Brasil: "As pessoas estão cansadas de serem desrespeitadas"

O PÚBLICO pediu testemunhos de brasileiros e portugueses que estão a viver de perto as maiores manifestações das últimas décadas no Brasil.

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Em Brasília, os manifestantes cercaram o Congresso de mãos dadas Ueslei Marcelino/Reuters

Brasília
Maristela Bernardo, jornalista e consultora legislativa do Senado Federal, reformada
"Os acontecimentos dos últimos dias trazem um desafio de conhecimento e reflexão como há muito não tínhamos. O que, afinal, aconteceu? E, principalmente, o que acontecerá a partir de agora? Uma coisa é certa: a maneira pela qual 100 mil pessoas foram às ruas no Rio, outras tantas em São Paulo e milhares de outras em várias cidades, nada tem a ver com a 'condução das massas' a que estavam acostumados os partidos e grupos políticos tanto do stablishment quanto do suposto anti-stablishment. A força das redes sociais mostrou que não são miragem as novas formas de mobilização e de geração de movimentos. Mesmo que na origem estejam sob a tutela de partidos, no momento em que ganham volume, os "grandes guias da humanidade" perdem pé da situação e tem que sair correndo atrás. É também claro o sinal de que o sistema representativo que temos como o eixo central da democracia está fazendo água. Como tudo na vida, tem que mudar. Esta não é uma demanda anti-democrática. É radicalmente democrática."

São Paulo
Juca Kfouri, jornalista
"Os gastos da Copa foram a gota d'água que transbordou o copo das deficiências do sistema de saúde e educação do Brasil, além da indignação com a corrupção e a falta de representativade no Parlamento."

Rio de Janeiro
Raquel André, actriz portuguesa (no Brasil há quase dois anos)
"Todas as pessoas estão comovidas com o que está a acontecer. Foi muito inesperado este movimento, então é muito intenso... Há duas semanas, os problemas eram os mesmos, o ônibus aumentou 20 centavos e um grupo de pessoas gritou, mais pessoas se juntaram, e mais e mais, e ontem [segunda-feira] eram 100 mil no Rio de Janeiro! Claro que não é por 20 centavos! É por um país em que os contrastes sociais são bizarros, o custo de vida do Rio de Janeiro é o custo de vida em Londres! É bizarro! A educação e a saúde pública não existem! Não existem de verdade! O Brasil é uma farsa, vive-se escondendo-se a realidade... E a Copa do Mundo "quer" esconder mais, mas o povo não vai deixar! Os jovens estão emocionados, estão fortes, ontem foi um dia de força, todos querem clareza, a corrupção é monstra... 'apenas' saíram 100 mil no Rio de Janeiro, esta cidade tem tantos milhões como o nosso país inteiro! Preparem-se! Eu emigrei de um país como Portugal hoje... e a história está a repetir-se do outro lado do oceano... O problema está no mundo. Vou gritar aqui pelo meu país, por este país e pelo mundo!"

São Paulo
Marcelo Knobel, Professor Universidade de Campinas (Unicamp)
"Os protestos generalizados no Brasil estão sendo vistos, em geral, como uma manifestação muito positiva de uma reação legítima da sociedade civil. O gatilho foi uma manifestação sobre o aumento do preço dos ônibus, mas a reação exagerada da polícia e o descaso das autoridades e da mídia (em um primeiro momento), atiçou as redes sociais e despertou principalmente os jovens. É difícil pontuar um único motivo, mas creio que sejam diversos. Na minha opinião as pessoas estão cansadas de serem desrespeitadas cotidianamente. Ouvimos que somos um país com uma das principais economia do mundo, mas isso não se reflete nos serviços públicos. Os custos estão insuportáveis, os impostos são altíssimos, mas a qualidade dos serviços públicos é uma lástima. Estou falando de educação, transporte, saúde e segurança. Isso somado à corrupção, aos gastos publicos descontrolados a lentidão da justiça. Tenho confiança que estas manifestações terão consequencias positivas para a sociedade brasileira."

