Mais de metade dos recém-doutorados são mulheres
Duas mulheres doutoradas por ano foi um recorde até aos anos 1970, quando um doutoramento era um passo para a carreira académica. Hoje, mais de metade dos recém-doutorados são mulheres, mas o problema já é outro: que passo dar a seguir? Uma lista de registos dos doutorados entre 1917 e 2010, compilada no PÚBLICO, mostra o que mudou em 93 anos
Um conto de reis foi a bolsa que recebeu para fazer investigação durante três meses, na ilha de São Miguel, nos Açores. Raquel Soeiro de Brito estava a começar o doutoramento, em 1950, dois anos depois de terminar a licenciatura em Geografia, em Lisboa. “Tinha de arranjar uma bolsa sozinha e eu arranjei. Um conto de reis do Instituto de Alta Cultura”, recorda aquela que é a mulher doutorada há mais tempo em Portugal. “E consegui que a companhia Açoreana me deixasse ir num cargueiro para São Miguel”.
Hoje, aos 85 anos, a vice-presidente da Academia de Marinha descreve os anos de doutoramento em Geografia, terminado em 1955. “Não escolhíamos o tema. Os meus professores queriam que estudasse Trás-os-Montes, eu não queria.Só pensava: ‘o que vou fazer para não estudar isto?’. Disse-lhes: ‘Quero ir estudar os Açores’”. Orlando Ribeiro e Mariano Feio, ambos geógrafos, eram os professores com quem trabalhava na altura. Com eles, percorreu o país nos primeiros grandes trabalhos geográficos portugueses.
Antes de Raquel Soeiro de Brito, outras 11 mulheres doutoraram-se em áreas como Química, Medicina, Direito ou Línguas e Literaturas. Estiveram sempre em menor número que os homens até 2006 quando, pela primeira vez, os ultrapassaram. Nesse ano, doutoraram-se 1304 pessoas: 675 mulheres e 629 homens. Em 2008, voltariam a superar os homens, tendência que se manteve até aos últimos dados disponíveis de 2010, quando foram concluídos 1606 doutoramentos, 878 de mulheres, 728 de homens.
Esta é uma das conclusões ao percorrer a base de dados de doutoramentos realizados ou reconhecidos em Portugal entre 1917 e 2010, compilada pelo PÚBLICO no âmbito de um projecto de investigação em jornalismo computacional (REACTION).
Os registos dos doutoramentos posteriores a 1970 estavam disponíveis online no portal dados.gov.pt e no site da Direcção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência (DGEEC). Já os dados dos doutoramentos realizados antes de 1970 são menos precisos, dada a dispersão dos registos de doutoramentos e o facto de nessa altura as instituições não os reportarem. A lista com esses registos anteriores a 1970 foi disponibilizada pela primeira vez pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC) e resulta de uma pesquisa em Diário da República.
Ao juntar todos os registos, são 22.122 doutoramentos em 93 anos. Se até 1976 havia menos de 100 por ano, a partir de 2008 o número ultrapassou os 1500. Numa década, entre 2000 e 2010, o aumento de doutorados foi de 87%. Saber quais os anos com mais doutoramentos, a evolução dos domínios científicos e do número de homens e mulheres são outras das leituras possíveis dos registos (essa exploração dos dados pode ser feita através da visualização gráfica).
Cargueiros, pesqueiros e barcos de guerra
Depois de conseguir a bolsa para o trabalho de campo, Raquel Soeiro de Brito partiu para São Miguel. “Não tinha polaróide e não quis imprimir lá as fotografias com receio de as perder. Ninguém conhecia a Lagoa do Fogo e só no mapa eu podia mostrar o que havia ali”.
