Dallas, polegares erguidos e cruzes no asfalto
Na manhã pacata, há sorrisos e polegares ao alto no lugar onde morreu um homem há 50 anos. Ninguém tem acesso à janela de onde o atirador fez fogo. Comboios e carros passam devagarinho, num estranho bailado tranquilo. Há meio século, neste lugar, uma certa inocência morreu também.
Às 12h30 daquela sexta-feira, 22 de Novembro, a comitiva presidencial entrou na Dealey Plaza, já no troço final do seu percurso através de Dallas que a levaria ao Trade Mart, onde JFK iria almoçar e discursar diante da nata da cidade. Kennedy não era propriamente benquisto aqui no Sudoeste americano, e no seu discurso fazia tenções de atacar todas as formas de extremismo e de apelar ao respeito pelos valores democráticos. O seu apoio explícito à plena integração dos negros na sociedade americana era um espinho cravado na garganta dos texanos. O Texas foi o único estado americano que teve uma existência independente antes de se integrar na União, e ainda hoje muitos texanos acham que não precisam de um presidente a dar-lhes ordens a partir de Washington. Em 1963, este sentimento estava ao rubro.
Provavelmente, nunca saberemos ao certo o que aconteceu durante aqueles sete segundos. Norman Mailer escreveu que, ao analisarmos este caso e os seus protagonistas, temos de pôr em pé de igualdade metáforas e factos. Escreveu também que "as provas materiais, só por si, nunca fornecem a resposta a um mistério". As autoridades e os investigadores particulares recolheram, ao longo deste meio século, testemunhos e provas físicas e audiovisuais que dariam para encher bibliotecas inteiras — todas se anulam mutuamente. Falta-nos o elemento principal, que o génio de Agatha Christie sabia indispensável para dissipar todas as dúvidas na mente do leitor: a confissão da boca do criminoso, arrancada por Hercule Poirot.
Lugar pacato pela manhã
A Dealey Plaza é um lugar pacato às oito da manhã. Duas enormes bandeiras, uma dos Estados Unidos, outra do Texas, dominam o relvado triangular central, rasgado ao meio pela Main Street, com a Elm Street a norte e a Commerce Street a sul. À direita de quem esteja voltado para o viaduto ferroviário que limita o extremo oeste da praça eleva-se o "grassy knoll", a colina arrelvada com a sua vedação de tábuas no alto, atrás da qual poderá ou não ter-se escondido um segundo atirador. Um pouco mais próximo do Depósito de Manuais Escolares de cujo sexto piso, o penúltimo, Oswald terá ou não disparado assoma o pedestal onde Abraham Zapruder se empoleirou para filmar a passagem da comitiva presidencial pela Elm Street abaixo, criando assim, sem o saber, o filme amador mais célebre e mais reproduzido de todos os tempos.
É por esta hora que os primeiros turistas começam a chegar, ao princípio em pequenos grupos, depois mais numerosos, sem que nunca se forme uma multidão. São irresistivelmente atraídos por duas cruzes traçadas no asfalto, na faixa de rodagem central da Elm Street. A primeira, mais próxima do lado leste da praça, assinala o local de impacto do primeiro tiro que atingiu JFK, ferindo-o no pescoço. Se acreditarmos na história contada pela Comissão Warren no seu relatório de quase 900 páginas (mais 26 volumes de anexos), foi esta a "bala mágica" que atravessou o corpo do presidente antes de ziguezaguear pelas entranhas do governador Connally, do Texas, ferindo-os a ambos. Pormenor macabro: escassos segundos antes de este primeiro tiro soar, Nellie Connally, a mulher do governador, voltara-se para trás na limusina e, apontando a multidão a aplaudir nos relvados em volta, dissera a Kennedy: "Sr. Presidente, agora já não pode dizer que Dallas não gosta de si."
A segunda cruz pintada no pavimento, escassas dezenas de metros mais adiante, assinala o tiro fatal, a horrível imagem do filme Zapruder que nos faz fechar os olhos de cada vez que a vemos, e que leva Kevin Costner em JFK, de Oliver Stone, a martelar uma e outra vez: "Para trás e para a esquerda. Para trás e para a esquerda. Para trás..." Escusado será dizer que não veremos esta sequência do filme amador em nenhum dos ecrãs do Sixth Floor Museum que exibem imagens da época.
