A integração europeia, por Medeiros Ferreira

Medeiros Ferreira apresenta-nos uma interpretação histórica e um esboço de um programa de acção que merecem ser analisados e discutidos

Quando um acontecimento dessa natureza ocorre merece ser assinalado. José Medeiros Ferreira acaba de publicar um pequeno ensaio intitulado Não Há Mapa Cor-De-Rosa. A História (Mal) Dita Da Integração Europeia. Pela pertinência da sua reflexão sobre o fenómeno da construção europeia, abordado desde uma perspectiva arqueológica sobre as suas origens até à actualidade, e pela sofisticação da análise aí realizada acerca da relação de Portugal com as instituições europeias, eleva-se à categoria de um acontecimento editorial e político de excepção. Pontuadas por sibilinas manifestações de humor, tão próprias da personalidade do autor, as reflexões nesta obra desenvolvidas destacam-se, desde logo, pela recusa em embarcar na sinfonia de lugares comuns que hoje caracteriza grande parte do discurso oficial sobre o projecto europeu. Medeiros Ferreira, a quem os desvarios da imaginação metafísica ou ideológica parecem aborrecer, pelo menos quando aplicados à análise histórica, confronta-nos com uma representação mais fria e, num certo sentido, mais cruel de todo o processo europeu. Abandonando qualquer ideia de “comunidade de destino” e negando explicitamente a utilidade de uma qualquer noção de identidade europeia, dada a constatada inexistência de uma entidade do tipo “povo europeu”, o autor opta por realçar a importância dos compromissos concretos vertidos em forma tratadística como grandes motores deste projecto histórico. Um saudável empirismo prevalece, assim, sobre as fantasias retóricas que tanto seduzem os seguidores dos “mitos fundadores”.

Partindo deste método de abordagem da realidade passada ficamos em melhores condições para alcançar uma lúcida compreensão das encruzilhadas do presente. Nesse sentido, devem ser lidos com especial atenção dois alertas que o ensaísta entendeu por conveniente fazer relativamente à magna questão da integração europeia. A dada altura Medeiros Ferreira chama a atenção para o risco de estarmos a caminhar, no plano institucional, para a consagração de um modelo centralista e burocrático, dada a forma como se está a desenhar a designada “governação económica” da União Europeia. Esse modelo, em tudo contrário à opção federalista, coloca um sério problema de legitimidade democrática e de modo algum garante a disseminação do crescimento económico pelos vários países membros. Numa outra ocasião o autor salienta a necessidade da União Europeia promover a criação de novos instrumentos de regulação do processo de globalização, dando como exemplo o reforço do papel da Organização Internacional do Trabalho, em ordem à preservação de um modelo social altamente exigente.

Já no que concerne à relação de Portugal com a União Europeia Medeiros Ferreira chama a atenção, com a singular e indiscutível autoridade de quem foi um dos máximos responsáveis, enquanto titular da pasta dos Negócios Estrangeiros, pela apresentação do pedido de adesão à então CEE, para a necessidade de adopção de um pensamento e de uma linha de orientação estratégica que vão muito para além da simples afirmação do estatuto do “bom aluno” europeu. Até porque, como ele diz, não adianta muito ser um bom aluno de maus mestres, como infelizmente tem sido, com excessiva frequência, o caso. Não preconizando a saída de Portugal do euro não deixa, contudo, de formular um juízo severo acerca da forma como foi concebida e estruturada a zona monetária europeia e assinala devidamente a mediocridade do processo negocial conducente à conversão do escudo. Reconhecendo a importância das consequências resultantes da alteração do centro gravitacional do projecto europeu proclama a vantagem da criação de uma câmara onde os Estados estivessem representados em pleno pé de igualdade. Curiosa e muito pertinente é ainda a tese que aponta para a prossecução de uma modulação fiscal que garanta a atracção de capital e investimento para o nosso país. Como bom historiador não desconhece que esse é, sem dúvida, um dos nossos maiores problemas históricos.

Partindo de uma avaliação objectiva, nunca transigindo em matéria de rigor conceptual, recusando qualquer concessão aos impulsos fantasistas, Medeiros Ferreira apresenta-nos uma interpretação histórica e um esboço de um programa de acção que, pela sua inteligência e lucidez, merecem ser analisados e discutidos. Num tempo em que o espaço público está dominado pela contraposição entre duas ortodoxias de sinal contrário, uma assente no enaltecimento acrítico de uma Europa reduzida a uma versão liberal e outra associada a um discurso de pendor estritamente anti-capitalista, adquire especial importância um pensamento que foge a esta dicotomia redutora e não hesita em abordar a complexidade de um projecto histórico que, apesar das suas insuficiências, ainda continua a suscitar as nossas melhores esperanças.

2.Seria certamente um pouco insensato solicitar aos nossos principais intervenientes políticos que pautassem os seus discursos por graus de exigência conceptual análogos aos que caracterizam a obra acima referida. Convenhamos que uma coisa é um ensaio produzido põe um eminente académico e intelectual, outra é a intervenção pública quotidiana de quem tem por incumbência dirigir um partido político. Apesar dessa diferença há limites que não deviam ser ultrapassados. Frequentemente são-no. O relógio que agora adorna a personalidade política de Paulo Portas constitui mais um artefacto na imensa maquinaria propagandística de tão imaginativa personagem. Como pode Portas apelar ao consenso com o maior partido da oposição quando se empenha na difusão de uma representação falsa da origem e da natureza da presente crise com o único propósito de obtenção de vantagens eleitorais? Que credibilidade pode merecer um homem de Estado que não resiste à tentação da divulgação de um conceito tão inapropriado como o de “protectorado” para caracterizar a presente situação do país? Como pode alguém levar a sério a patética retórica inspirada numa analogia entre o fim do resgate e o movimento da Restauração, quando todos sabemos quão difícil e exigente continuará a ser horizonte que se colocará ao país no cenário pós-troika? Estes exercícios de pura pantomina política podem deleitar um Congresso partidário mas em nada concorrem para a criação de um ambiente favorável à realização de uma discussão séria de que o país precisa. É pena que assim seja.

 
 

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