“Troco esta medalha por outro modelo”
"Chalana" – é assim que todos os seus amigos e até a filha mais nova, de sete anos, o tratam – chega atrasado, mas não impreparado. Cobriu 11 páginas com tópicos que o ajudam a explicar o seu trabalho e a forma como vê o mundo
São muitas as coisas que "Chalana" quer dizer, sobre o percurso que o conduziu, desde que nasceu, há 48 anos, na aldeia de Macieira de Lixa, em Felgueiras, até à medalha atribuída pelo júri do Prémio Direitos Humanos constituído no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República. A começar pelas suas grandes influências – os dois irmãos mais velhos, que guiaram a sua militância depois de perder o pai com apenas nove anos; o Partido Comunista Português (PCP), em que se filiou muito novo; e o padre Mário de Oliveira, que lhe ensinou, entre outras coisas, que “as pessoas devem ter vida e vida em abundância” e que “a maior capacidade do ser humano é a capacidade de amar, mas também a de se indignar perante as várias formas de injustiça”.
Ele garante que o tem feito – amar e indignar-se – e também se tem esforçado por não ter medo, outro ensinamento do padre Mário. “Se queres mudar a vida dos outros, se queres transformar alguma coisa, não podes ter medo”, diz. E talvez seja isso, concede, que o tenha distinguido dos outros, a ponto de lhe quererem dar uma medalha. O seu nome foi sugerido pelo deputado do PSD Fernando Negrão. O PCP aplaudiu. “O 'Chalana' tem tido um papel exemplar no combate às injustiças”, diz o deputado do PCP Jorge Machado.
"Chalana" não é inocente. Sabe que a colaboração que tem mantido com a comunicação social, e que considera fundamental “porque sem denúncia, não há transformação” (algo que aprendeu com outro Mário, o ex-Presidente da República Mário Soares), lhe dá um “capital social” invejável. “As pessoas odeiam-me, amam-me ou têm medo de mim”, diz. Um capital que foi conquistado pelas muitas denúncias que fez, mas também por ter sido condenado por promover, reiteradamente, o aborto, em 2002, no megaprocesso do aborto, na Maia, e em que foram acusadas 43 pessoas, incluindo 17 mulheres que tinham interrompido a gravidez.
"Chalana" não se dá com posturas politicamente correctas. Os colegas da mesma área, diz, criticam-no abertamente. Porque transporta os utentes no carro pessoal, um velho Peugeot 206. Porque estabelece relações com eles (“os meus colegas têm muito medo do afecto”). Em casa, também não é fácil. Tem duas filhas, de sete e dez anos, e o tempo entre o trabalho, o voluntariado na associação Cor é Vida, no Hospital de S. João, os projectos em que se envolve e o seu lado boémio não lhe deixam muito tempo para a família. “A mãe das minhas filhas às vezes zanga-se.” A única coisa em que não cede, na busca de algum distanciamento, é no telemóvel. Não tem.
Ernesto Santos, recém-eleito presidente da Junta de Freguesia de Campanhã, diz que não conhece os fundamentos da atribuição da medalha a um dos três assistentes sociais que ali trabalham, pelo que não se estende nos comentários. “Uma homenagem destas é sempre mérito de quem a conquista. O José António Pinto trabalha nesta área há muitos anos; esta medalha de certeza que é justamente devida”, diz.
Já Pedro Neves, realizador que esteve presente no DocLisboa, em 2009, com o filme Os Esquecidos, feito em colaboração com "Chalana", emociona-se. “Poucas vezes vi um prémio tão merecido. Ele é um militante 24 horas por dia, sete dias por semana. Acho brutal o seu empenho e o espírito com que o faz, é uma alegria estar com ele. E trabalhar com ele é o sonho de qualquer documentarista com interesse por temáticas sociais porque ele tem uma relação muito boa [com os utentes], abre portas com uma tremenda facilidade”, diz.
Militância é palavra que agrada a "Chalana". Se há coisa que detesta, é que o descrevam como “um escoteiro socialmente descalço”. Ele estuda muito. E volta a estudar sempre que um utente o desilude – vários inventam histórias para o enganar. Pega nos livros do seu amado Pierre Bordieu, sociólogo, e percebe um pouco mais do porquê de ter sido enganado. Quando se sente à beira de desistir, abre a gaveta em que guarda o caderno baptizado de Pequenos e Grandes Troféus, e onde aponta as vitórias do dia-a-dia, e recorda que ainda ontem conseguiu uma saída precária para uma jovem detida poder passar o Natal com a família. “Nessa altura vou ao céu e fico lá em cima. Se sinto orgulho? Claro que sinto!”, diz.
Os seus dias fazem-se destas vitórias, mas o que ele quer mesmo é mudar o sistema. Por isso é que escreveu, no discurso que preparou para amanhã: “Troco esta medalha por outro modelo de desenvolvimento económico”. É isso, sobretudo, que quer dizer aos deputados. Depois, há-de voltar ao trabalho.