Arrancava o trabalho, “feito a pé, de burro e a cavalo”, conta. Se lhe perguntassem como era um laboratório de uma geógrafa, respondia logo: “o nosso laboratório é o mundo”. “Fui até à Lagoa do Fogo pela mão de três carvoeiros e três burros. Quando cheguei estava imenso nevoeiro, não se via nada. Eles diziam-me para esperar. Esperámos e o nevoeiro levantou. Nunca vi a lagoa tão bonita como naquele dia”.
Três meses depois, voltou ao trabalho como professora assistente na Universidade de Lisboa. Conseguiu outra bolsa, desta vez de três contos de reis, para dar a volta toda aos Açores. “Fi-la em cargueiros, pesqueiros e barcos de guerra. Estávamos em 1953”. Mais ainda, pouca gente sabia o que é que andava a fazer. “Ninguém sabia o que era um doutoramento. A minha avó já achava que as meninas não deviam ir para a faculdade, então andar por vales e montanhas era uma coisa horrorosa. O resto da família ficou de olho arregalado. Mas toda a minha vida trabalhei para ser investigadora”.
Quando chegou à altura de apresentar a tese (“A ilha de São Miguel: um estudo geográfico”) tinha 29 anos. “Imagine-se há 60 anos, uma moça a trabalhar de manhã à noite com homens”. Ao apresentar a tese, um aluno ainda podia ser chumbado, independentemente do tempo gasto e do trabalho já feito.
Precisou de vinte contos e quatro meses para a imprimir. Depois de entregue, com um pedido de autorização para se doutorar, a tese passava por todos os professores catedráticos da universidade. Seguia-se uma prova escrita “durante duas ou três horas”, sem tema pré-definido, e uma prova oral. “Se passasse nessas provas todas, decidia-se se era admitida à discussão da tese, feita por dois professores, um deles o orientador. Todos os catedráticos estariam presentes e poderiam fazer perguntas”. Foi aprovada. “Quando cheguei a casa, já ‘senhora doutora’, nem consegui festejar, dormi a noite toda”.
Registos desde 1917
Uma das primeiras pessoas a compilar os dados desta lista, há 20 anos, foi Teresa Duarte, investigadora e doutoranda em Sociologia da Ciência no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL). Mais tarde, os dados viriam a ser tema da sua tese de mestrado. “Trabalhava no Instituto de Prospectiva e comecei a alimentar uma base de dados que já tinha sido começada antes. O objectivo era perceber a evolução dos doutoramentos”, explica. “Foram contactadas todas as universidades, mas quase nenhuma tinha os dados em computador”. A recolha foi feita no local, em cada universidade, consultando os processos individuais dos alunos.
O primeiro doutoramento presente na base de dados informatizada é remetido para 1917, embora a Universidade de Coimbra, por exemplo, aponte o primeiro doutoramento para 1911, com base num livro de registos da universidade. Seria contudo necessário recuar até 1377, quando foi dada a primeira autorização para conferir a insígnia de doutor, para que a lista tivesse todos os graus concedidos no país.
Mas é em 1911 que ocorre a maior mudança no grau de doutoramento. “Até aos anos setenta do século XIX, era uma ‘honra’ concedida pela Universidade, embora precedida de provas de saber no âmbito da licenciatura, que era já uma pós-graduação posterior à formatura”, explica o historiador Luís Reis Torgal, que se dedicou ao estudo da Universidade em Portugal e autor de um artigo sobre as cerimónias nos doutoramentos da Universidade de Coimbra (1993). Com reforma universitária, o doutoramento adquire uma “lógica diferente” e é convertido numa prova “essencialmente científica”, passando a ser obrigatória a defesa de uma tese.
Hoje, quase 60 anos depois de Raquel Soeiro de Brito se ter doutorado, o panorama é outro. Haver hoje mais mulheres do que homens a doutorarem-se pode não dizer muito, sublinha Rosa Paiva, uma das fundadoras da Associação Portuguesa de Mulheres Cientistas (AMONET), porque há um problema mais grave a seguir. “O doutoramento é como um primeiro grau na carreira académica. O que enfatizamos é depois as mulheres não chegarem a posições de tomada de decisão”. Embora essas posições não lhes sejam “vedadas oficialmente”, diz Rosa Paiva, acabam por ser de difícil acesso.