As cruzes no asfalto seduzem quem vai chegando, atraem os olhares e os corpos como ímanes. No passeio, um grupo de mulheres, jovens e bonitas, faz pose em grupo para a fotografia junto à primeira cruz. Quando o semáforo fecha, à entrada da praça, há um breve hiato de uns quinze ou vinte segundos em que não passam carros, e uma delas corre até à cruz, pára ali para o retrato, de polegar erguido e sorriso rasgado, torna a correr para o passeio, a fugir à vaga de tráfego crescente que o sinal verde liberta. Quando o sinal torna a fechar, outra jovem do grupo corre até à cruz.
Nas catacumbas dos arquivos
Na véspera, John Slate, arquivista da cidade de Dallas, levou-nos, a mim e ao Peter Josyph, o fotógrafo que me acompanha, até às catacumbas dos arquivos municipais. E ali, dentro de várias caixas, distribuído por pastas, cuidadosamente preservado dentro de micas plásticas, aguardava-nos um tesouro cru, perturbador. Com gestos pausados, John Slate vai-nos mostrando os documentos que compõem o ficheiro policial relativo ao homicídio de JFK. Há 50 anos, foi a polícia de Dallas quem deu início à investigação. Quando o processo passou para a alçada do FBI, J. Edgar Hoover mandou que toda a documentação fosse levada para Washington e microfilmada. Os originais, devolvidos à polícia de Dallas, ficaram dentro de um arquivador metálico cuja chave se perdeu algum tempo depois, o que provavelmente os salvou do saque.
Certo dia, a arquivista que precedeu John Slate no cargo foi à sede da polícia em mais uma expedição para recolher materiais e perguntou: "O que está dentro daquele armário, pode saber-se?" Aberto com um pé-de-cabra, o arquivador revelou os seus segredos. O relatório policial da morte do presidente, assinado por dois detectives e pelo médico-legista. Dentro das quadrículas e dos espaços em branco, a informação dactilografada, como noutro relatório qualquer. "Nome da vítima: Kennedy, John F. (Presidente dos EUA). Residência da vítima: Washington, D.C. (Casa Branca). Circunstâncias do crime: O falecido viajava num cortejo automóvel com a mulher e o governador John Connally, mais a mulher deste. Testemunhas ouviram um disparo e viram o falecido tombar para diante. Ouviram-se mais tiros, e o falecido caiu no regaço da mulher."
As impressões digitais de Oswald no bordo inferior de uma pasta de cartão amarelo, provavelmente recolhidas à força, a avaliar pela sua aparência irregular e esborratada. John Slate vai folheando com mãos suaves estas relíquias de papel tão frágil, quase translúcido. Fez-se na sala um grande silêncio. É impressão minha ou há na voz de John um vago tremular? Telegramas que Oswald recebeu depois de preso. Um tal Joseph Naylor Jr., da Pensilvânia, escreveu-lhe: "És um homem morto." Uma mulher de Seattle: "Por favor, ouve os noticiários acerca do que fizeste." Telegramas que Ruby recebeu depois de preso. Paul Cowperthwaite, de Los Angeles, enviou-lhe um cheque de dez dólares logo no dia em que ele matou Oswald e escreveu: "Parabéns por eliminares uma ratazana e prestares um bom serviço ao país. O dinheiro é para arranjares um advogado."
Filmes amadores
Na Dealey Plaza, a última rapariga do grupo corre até à cruz pintada no asfalto em três passos ágeis, dá meia-volta, posta-se no lugar do primeiro tiro, tendo o cuidado de não pisar a cruz para que se veja bem na fotografia, sorri, ergue o polegar. A única tensão que a percorre é a iminência do trânsito que irá desabar, mal o semáforo fique verde, um pouco mais acima, à entrada da praça. Provavelmente, os pais dela ainda não tinham nascido quando os tiros soaram naquele dia de Novembro, há 50 anos.
