Oswald e o caos
Lee Harvey Oswald arrastou na sua esteira um caudal de acontecimentos fortuitos, grotescos, trágicos. As fotografias que o imortalizaram, alvejado por Jack Ruby, mostram-no com um esgar ridículo no rosto, sem nobreza nem panache. As autoridades sepultaram-no sob um nome falso que constituiu a troça derradeira: William Bobo.
Acha que o caos não é obra sua — o caos persegue-o, é tudo. Quase sempre se julga vítima de uma conspiração cósmica, alvo de forças à solta no mundo, naturais ou humanas, que o fazem tropeçar, cair, bater com a cabeça naquele poste que ali surgiu subitamente, saído do nada. O homem-caos perde objectos, não sabe onde meteu a chave do carro, faz apitar alarmes nas lojas e nos aeroportos. A sopa do homem-caos está sempre a escaldar e queima-lhe a língua, a esferográfica rebenta-lhe durante o exame, o chão foge-lhe literalmente debaixo dos pés. Todos os seus contactos com o aparelho burocrático do Estado se saldam por monumentais confusões. O homem-caos raramente é perverso e costuma até ter um excelente coração. Porém, se é certo que, visto no cinema ou nas séries cómicas televisivas, nos delicia com as suas peripécias, ao vivo e a cores não é suportável senão em doses homeopáticas.
Das miríades de leituras possíveis do papel de Lee Harvey Oswald no assassínio de Kennedy, as quais encheram inúmeros livros e artigos de jornal desde aquele dia fatídico de 1963, há uma que me seduz particularmente, a de Oswald enquanto arquétipo do homem-caos, com uma costela marcadamente sombria, arrastando na sua esteira uma tormenta de acontecimentos espalhafatosos e bizarros, culminando numa tragédia de proporções mundiais.
Em 1958, com 18 anos, Oswald está a cumprir o serviço militar nos Marines. Numa base naval americana nas Filipinas, um seu camarada, Martin Schrand, destacado como sentinela em serviço nocturno, ocupa o seu posto. Consta que Oswald também estava de sentinela naquela noite. De repente, ouve-se um tiro, e Schrand cai morto. Um projéctil da caçadeira que ele próprio empunhava entrou-lhe no corpo abaixo da axila e saiu pela omoplata, causando lesões fatais.
Os homens-caos têm este efeito: à sua volta acontecem coisas improváveis, probabilisticamente absurdas. As caçadeiras caem ao chão e disparam-se (parece ter sido este o caso), os projécteis descrevem trajectórias estranhas. Este, aliás, é apenas o primeiro dos três projécteis tresloucados que irão pairar sobre a existência de Oswald.
O segundo é a famosíssima bala mágica que, a fazer fé no relatório da Comissão Warren, valsou na Dealey Plaza, entrando e saindo loucamente do corpo de JFK e do governador Connally até aparecer caída numa maca, no Parkland Hospital, horas depois.
O terceiro projéctil absurdo foi a bala que matou o próprio Oswald, disparada por Jack Ruby. Este queria desfechar três tiros, só conseguiu premir uma vez o gatilho, mas foi o bastante. Entrando abaixo da sétima costela de Oswald, a bala lançou-se em ziguezagues, dilacerando-lhe, mais ou menos por esta ordem, o baço, o estômago, a aorta, a veia cava, um rim, o fígado, o diafragma, e mais coisas ainda. O caos.
Em 1959, Oswald viaja para a URSS e torna-se dissidente, pedindo a cidadania soviética. Cumprira parte do seu serviço militar na base aérea de Atsugi, no Japão, de onde partiam aviões-espiões americanos U-2 para sobrevoar a Rússia. As autoridades soviéticas, a princípio relutantes, acabam por acolhê-lo e mandá-lo para uma parvónia, a Bielorrússia. A 1 de Maio de 1960, enquanto Oswald goza o feriado no seu apartamento de Minsk com vista para um canal, os russos abatem espectacularmente um U-2 e capturam o piloto americano. Khruchtchev ia encontrar-se 15 dias depois com Eisenhower, então na Casa Branca, numa cimeira, em Paris. A cimeira é cancelada por entre acusações mútuas. O caos persegue ainda Oswald como uma maldição. Onde quer que ele chegue, o inédito ergue a cabeça e assobia.
Já casado com uma russa e pai de uma filha, Oswald regressa à América em 1962 e instala-se em Dallas. Em Abril de 1963, nessa mesma cidade, relativamente perto da sua casa, alguém dispara sobre o general Walker, um paladino da extrema-direita americana da época. É de noite, o general está numa sala iluminada da sua moradia, sentado à secretária, junto da janela. A bala perfura o vidro, mas faz ricochete no caixilho e crava-se na parede. Mais tarde, já com Oswald morto, as autoridades atribuem-lhe a autoria do atentado. Não terá sido apenas a brisa do caos a achar-lhe novamente os cabelos?
No dia 22 de Novembro de 1963, em Dallas, o cortejo presidencial dirige-se, vagaroso e solene, precisamente para baixo das janelas do edifício do Depósito de Manuais Escolares, onde Oswald arranjara trabalho cerca de um mês antes. E, caso o consideremos o representante supremo das vítimas das cascas de banana deste mundo, não veremos nele o atirador, nem solitário nem acompanhado. Mais uma vez, o caos tê-lo-á envolvido no seu manto de fogo, desta vez sem salvação possível.
E mesmo que, por hipótese talvez absurda, o imaginemos de espingarda nas mãos à janela do sexto piso, de olho fito na mira telescópica, há ainda a possibilidade de ele não ter sido mais do que um James Stewart, superado por um John Wayne escondido lá em baixo, atrás da vedação de tábuas do lado norte da Dealey Plaza. Um fraco atirador cheio de boas (ou, neste caso, más) intenções, a fazer fogo quase às cegas sobre Lee Marvin/JFK, enquanto os projécteis fatais, perfeitamente sincronizados com as balas perdidas, partiam de uma espingarda alheia. Uma versão pervertida e sinistra de O Homem Que Matou Liberty Valance, obrigando-nos a imaginar John Wayne no papel do homem que matou JFK. Há lá maior caos do que este?
Esta é a terceira de uma série de crónicas de Paulo Faria, autor do texto Oswald passou por aqui, publicado neste domingo na revista 2.