Rio de Janeiro
Bruno Anastassakis, músico e produtor português (no Brasil há quatro anos e meio)
"As manifestações no Rio de Janeiro estão a afectar o quotidiano de toda a cidade. O trânsito fica um caos, para carros, bicicletas e peões. Em quase todas as manifestações tudo corre conforme planeado com segurança e ordem, no entanto, existem sempre os radicais, tanto de um lado como do outro. O mais absurdo nisto tudo é a violência usada pela polícia, atirando gás de dispersão e a atirar com balas de borracha. O centro do Rio é uma zona muito movimentada, uma área comercial, trabalham lá milhares de pessoas que ficaram feridas sem fazer parte da manifestação. Na minha opinião não existe um clima de insegurança mas sim um clima de revolta e inquietação por parte da população. Moro no centro da cidade, bem perto das manifestações, participei em algumas (não sou de direita), pelos meus motivos, mas na minha opinião política isto tudo é organizado pela direita para destruir a reputação da Dilma. Fala-se numa grande manifestação se o Brasil chegar à final da Copa das Confederações, bem no Maracanã, para mostrar ao mundo o verdadeiro estado em que o Rio de Janeiro se encontra."

Belo Horizonte
Anna Bárbara Proietti, médica e investigadora da Fundação Hemominas
"O que está acontecendo é um movimento das pessoas em sua maioria jovens, e, de repente, uma geração inteira que parecia alienada dos problemas sociais e políticos está se engajando através do poderoso mecanismo das redes sociais e saindo às ruas. Estão reivindicando melhor utilização das verbas públicas e redução do custo de vida, incluindo impostos e transporte coletivo. Vejo de uma maneira muito positiva toda esta movimentação e espero que o governo Dilma seja sensível e dialogue com os manifestantes, que isto é que se chama democracia."

Rio de Janeiro
Eduardo Refkalefsky, publicitário e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
"Esse movimento todo consegue ser ao mesmo tempo histórico e atual. Histórico porque gente na rua é uma das formas mais antigas de manifestação. O movimento tem tudo para se equiparar ao movimento das Diretas Já, no fim do regime militar, e o Impeachment do presidente Collor, nos anos 90. Mas nesses dois casos havia um objetivo concreto, seja uma eleição mais democrática ou a saída de um presidente. E traz o atual, o contemporâneo, no uso das redes sociais como forma de mobilização. O grande desafio agora é apresentar propostas concretas para direcionar a vontade e os esforços, sob pena de dissipar o movimento. Como diz o técnico Bernardinho, da seleção brasileira de vôlei, 'excesso de vontade sem disciplina vira loteria'."

São Paulo
Inês Romão, publicitária portuguesa (no Brasil há quase um ano)
"Um dia, um amigo brasileiro perguntou-me o que mais gostava do Brasil. Tentei explicar-lhe que o que mais me impressionava era a alegria que as pessoas têm, mesmo desfavorecidas financeiramente. Surpreendentemente respondeu-me que esse era o problema do Brasil. Que sair à rua para se manifestarem sobre questões políticas ninguém sai, mas se parassem o Carnaval seria uma revolução. Não lhe tirei a razão. Até ontem [segunda-feira]. Foi incrível ver tanta gente na rua abrindo os olhos para uma mudança! Estou quase há um ano neste país e após ter sido tão bem recebida não consigo deixar de ficar indiferente ao que se vê/sente neste país. Não vivo a 100% tudo isto. Mas como acredito na causa e sei que uma mudança é importante acompanho as manifestações sempre que posso."

Brasília
Gisela S. de Alencar Hathaway, advogada e consultora legislativa
"O dia amanheceu lindo em Brasília. A luz de outono tinge tudo de um dourado vivo. O céu sem nuvens, de um azul claríssimo. As ruas como tapetes estendidos para um trânsito civilizado. Parece uma terça-feira comum. Mas é o dia depois da segunda-feira branca. É o dia depois do fim de tarde e da noite mais espetaculares dos últimos anos, no Brasil.