No Sixth Floor Museum não se pode tirar fotografias. Há um painel inteiro dedicado à importância das imagens colhidas por simples amadores no dia do atentado, gente sem a qual muito pouco saberíamos acerca do sucedido. Na vitrina estão 12 máquinas fotográficas ou de filmar (as originais nalguns casos, réplicas noutros) usadas por outros tantos anónimos, que deixam de o ser graças a uma pequena nota biográfica anexa. Em lugar de destaque, a décima terceira máquina é uma câmara de 8 mm igual à que Zapruder usou naquele dia. Mas não se pode colher imagens dentro do museu. Somos avisados logo à entrada, e os guardas percorrem o piso de olhar atento, em busca de possíveis prevaricadores. Um lugar que não existiria sem as imagens de amadores proíbe os filhos e netos desses amadores de imitar os gestos dos pais e avós. É claro que não vale a pena ver neste interdito mais uma ramificação da teia conspirativa que ainda envolve o atentado. Trata-se de uma questão de negócio, nada mais. O museu não possui uma loja, mas sim duas, uma no rés-do-chão do próprio edifício, outra do lado oposto da rua, no Dal-Tex Building, ambas a abarrotar de postais, camisolas e livros repletos de imagens colhidas aqui do alto, os ângulos fotográficos cujo exclusivo é preciso preservar a todo o custo em nome do vil metal.
Antes de subirmos, ao lermos a placa metálica junto à porta, hoje fechada, por onde Oswald costumava entrar, na qual se resume a história deste prédio construído em 1901 para albergar uma empresa de alfaias agrícolas, saltou-nos à vista uma mutilação original. A última frase refere que foi daqui que "Lee Harvey Oswald alegadamente alvejou e matou o presidente John F. Kennedy", e, ao longo dos anos, mãos anónimas munidas de canivetes ou moedas vincaram um rectângulo bem nítido em volta da palavra "alegadamente", o termo que nos habituámos a ouvir da boca de todos os apresentadores de noticiários televisivos, não vá o diabo tecê-las. Não se trata propriamente de vandalismo. As pessoas, e foram muitas, e não se conheciam umas às outras, podiam ter riscado a palavra, mas preferiram destacá-la, numa longa cadeia em sintonia, o que pode ser lido de duas maneiras (afinal talvez não haja assim tanta sintonia): sublinhar bem a culpa de Oswald, dizendo que o "alegadamente" é ridículo; sublinhar bem a possível inocência de Oswald, recordando que ninguém é culpado até haver um julgamento, coisa que Jack Ruby se encarregou de impedir que acontecesse.
Oswald começou a trabalhar aqui cerca de um mês antes do atentado. Morava num quarto alugado. Às sextas-feiras, ao fim do dia, um jovem colega de trabalho dava-lhe boleia no seu carro e levava-o até Irving, um subúrbio a meia hora daqui, onde Marina Oswald, a mulher russa de Oswald, vivia em casa alheia com as duas filhas do casal, e onde Oswald passava os fins-de-semana. Na quinta-feira, 21 de Novembro, porém, esta rotina alterou-se. Oswald pediu ao tal colega que o levasse a Irving, pretextando que precisava de ir buscar umas varetas de cortinado. No dia seguinte, logo pela manhã, apresentou-se em casa do colega, trazendo consigo um saco comprido de papel pardo, suficientemente grande para conter um molho de varetas de cortinado ou... uma espingarda com o cano desenroscado. No quarto de Marina, com quem dormira pela derradeira vez e com quem não fez amor, deixou, coisa inédita, dentro de uma chávena de porcelana, a sua aliança de casamento.
A janela do canto sueste
No Depósito de Manuais Escolares do Texas, Oswald trabalhava no sexto piso, onde se amontoavam caixotes, a reunir os livros respeitantes a cada folha de encomenda. Uma tarefa aborrecida, mas ele já tivera empregos piores. Entramos aqui, saídos do elevador, e deparamos com uma enorme sala de aparência rude, cujo tecto de cimento em bruto é suportado por colunas de madeira tosca. Mas a amplidão do espaço perde-se devido aos painéis da exposição permanente, que o tornam labiríntico e escuro. Deambulo ao acaso, tentando perder-me. Numa vitrina, a loiça e os talheres que aguardavam JFK no Trade Mart, onde ele deveria ter almoçado no dia 22. Noutra, um exemplar amarelecido do Morning News, um diário de Dallas que publicou naquela manhã um anúncio de página inteira intitulado Bem-vindo a Dallas, Mr. Kennedy, acusando JFK das piores malfeitorias e com a particularidade de possuir... uma cercadura negra, como na necrofilia. Em lugar de destaque, a enorme e deliciosa maqueta da Dealey Plaza, construída à escala pelo FBI para os trabalhos da Comissão Warren, mãe de todas as teorias conspirativas graças à sua investigação tão pouco acutilante, tão deliberadamente ociosa que Norman Mailer classificou o respectivo relatório como "uma baleia morta a apodrecer numa praia". Na maqueta há fios retesados que se estendem da fatal janela para o contraplacado pintado de cinzento da Elm Street, para a limusina presidencial em miniatura. A limusina da marca Lincoln, o nome de outro presidente americano carismático, assassinado quase um século antes.
