Um concerto livre à espera de um céu aberto, com muita luz
Michael Biberstein morreu em Maio sem executar a pintura que projectou para o tecto de Santa Isabel. Hoje os "seus" músicos prestam-lhe homenagem num concerto de entrada livre nesta igreja de Lisboa.
Mike é o que todos chamam a Michael Biberstein, o artista plástico suíço que escolheu viver em Portugal no final dos anos 1970 porque se apaixonou. O artista plástico que se dizia “agnóstico militante” e que morreu em Maio deste ano, deixando por executar uma obra que lhe preenchia os dias – a grande pintura que concebeu para o tecto de Santa Isabel, em Lisboa.
É precisamente nesta igreja do bairro de Campo de Ourique que hoje, às 17h, se juntam 11 músicos portugueses e estrangeiros e um técnico de som para um concerto de ano novo com um “reportório” inusitado – uma odisseia musical imaginada pelo pintor, toda improvisada a partir de um esquema que deixou desenhado, a pensar numa formação a que deu o nome de Dream & Drone Orchestra.
Manuel Mesquita, sobrinho de Mike, impulsionador do concerto e um dos músicos desta orquestra de um dia só, explica ao PÚBLICO como tudo começou, falando sobretudo do amor do artista pela música, dos seus gostos eclécticos e do “ouvinte atento e crítico” que sabia abrir a sua casa aos outros como ninguém.
“O Mike era um anfitrião incrível, que vivia rodeado de músicos e de música. Tinha dela um conhecimento profundíssimo e um respeito ainda maior”, diz. “Alimentava a ideia de criar vários ensembles musicais, entre eles esta orquestra, que parte da ideia de drone, que quer dizer um baixo contínuo, fixo, que leva a uma música sem desenvolvimentos abruptos. Uma espécie de nota que se mantém, constante, como acontece em tanta música oriental que apela ao transe.”
Para Mike Biberstein, a música, como a pintura, devia proporcionar momentos de paragem e de contemplação. Deverá ser assim no concerto da Dream & Drone Orchestra, reunida de propósito – e só – para este concerto que será registado em disco. Deverá ser assim quando a pintura que Mike Biberstein concebeu para o tecto da igreja estiver no seu lugar.
Um céu cósmico
Foi em 2010 que o atelier de arquitectura Appleton e Domingos o desafiou a pintar o tecto da igreja, cuja reabilitação se anunciava, incluindo também a reparação do telhado, o restauro das pinturas decorativas da nave e das capelas e a renovação do mobiliário.
José Manuel P. de Almeida, padre de Santa Isabel, lembra-se bem do dia em que conheceu o artista e do entusiasmo com que o pintor agarrou no projecto: “Ele entrou aqui e ficou deslumbrado. O tamanho da igreja e a decoração imponente, dizia ele, fazia com que lhe chamasse praça – uma praça que ele queria abrir.”
O tecto preto-mate da igreja torna-a pesada, escreveu o pintor no site do projecto Um Céu para Santa Isabel, impedindo-a de caminhar para a luz, algo que incomodava este artista que passara muito tempo a estudar a arquitectura religiosa e a pintura barroca, em particular a do italiano Giovanni Battista Tiepolo. Por isso decidiu criar uma pintura capaz de trocar “o sufocante manto cinzento por um céu aberto” e, através da combinação de cores frias e quentes, proporcionar aos que para a abóbada vierem a olhar “um mergulho no espaço profundo”.
O padre José Manuel chama-lhe um céu cósmico, gerador de uma “imensa sensação de paz e de interioridade”, só possível a alguém “profundamente espiritual”. “O Michael costumava dizer que este tecto era uma obra de vida e, quando lhe falávamos em honorários, dizia que até era capaz de pagar para poder pintá-lo.”