Mas devem destacar-se dois cenários diferentes. Primeiro, quanto à carreira académica: há mais mulheres que homens a doutorarem-se, mas é inferior o número de mulheres a entrar nas universidades como professores auxiliares (o primeiro degrau da carreira). “Vão-se perdendo mulheres ao longo da carreira". Entre os professores catedráticos, 20% são mulheres, 80% são homens, embora seja dos números mais elevados na Europa. Rosa Paiva, catedrática da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, sublinha outra realidade: os cargos a que as mulheres não chegam nas universidades não são os que dependem de um exame. “São aqueles em que as pessoas são escolhidas, grupos extraordinariamente distorcidos em relação ao sexo masculino”. Segundo, quanto às empresas, onde o problema é mais grave. “Há uma percentagem ínfima e escandalosa, entre os 2 ou 3 por cento, de mulheres nos conselhos administrativos”. Obrigar as empresas a terem paridade é um dos passos para mudar o panorama.
“Bichinho pelas biocoisas”
Para Sara Badenes, 29 anos, recém-doutorada, ser mulher nunca foi um obstáculo ou dificuldade. Acabou o doutoramento em 2010, em Ciências Biológicas, a área científica com mais doutoramentos desde 1993 e aquela onde há mais mulheres desde 1997. Para Sara, “o bichinho pelas biocoisas” começou ainda na licenciatura em Engenharia Química no Instituto Superior Técnico. A decisão de ser investigadora surgiria cedo. “Sempre quis fazer investigação e o doutoramento era um primeiro passo”. Escolheu Biotecnologia e escreveu uma tese sobre a produção de biodiesel.
No último ano da licenciatura fez um estágio num laboratório em Lünd, na Suécia, acabou o curso com média de 16 valores e isso permitiu-lhe dar o salto directo para o doutoramento. Concorreu a uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), atribuída por quatro anos, com um valor de 980 euros mensais.
Durante o tempo de investigação, não tinha rotina: se necessário, trabalhava ao fim-de-semana ou passava noites no laboratório a acompanhar experiências. Publicou cinco artigos científicos, escreveu a tese provisória e entregou-a à faculdade. “Foi escolhido o júri e decidiram se a tese estava boa para ir para a frente. Tive de entregar a versão definitiva antes de ir para a discussão”. Foi aprovada por unanimidade.
Terminava a tese, mas não a investigação: um professor sugeriu-lhe que se candidatasse a uma bolsa de pós-doutoramento atribuída pela FCT. Conseguiu-a por mais três anos, 1495 euros por mês. “Há seis anos que estou a viver de bolsas. Assim que a bolsa acabar, acaba-se”.
Em 2011, a FCT tinha 8676 bolsas de doutoramento em execução. Desse total de doutorandos, 56% eram mulheres, 44% eram homens, sobretudo entre os 25 e os 35 anos. Olhando para trás, em 2005, esse número de bolseiros de doutoramento era menos de metade (4060 doutorandos).
Quanto ao futuro a seguir ao doutoramento, um estudo realizado em 2009 concluía que 86% dos doutorados continuavam a trabalhar em actividades de investigação, no sector público ou privado, em Portugal. O mesmo estudo, publicado em Junho de 2011 pelo antigo Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais (GPEARI), indicava que apenas 3% dos que se doutoraram em Portugal estavam a viver no estrangeiro.
Sair do país não era intenção de João Cotelo Neiva, quando se doutorou em 1944. Tem 96 anos e é o homem que se doutorou há mais anos em Portugal. O seu percurso reflecte a tendência vivida até às décadas de 1970 e 1980: doutorava-se sobretudo quem desejava seguir uma carreira académica. Cotelo Neiva já trabalhava como professor antes de 1944 e assim se manteve após o doutoramento.
