Presidente turco defende direito ao protesto, manifestantes voltam para a rua

EUA condenam o uso excessivo da força contra os manifestantes, concentrados para uma quarta noite de protestos.Cúpula do poder dividida.

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Abdullah Gul e Recep Erdogan no lançamento da construção da terceira ponte sobre o rio Bósforo, na semana passada Mira/AFP

A situação nas ruas de Istambul e várias cidades está a cavar um fosso entre o Presidente da Turquia, Abdullah Gül, e o primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan. “A democracia não são só eleições”, afirmou Gül, em Ancara. “Não há nada mais natural do que a expressão de várias visões e objecções de diferentes maneiras, para além da via eleitoral”.

E ao início da noite, milhares de pessoas voltaram a concentrar-se para exprimir o seu descontentamento.

No centro de Istambul, ergueram-se duas barricadas: de um lado, um cordão de polícia de choque e do outro, centenas de manifestantes, principalmente jovens, dispostos a manter posições para uma quarta noite de protestos contra o Governo.

Segundo o diário britânico The Guardian, entre a Praça Taksim e o passeio marginal do bairro de Besiktas, os manifestantes estavam a tentar levantar pequenos muros de protecção utilizando pedras da calçada. Um helicóptero sobrevoa as ruas onde estão a concentrar-se os manifestantes.

Os correspondentes da CNN e do New York Times publicaram mensagens no Twitter dando conta de uma nova ronda de gás lacrimogéneo ao início da noite.

Em Ancara, a polícia de choque tentava dissipar um protesto com mais de mil pessoas ao longo da rua Tunali, num bairro de classe média, com gás lacrimogéneo. Os manifestantes estavam de volta à Praça Kizilay, onde durante a tarde as autoridades usaram canhões de água contra a multidão, e foram reportadas várias cenas de pancadaria, alegadamente envolvendo elementos de juventudes partidárias.

Segundo a Associação de Médicos da Turquia, as cenas de violência desde sexta-feira provocaram 3195 feridos, 26 dos quais em situação crítica. Um manifestante não resistiu aos ferimentos e morreu esta segunda-feira.

Algumas horas antes, Erdogan, que tinha acusado o Partido Republicano do Povo [CHP], na oposição, de estar a manipular os manifestantes que ocuparam a Praça Taksim, a principal praça de Istambul, tinha garantido que não há nenhuma "Primavera turca", em referência às Primaveras Árabes que abalaram várias ditaduras no Médio Oriente desde 2011 (a Turquia não é um país árabe, embora seja muçulmano).

Erdogan, quem está no poder desde 2002 com o seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), e tem ganho maiorias cada vez mais expressivas em eleições, usa o argumento eleitoral quando é confrontado com as críticas cada vez mais frequentes de que a sua governação está a assumir características autoritárias, sublinham Steven Cook e Michael Koplow num artigo publicado esta segunda-feira online na revista Foreign Policy: “Como pode um governo que recebeu quase 50% dos votos ser autoritário?”, interroga.

Os confrontos entre manifestantes e polícia prosseguiam esta segunda-feira, depois de uma madrugada muito violenta. A insurreição turca fez, entretanto, a primeira vítima. O sindicado dos médicos turcos anunciou a morte de uma pessoa por atropelamento, numa auto-estrada perto de Istambul por onde caminhavam manifestantes. A Reuters diz que o condutor do automóvel se lançou contra os manifestantes, o El País conta que se tratou de um despiste de um taxista devido à presença de gente naquela via de circulação rápida.

Em comunicado, citado pela AFP, o sindicato atribuiu a morte do manifestante - um jovem membro de uma associação de esquerda - à "intransigência" do primeiro-ministro e à brutalidade que as forças da ordem estão a pôr na repressão dos protestos.

Em Ancara, onde também já se realizam manifestações contra Erdogan, a polícia lançou esta tarde gás lacrimogéneo contra a população nas ruas.

Kerry "profundamente preocupado"
A União Europeia tinha já condenado a violência da polícia, pela voz da chefe da diplomacia da UE, Catherine Ashton. Agora os Estados Unidos estão também a cerrar fileiras para fazer perceber ao Governo de Erdogan que está a passar das marcas. John Kerry, o secretário de Estado dos EUA, disse estar “profundamente preocupado com a grande quantidade de feridos”, e apelou “a que todas as partes se abstenham de provocar violência” e que os incidentes sejam investigados e esclarecidos. “Estamos preocupados com os relatos de uso excessivo de força pela polícia”, afirmou. Esta mensagem foi ecoada pelo porta-voz da Casa Branca Jay Carney, na sua conferência de imprensa diária: “Acreditamos que a vasta maioria dos manifestantes são cidadãos pacíficos e cumpridores da lei, que estão a exercer os seus direitos”

É uma viragem: ainda no mês passado, quando Erdogan visitou Washington, o Presidente Barack Obama louvou a acção do líder turco em prol das reformas democráticas e o seu importante papel na região, tanto como motor económico como em mostrar um modelo a seguir para as novas democracias árabes. Não é uma especificidade da administração Obama: esta tem sido a doutrina seguida pelos Estados Unidos em relação ao Governo de Erdogan, sublinham Cook e Koplow na Foreign Policy.

Erdogan tinha classificado os manifestantes como uma "franja extremista” e disse ainda haver suspeitas de que há "actores estrangeiros por trás dos protestos”, segundo o site em inglês do jornal turco Hurriyet. Virou-se também as redes sociais: “Agora há uma ameaça chamada Twitter. E os melhores exemplos das mentiras [da oposição] estão ali. Para mim, as redes sociais são a maior ameaça à sociedade.

O primeiro-ministro esforçou-se por transformar as manifestações populares num acontecimento manipulado pela oposição política – que não tem sido capaz de apresentar uma alternativa viável ao AKP.  "O maior partido da oposição, que todos os dias apela a que se faça resistência nas ruas, está a provocar estes protestos", disse Erdogan. Mas esta tarde, o líder da principal força oposicionista, o Partido Republicano do Povo, foi recebido pelo Presidente Abdullah Gül.

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