Vagueando por entre os painéis na semiobscuridade, acercamo-nos da janela do canto sueste, o elemento mais importante desta sala. À hora do almoço, Oswald ficou sozinho neste piso. Ergueu em volta de si uma muralha com caixotes de livros, pôs alguns junto ao parapeito para lhe servir de assento, de apoio dos braços, um outro mais pequeno em cima do próprio parapeito para assentar o cano da arma. A janela é ampla, de guilhotina, com o parapeito muito baixo. Oswald tirou do saco de papel pardo a Mannlicher-Carcano. Não eram varetas de cortinado, afinal. Na janela do quinto piso imediatamente por baixo desta, três outros trabalhadores que estavam debruçados a ver passar o presidente ouviram estrondos, sentiram o prédio a tremer e pedacinhos de cimento a cair-lhes em cima da cabeça.
O canto junto à janela é o único lugar onde o soalho original subsiste, sem a alcatifa pardacenta que recobre o resto do chão. Painéis de acrílico vedam o espaço onde o ninho do atirador foi reconstruído, formando uma redoma inacessível. A janela em si está aberta, mas tem outro painel de acrílico a cobrir a abertura. A atmosfera é conspirativa q.b., conspiremos, pois. O Peter pede-me que lhe cubra os movimentos. Falamos calmamente em voz normal, olhamos para outro lado, apontamos, enquanto ele vai tirando fotografias discretas com o telemóvel. Talvez uma das imagens se aproveite.
Percorro ainda a exposição em busca do depoimento mais delirante de todos quantos já li acerca deste crime, mas claro que se trata de uma busca vã. As palavras de Marguerite Oswald, a tresloucada mãe de Lee, não têm crédito neste lugar dedicado à narrativa histórica séria e circunspecta. Imprimi-las num destes painéis teria o efeito de uma camisa havaiana num velório: "Se o meu filho tivesse matado o presidente, teria confessado logo. Foi assim que eu o eduquei."
Subimos ao sétimo piso, o último, onde se situam as casas de banho, na esperança de fotografar a rua, mas as janelas aqui têm as vidraças tapadas com papel autocolante. Nada a fazer. Falo com Chris Cantu, guarda do museu. É negro, tem 72 anos, trabalhava numa fábrica de descasque de nozes-pecãs quando se deu o atentado. Já se passou muito tempo, digo-lhe, talvez este lugar esteja agora despojado de emoções, reduzido a mera atracção turística. "Da primeira vez que vi a exposição, chorei. É possível que as pessoas mais novas não fiquem tão emocionadas, mas tenho visto muita gente que chega a meio da exposição e se desfaz em lágrimas." Faz uma pausa, tenta olhar ao longe, mas as janelas têm as vidraças escurecidas. "Que idade teria JFK se fosse vivo? Nasceu em 1917, teria quase cem anos, provavelmente já teria morrido de morte natural... Era o meu presidente, mas era, acima de tudo, um jovem, um marido e um pai, e mataram-no à traição. Ainda choro, às vezes, quando circulo pela exposição e fico parado a ver as imagens daqueles dias a passar nos ecrãs. Saber se foi Oswald ou outra pessoa qualquer é que não me interessa. Não me interessa nem um bocadinho."
A tarde aproxima-se do fim, o semáforo fica verde, desço a Elm Street ao volante e abrando suavemente ao avistar um turista que foge para o passeio, lépido, com um riso nervoso, depois de ter feito pose por breves segundos junto à cruz no asfalto, no lugar onde um homem ficou com o crânio esfacelado e morreu no regaço da mulher.