Centenas de milhares de pessoas saíram às ruas para protestar, em várias cidades e capitais do Brasil. Também aqui em Brasília. Um protesto amplo, que vai muito além dos 20 centavos do aumento da passagem de ônibus em São Paulo, na última semana. Esses centavos, tão irrisórios, se mostraram demasiado caros para o povo brasileiro, pobres e ricos, conectados e alheios.

O povo, nos últimos anos, tem vivido a demagogia dos cartões e dos vales. Esse dinheiro instantâneo alivia, mas não resolve a pobreza, a falta de educação de qualidade, o tratamento desumano nos hospitais e postos de saúde, as estradas esburacadas, assassinas, e o avanço ininterrupto da corrupção na administração pública. O povo brasileiro cansou da megalomania das obras superfaturadas, dos eventos “para inglês ver”.

Para quem viveu, como eu, a construção das normas de sustentabilidade ambiental e social no Brasil – sou da geração que preparou e acompanhou a Rio 92 e seus desdobramentos – tem sido realmente duro presenciar o seu desmanche. Lutas importantes da agenda socioambiental foram desprezadas pelo atual governo, a exemplo da alteração do Código Florestal, que resultou em uma legislação permissiva, um retrocesso denunciado pela campanha #VETADILMA, em 2011.

Um drama que os protestos dessa segunda-feira branca certamente também denunciam é a truculência como se tratam os indígenas e ribeirinhos, que se opõem a grandes projetos como a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, que é alvo da campanha #PAREBELOMONTE.

Outro exemplo do vale tudo pelo crescimento do PIB e a promoção do Brasil no exterior é a remoção sistemática de comunidades que “atrapalham” grandes obras, especialmente, nos últimos anos, aquelas que estão no caminho dos grandes estádios de padrão FIFA, preparados para as Olimpíadas, em 2016, e as Copas das Confederações, em curso, e do Mundo, em 2014.

Diferente das autoridades que se dizem surpresas com a mobilização cidadã nas redes sociais, com o protesto que se amplia a cada encontro, que não admite bandeiras e partidos, eu consigo entender e vibro ao apoiar a 'Revolta do Vinagre', o #MPL, o #VEMPRARUA no Brasil. Essas são lutas democráticas por um governo que se paute por coerência, transparência e, sobretudo respeito ao cidadão que trabalha e paga impostos, e não aceita mais ser transportado e tratado como 'carga viva' e não sensível' nos ônibus e trens lotados, nas filas dos hospitais do Brasil."

São Paulo
Edgar Rodrigues, publicitário português (há dois anos no Brasil)
"As balas de borracha da polícia militar da noite de quinta-feira fez com que a população acordasse para que ontem, segunda-feira, os mais de 65 mil caminhassem pelas principais ruas de São Paulo. O objetivo era parar a cidade, assim conseguiram. Para as pessoas que saíram do trabalho e apanharam os autocarros esperaram mais um pouco porém os atrasos são esperados e se é por causa do trânsito ou por uma passeata é indeferente para quem paga mais R$ 0,20 centavos por trajeto todos os dias numa cidade que cada vez é mais difícil movimentar-se.

Os moradores sentiram-se mais seguros nesta segunda-feira para sair para a Avenida Paulista, Faria Lima e ruas principais da cidade. Saíram em massa e hoje [terça-feira] continua. Uma passeata organizada, com gritos pacíficos. Imagens que espalham-se pelas redes sociais e vídeos que emocionam. O que protestam? Esperam por um progresso num país onde a corrupção, a Copa do Mundo, Olimpíadas estão em alta ao contrário da qualidade de saúde, ensino e transportes. 'Não são só os R$0,20.' Hoje tem outra manifestação, no centro de São Paulo, irei mas são tantas causas que se luta que se perde o foco na manifestação. Diz que o povo brasileiro acordou mas será que os seus governantes estão com pesadelos?"

Nota: os relatos recolhidos em português do Brasil foram mantidos no original

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