Luis Sepúlveda: o escritor que já foi um gato

O autor chileno acaba de lançar em Portugal A História de Um Gato e de Um Rato Que se Tornaram Amigos , com ilustrações de Paulo Galindro. Luis Sepúlveda esteve em Lisboa e disse que “é muito difícil escrever para pequenos leitores”

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O autor esteve na Feira do Livro a promover a sua nova obra para crianças, A História de Um Gato e de Um Rato Que se Tornaram Amigos (Porto Editora). Para “pequenos leitores”, como lhes chama, já tinha escrito A História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar. Dois livros, dois gatos. “Tenho uma química especial com eles. Todos os gatos se aproximam de mim, nenhum se afasta.”

Nesta história, um gato velho e cego torna-se amigo de um rato minúsculo e fraquinho. Este torna-se os olhos daquele e virá a ganhar a sua felina coragem.“Os gatos e os ratos não são inimigos. A ‘inimizade’ é um conceito criado pelos humanos. Não existe na natureza. É uma categoria moral, uma invenção nossa”, diz Luis Sepúlveda, cuja expressão do rosto é difícil de descodificar. Parece zangado, mas não.

O autor conta com humor como começou a escrever para um público mais jovem: “Vivíamos na Alemanha e o Programa de Leitura [Plano Nacional de Leitura] era muito bom. Os meus filhos tinham de ler três livros por mês. É muito, mas parece-me bem. Eram 24 títulos por ano lectivo. Um dia, fui à biblioteca requisitar os livros para aquele mês e bebi um café. Logo ali, comecei a lê-los com curiosidade. Vi um, vi outro e comecei a enervar-me. Apercebi-me de que os livros escritos para crianças não eram para pequenos leitores, mas para pequenos idiotas. Eram completamente manipuladores. Não gostei.”

Decidiu então fazer histórias em que pudesse partilhar valores com as crianças, mas também com os outros leitores. “Valores divertidos de descobrir. Esta história é um hino à amizade e à unidade. Dois seres tão diferentes podem ajudar-se. Quero provar com as fábulas que é possível unir esforços. Um está velho e limitado porque é cego, outro é pequeno e débil. Mas são capazes de unir os seus projectos e chegar a algo.” Di-lo com entusiasmo comedido. É a inflexão de voz que nos vai dando conta das emoções.

Para Sepúlveda, é um “desafio enorme” escrever para miúdos: “É muito difícil. Trato com muito respeito os pequenos leitores. Sei que exigem uma linguagem directa, são inimigos da ambiguidade. Gostam que contemos histórias com frases curtas, gostam de contos de que se possam lembrar.”

Mas a maior exigência acontece com os diálogos: “Quando uma criança rejeita um diálogo num livro, rejeita todo o livro. Os pequenos leitores querem diálogos que não repitam o que já se contou antes nem que antecipem o que está para vir. Gostam de ir adivinhando, imaginando. São muito diferentes dos leitores adultos, que são pouco expectantes.”

Fez esta descoberta relativamente aos diálogos no “livro da gaivota”, com a ajuda dos filhos e dos filhos dos amigos: “Tinham entre cinco e sete anos e diziam que as descrições estavam bem, funcionavam, mas os diálogos não. As conversas falhavam porque davam demasiadas pistas sobre o que iria acontecer a seguir.” Neste livro, seguiu o mesmo caminho. Nada de antecipações.

Aventuras e ficção científica
Quando era criança, escutava as histórias que a avó lhe contava, “lia-as ou inventava-as”. Mas também o avô e a mãe lhe liam muito. “Quando comecei a ler sozinho, e foi logo muito pequenino, com quatro anos (foi o meu avô que me ensinou), descobri a grande literatura de aventuras. Devorei, comi mesmo, todos os livros de Júlio Verne antes dos dez anos. Também Emilio Salgari, Jack London”, conta animado.

Mais adiante no tempo, deslumbrou-se com a ficção científica, “fiquei louco, o melhor autor era o Isaac Asimov [bioquímico de origem russa, 1920-1992]”. Mas sempre teve uma leitura desordenada. “Tenho um sistema de leitura que não é sistema”, diz a sorrir e explica como tudo se passa.
“Algumas editoras enviam-me livros, outros compro eu e vou sobrepondo numa pilha. Depois, retiro sempre o que está debaixo da coluna.” Sempre, sempre, não.
“Às vezes, quando um autor me surpreende muito, vou ao meio da pilha de livros e saco-o. Mas evito, para ter mais variedade. E por cada dois livros que leio em espanhol, faço por ler um em português, alemão, inglês ou francês (as línguas que posso ler), para manter a frescura das línguas e dos temas de outros lugares.”