Foram muitos os estudos que fez para este céu luminoso, incluindo uma maqueta de madeira à escala de 1:8, destinada a dar uma ideia mais clara do que pretendia. A pintura que Biberstein ia oferecer à igreja vai agora ser executada por vários artistas, com recurso a um método que ainda não foi determinado pela equipa do projecto de reabilitação de Santa Isabel, de que João Appleton faz parte. “É por isso que não podemos falar de custos. Só nos próximos três meses vamos decidir se a pintura será feita directamente no tecto ou num outro suporte que depois será aplicado na igreja”, explica o arquitecto. Depois de reparado o telhado (praticamente pronto) e de testadas as diferentes soluções, os trabalhos de consolidação da abóbada, prévios à pintura, deverão começar.
“É claro que temos uma estimativa e que estamos longe de ter angariado todo o dinheiro de que precisamos, mas não seria rigoroso falar em números”, acrescenta Appleton. O padre José Manuel gostaria de ver o tecto concluído entre Julho e Setembro.
Agnóstico militante
O concerto desta tarde, a que deverão assistir muitos dos amigos de Mike Biberstein, volta a chamar a atenção para este projecto, reunindo, entre outros, músicos como Norberto Lobo, Pak Yan Lau, Gonçalo Almeida, Daniele Martini, João Lobo e Mariana Ricardo.
“O Mike haveria de gostar de nos ver tocar todos juntos”, diz Manuel Mesquita, “com a habitual carta branca que tínhamos na Fonte Santa.”
É importante que, neste concerto de homenagem ao pintor “e à sua imensa paixão pela música”, haja muita liberdade, acrescenta. “O Mike adorava sentar-se na sua sala, no melhor lugar para tirar partido da sua aparelhagem, e passar horas a ouvir discos.” E gostava de coisas muito diferentes, com John Coltrane à cabeça, seguido de Jimi Hendrix, Bob Dylan, Albert Ayler ou Don Cherry. “Interessava-se por jazz, música oriental e rock, mas também pelos compositores da clássica e da música antiga. Na improvisação continuada agradava-lhe a ideia de não haver nada escrito ao milímetro, da música que dispensa expectativas.”
Generoso e atento, Mike Biberstein não tocava nenhum instrumento, mas deliciava-se quando via um músico cumprir o seu sonho, recorda Manuel Mesquita. “Aquela casa era uma experiência para todos nós.”
Uma casa que o crítico e curador Delfim Sardo conhecia bem. No texto que escreveu para o PÚBLICO por ocasião da morte de Biberstein, relembrou a “epifania” que teve quando visitou o atelier do artista em Sintra – no começo da sua estadia em Portugal, Biberstein estava ainda longe do Alandroal – e das longas conversas que mantinham ao som de Coltrane, quando estavam a preparar uma antológica na Gulbenkian e o artista mudava de nome às obras de encontro para encontro.
No Verão alentejano de Biberstein, as manhãs eram de pintura e o fim da tarde guardado para a música. Os livros e o cinema atravessavam os dias deste homem que nasceu em Solothurn, uma cidade entre Berna e Basileia, em 1948, e que cedo viria a trocar a Engenharia pela Arquitectura, e depois a Arquitectura pela História de Arte. No fim, ganharam os pincéis, explicou a Maria João Seixas, numa entrevista na revista Pública, em Fevereiro de 2004: “A tela é como uma membrana, uma superfície de projecção onde podemos fixar alguns sinais.”
Cada tela – ou o tecto de uma igreja – era encarado com um lugar onde o artista se permitia sonhar. Ia, aliás, buscar muitas vezes a expressão “dream space” para se referir às superfícies que trabalhava. “Tive uma vida fantástica, mágica”, disse a Seixas. “Sou um agnóstico militante. Sei que há perguntas sem resposta e acho que as pessoas que afirmam, através da construção de sistemas, conhecer as respostas, não ajudam em nada este mundo.”
O seu céu – como o que criou para Santa Isabel – é luminoso e está aberto a tudo e a todos.