era nada sem nós porque além das infra-estruturas existem também os nossos recursos humanos que fazem tudo por ele.

Com a sua saída, a RBE corre o risco de acabar?
Não acredito que alguém faça essa maldade ao país!

Mas com uma aposta maior na autonomia das escolas, as bibliotecas não passarão a ser da responsabilidade daquelas e já não precisarão de pertencer a uma rede?
O sucesso da RBE não se deve apenas ao interesse dos ministros, mas também às direcções das escolas, se estas não acarinharem as bibliotecas, aquelas morrem. A biblioteca é da escola e tem de ser vivida à medida das necessidades de cada comunidade escolar. Portanto, já há autonomia. Mas também há um pacote de orientações que, para já, ainda precisa de ser central.

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