O primeiro amigo
Porque esta é uma história de amizade, pedimos a Luis Sepúlveda que se recordasse do primeiro amigo que alguma vez teve. E, algo comovido, apresentou-nos o Óscar.
“O meu primeiro grande amigo foi um companheiro de escola. Era muito pobre. Eu levava sempre lanche: fruta, uma sandes com manteiga, queijo, fiambre, marmelada. Ele afastava-se de nós quando ia comer o que trazia de casa. Um dia, sugeri-lhe que dividíssemos o lanche. Eu dava-lhe metade do meu e ele dava-me metade do dele. Respondeu que eu não ia gostar. Insisti, e ele lá aceitou. Trazia então um pão muito seco, com lentilhas que tinham sobrado de véspera. Comi, disse que eram boas e perguntei-lhe se tinha sido a mãe dele a cozinhar.”

Tudo começou assim. Mas não ficou por aí. Depois do primeiro lanche, partilharam tempo e conhecimentos. “Tornámo-nos mais próximos e, como eu era bastante bom a Matemática e ele não, ajudava-o. Ele era óptimo em História e Geografia e então ensinava-me a mim. Íamos para a minha casa brincar, estudar e os meus pais decidiram ajudá-lo, porque o Óscar era mesmo pobre.”
Aqui, o autor interrompe a história para falar dos pais. Rosto iluminado, voz firme, tom orgulhoso: “Os meus pais são boas pessoas. São boas pessoas porque são comunistas. Têm outras ideias sobre a vida. Nós gostamos de partilhar. Se temos amigos e companheiros, queremos partilhar com eles tudo o que temos: os nossos livros, brinquedos, jogos. É muito importante partilhar.”

Os pais de Sepúlveda pagaram a formação de Óscar. “Quando terminámos a escola primária, os pais dele não tinham dinheiro para que continuasse a estudar. Foi terrível. Ele tinha de ir trabalhar. Os meus pais falaram com os pais dele e perguntaram se aceitavam ajuda.” Disseram que sim. “Acabámos por andar juntos até à universidade. Hoje é engenheiro.” Vemos agora um sorriso feliz.

A amizade com Óscar ainda perdura. “Começámos a ser amigos aos seis anos. Agora, temos 63. Quando estamos no Chile, de vez em quando, ele pergunta-me pelo lanche. ‘A tua sandes? Passa para cá metade’”, conta divertido. É a primeira gargalhada que lhe escutamos.

A segunda virá pouco depois, ao falar do irmão, três anos mais novo. “Também é um grande amigo. Um aventureiro maravilhoso, é piloto de aviões na Patagónia. Somos uma família muito peculiar.” Haverá outras gargalhadas, quando falar do neto que lhe inspirou a próxima história para crianças. Sem gatos.

Voar, uma doce ruptura
Por agora, falemos na metáfora de voar, presente nos dois livros que aqui importam. “Voar, ter asas, não é só levantarmo-nos no ar, é caminharmos com passos próprios. Elevarmo-nos confiando apenas nas nossas próprias forças.”
E invoca o momento em que os filhos saem de casa: “É muito duro quando os teus filhos voam. Porque têm de voar. Senti uma dor enorme e ao mesmo tempo uma grande satisfação quando os meus filhos saíram de casa. Quando o meu último filho se foi embora, foi terrível. A casa ficou vazia. Uma casa enorme. Mantivemos o quarto para ele vir de férias, mas sabíamos que não seria assim. Não podemos obrigá-los a passar férias connosco. Têm os amigos, as namoradas, têm vida própria. E ainda bem.”

O escritor conclui, serenamente: “A metáfora de voar é uma doce ruptura que acontece entre dois seres humanos que estão unidos, como os pais e os filhos. Simboliza a independência que temos de conquistar.” Recorda uma frase do outro livro: “Só consegue voar quem se atreve a fazê-lo.”

A importância de ser lento
O próximo livro para pequenos leitores contará uma história que nasceu de uma conversa com um dos netos. Eis a história da história: “Tenho cinco netos. O que tem 11 anos, chamado Daniel, vive em Gotemburgo (Suécia). Faz-me sempre umas perguntas que me deixam mudo e desconcertado. No ano passado, estávamos em minha casa, em Abril, e ele tinha um caracol na mão.”

Descontraído, teatraliza a situação e prossegue. “Gostei que ele não tivesse repugnância pelo animal e que o estivesse a observar atentamente. Até que me perguntou: ‘É tão lento porquê?’” Terceira gargalhada.
“Meu Deus, o que é que lhe respondo? Que não lhe podemos dar corda? Vou falar-lhe do sistema muscular do caracol?”, diz Luís Sepúlveda ainda a rir-se e a abanar a cabeça, com aquele ar meio desesperado de qualquer adulto perante as inesperadas perguntas das crianças. “Pedi-lhe tempo para pensar.”

Pensou e acabou por decidir criar “a história de um caracol que descobre a importância e o prazer de ser lento, de não andar mais rápido do que o necessário”. Mas será preciso aguardar algum tempo para a lermos, “não quero estar a escrever livros logo atrás uns dos outros”.Respeite-se a sua vontade de não caminhar mais rápido do que é preciso.

