O melhor de todos nós
Mandela não foi um político, foi um homem de Estado. Não foi calculista, foi visionário. Não foi rancoroso, foi magnânimo. Não foi mesquinho, foi altruísta. Não foi arrogante, foi humilde.
Há dois mil anos, Cícero, ele próprio um “homem bom”, identificou as qualidades de um líder: integridade, elegância, inteligência política, coragem, moderação e generosidade. Hoje desvalorizamos alguns destes atributos. Basta pensarmos como a moderação é muitas vezes vista como uma característica dos fracos. Ou elegância, tida como superficial. Já agora, o mestre Cícero destacava ainda mais dois requisitos: saber fazer a paz com honra e acreditar que “o compromisso é fundamental para conseguir resolver as coisas”.
Graça Machel disse do marido, com quem se casou em 1998, que “há uma percepção um pouco romântica de Nelson Mandela, todo o mundo diz que ele foi o melhor”. É verdade, exageros humanos. É um mito, endeusado por todos, único a ver decretado um dia internacional com o seu nome pelas Nações Unidas.
Mas Mandela tem essa força: emociona como homem, mas também emociona como pensador político e emociona como homem de acção. E num mesmo homem isso é raro, como raro é o oxigénio fora da Terra.
Mandela é o homem dos gestos inesquecíveis. Dos gestos simbólicos que o tempo apagará da memória, como quando, já Presidente, convidou para um chá Betsie Schoombie, viúva de Hendrik Verwoerd, primeiro-ministro entre 1958 e 1966 e ideólogo do apartheid, ou de quando decidiu manter como segurança pessoal da presidência os polícias brancos que herdara de Frederik de Klerk.
Mas é acima de tudo o homem de um gesto estrutural que os livros de história vão contar por muitos séculos: dialogou com o inimigo e conseguiu com isso mudar o regime de um país. Nos anos 1980, o apartheid era o mais injusto e aparentemente insolúvel sistema político do mundo. Mandela descreveu-o como “o maior crime da era moderna a seguir ao Holocausto”. Travou a escalada de violência e evitou a guerra civil, fez a transição na África do Sul e, ao mesmo tempo, não se perpetuou no poder, mostrando a todos, dentro e fora do país, a importância de saber sair no momento certo.
Mandela uniu o seu saber inato de que a “paz tem de ser feita com honra” a um saber que aprendeu na prisão: conseguir que o cérebro domine o sangue. Nas suas palavras: “A emoção dizia-nos: ‘A minoria branca é o nosso inimigo, nunca devemos falar com eles.’ Mas a cabeça dizia-nos: ‘Se não falares com eles, o país vai explodir em chamas. Tivemos que reconciliar esse conflito. Falarmos com o inimigo foi o resultado desse domínio da mente sobre a emoção.” Mandela não fez a ponte com o inimigo sozinho. O rio tem duas margens. Do outro lado estavam Neil Barnard, chefe dos serviços secretos, e o Presidente Botha. Os três deram o passo histórico que mudou o país e deixou uma lição de reconciliação ao mundo. Barnard e Botha souberam ler a realidade e perceber que sem um acordo político o país iria devorar-se a si próprio. Mandela soube dizer que sim ao primeiro convite de diálogo secreto. Barnard soube dar dignidade ao prisioneiro com quem secretamente falava. Mandela soube exigir falar directamente com Botha. O “velho crocodilo”, símbolo mundial do racismo, soube receber Mandela com respeito e até graciosidade. Mandela falou em africaner no primeiro encontro. O objectivo das nossas vidas, sempre disse Mandela, é “sermos melhores do que o melhor de nós mesmos”. Bill Clinton, o mais africano dos Presidentes americanos e cujos mandatos na Casa Branca coincidiram com os de Mandela no Tuynhuys, resumiu o que era estar com Mandela: “Se ele conseguiu fazer tudo isto, enfrentar tudo isto e mesmo assim ter um sorriso na cara e uma canção no coração, quem sou eu para me queixar?”
Mandela deixa um país com futuro. Mas também um país criticado por estar a viver um “triste declínio”, com a economia a perder fôlego, a corrupção a aumentar, a desigualdade social gritante. Deixa um desafio às novas gerações. Transformar a reconciliação em prosperidade. Ninguém sabe se vão conseguir. Sabemos apenas que, como hoje citamos Cícero, em 4013 citaremos Nelson Mandela.