Sobre A História de Um Gato e de Um Rato Que se Tornaram Amigos, espera o mesmo que todos os escritores: “O que nós queremos dos leitores é que eles gostem do que escrevemos. Que gostem da história. Eu gosto desta história e isso já é alguma coisa.”Também gosta muito das ilustrações de Paulo Galindro. “Permitem uma segunda leitura, é um ilustrador muito bom, criou uma outra maneira de contar a história.”

Trocaram alguns emails e Sepúlveda ficou surpreendido com as informações que o ilustrador lhe solicitou. “Percebi que ele queria mergulhar fundo na história para poder contá-la também. Não apenas para acompanhar o texto, retratar, mas para criar a sua própria narrativa. Pediu-me fotos do Max [filho de Sepúlveda e dono do gato], da rua e até das minhas estantes, para ver como organizava os livros. Muito interessante, ele querer ir até esse detalhe.”

Só a ilustradora da edição francesa é que também lhe fez muitas perguntas, chegando a pedir-lhe que desenhasse os animais: “Queria perceber como eu imaginava as proporções entre o gato e o rato. Tenho tido muita sorte. Todas as edições (Itália, Espanha, Alemanha, França, Grécia, Alemanha e Estados Unidos) têm ilustrações muito diferentes, mas sempre uma boa interpretação do livro.”

Sorte diz ter Paulo Galindro, que ainda não acredita que ilustrou as palavras de um escritor que há muito lê e admira. “Pela beleza como escreve. Pela beleza do que escreve. Pela sua história. Talvez seja por isso que neste momento ainda me pergunto: será que isto me aconteceu mesmo?”, diz ao PÚBLICO via email.

Quando leu esta história, comoveu-se mais uma vez com o talento de Sepúlveda: “Fiquei completamente rendido, apaixonado e até emocionado. É de uma doçura que desarma o mais granítico dos corações. Fala-nos do poder redentor da amizade e dos laços invisíveis que nos unem. Fala-nos de coragem, de confiança cega (curiosa ironia) e entrega incondicional àqueles poucos que cada um de nós elege como amigo.”
Tudo fez para não ver os trabalhos já editados, para não “ficar viciado numa determinada abordagem estética”. Do que não prescinde é de falar com quem escreve as obras que é desafiado a ilustrar. Nem sempre o consegue.

Cumprir a fábula
“A história do livro é profundamente biográfica. Qualquer semelhança entre o Max e o Mix não é pura coincidência. Max é um dos filhos de Sepúlveda. O gato Mix existiu mesmo. Por isso senti uma imensa necessidade de saber um pouco mais sobre tudo isto. E enviei-lhe um email. E não é que me respondeu?”

Falaram sobre o filho, os laços com o gato, os traços fisionómicos, os gostos, a formação académica (Nanotecnologia) e até o visual. “É certo que não sou um retratista, nem me senti obrigado a ficar preso à realidade, mas estas informações revelaram-se valiosas para a concepção do livro. Tudo isto foi enquadrado com o envio de fotografias do filho quando tinha seis anos (a idade em que o gato entrou na sua vida) e agora, já adulto. Confesso que ainda hoje me espanta esta partilha de algo tão pessoal.”

Paulo Galindro só entende esta atitude “face à sensibilidade” do escritor para “ter sabido ler a sinceridade e transparência” dos pedidos feitos. “Luís Sepúlveda não é uma pessoa de muitas palavras, o que não deixa de ser algo irónico num escritor”, diz o ilustrador-arquitecto, que adora “sujar as mãos com os materiais analógicos”.

No entanto, neste trabalho, optou por usar o iPad. “Tive muitas apreensões quanto a esta minha decisão. O iPad é uma superfície de trabalho pequena, limitada em termos de fidelidade cromática e de definição de imagem para uma arte final. Pelo menos era assim que eu pensava. Mas, na verdade, todo o livro foi ilustrado nesse suporte, apenas com uma ou outra pequena afinação de cor em pós-produção.”

Detalhes técnicos: “Usei uma aplicação chamada Procreate e mandei vir dos EUA uma caneta com a ponta mais fina possível para um desenho rigoroso, sem no entanto perder a sensibilidade necessária para ser detectada pelo iPad. Até usei este aparelho para ensaiar soluções de paginação. Bem-vindo ao século XXI.” Mas confessa: “Continuo a perder-me de amores pela rugosidade do real.”

Paulo Galindro não sabe se terá sido algum animal numa outra vida, à semelhança do “gato” Luis Sepúlveda. Mas, a dar-se o caso, imagina-se mais como rato do que gato. “Preferi o rato Mex ao gato Mix.”
Nunca saberemos se escritor e ilustrador terão sido amigos antes, mas nesta existência cumpriram a fábula: ignoraram as diferenças, uniram esforços para um projecto comum e voaram.

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