Foi a curiosidade que as rochas lhe despertaram desde cedo, diz, que o levou a escolher Geologia. Nem era essa a vontade da família. Licenciou-se em Ciências Geológicas na Universidade do Porto, em 1938. Daí ao doutoramento foi um passo, depois de conseguir uma bolsa do Instituto para a Alta Cultura.
“Massificação do doutoramento”
Entregou a tese em 1944, intitulada “Os Jazigos Portugueses de Cassiterite e Volframite” (digitalizada e disponível online), impressa e encadernada, dedicada à mulher e às filhas. Já lhe é difícil hoje descrever o seu percurso todo. Foi director do Museu e Laboratório Mineralógico e Geológico da Universidade de Coimbra, chegou a professor catedrático aos 32 anos e deu aulas até aos 70, “aquilo que sempre mais gostei de fazer”.
Ainda foi reitor da Universidade de Coimbra, entre 1971 e 1974, nomeado pelo então ministro da Educação, José Veiga Simão, responsável pelas reformas educativas que mudariam o panorama da Universidade em Portugal e o grau de doutoramento.
É precisamente nessa altura que aumenta o número de doutoramentos. Foram dadas as primeiras equivalências aos que eram realizados fora do país, até então sem reconhecimento. Daí em diante a situação muda, aponta Madalena Melo. “As últimas décadas do século XX são marcadas pela massificação do ensino superior e expansão da educação pós-graduada, numa tentativa de resposta à necessidade de trabalhadores altamente especializados”. Outra das razões do “boom de doutoramentos” na década de 90 foi o seu financiamento com bolsas de estudo, refere Teresa Duarte, do ISCTE-IUL.
A implementação do Processo de Bolonha e a alteração do público-alvo dos programas de doutoramento (deixam de ser dedicados à formação de académicos e passam a ser abertos a outros estudantes) são outras das mudanças, sublinha Madalena Melo.
“A partir de um certo momento, deixou de ser uma prova especial e tornou-se um grau adquirido normalmente”, considera Luís Reis Torgal, sublinhando a massificação do doutoramento, algo distinto da democratização do ensino. “A democratização pressupõe exigência. A massificação é quando passa a haver uma certa condescendência. Foi isso que atingiu a Universidade com a contribuição do Processo de Bolonha”, afirma. “A tendência natural é a de tornar o doutoramento mais facilitado”.
Só que não deixam de existir “teses extraordinárias”, lembra o historiador. Dos primeiros doutoramentos em Química e Matemática, surgem outros em Economia e Gestão, Ciências Biológicas, Ciências Políticas, Medicina, Direito ou Línguas e Literaturas. Olhando para a lista encontram-se registos de teses como a de Vitorino Nemésio em 1935, de Luís Sobrinho Simões em 1979 ou até do actual ministro das Finança, Vítor Gaspar em 1988. Algumas delas foram digitalizadas e estão disponíveis online.
Investigação e mundo real
Entre os doutorados mais recentes em Engenharia Electrotécnica, Electrónica e Informática está Vasco Vinhas. Aos 26 anos, terminou o doutoramento depois de um percurso de sucesso: 19.88 valores à entrada da licenciatura de Engenharia Informática e Computação, na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), 18.95 valores à saída.
No último ano do curso estagiou na Qimonda. “Descobri um problema que pensei que era importante de resolver e, mais do que isso, era interessante. O doutoramento era o ambiente perfeito para que pudesse estudá-lo”, conta hoje, aos 29 anos, lembrando que na altura teve mais do que uma proposta de trabalho.
Foi o interesse pelo problema e não a “preocupação financeira” que o motivou. “Isso revelou-se, como já não é surpresa nenhuma, uma má decisão. Aquilo que se ganha no doutoramento não paga as despesas”.
Durante os quatro anos de investigação tentou responder a uma pergunta: como tornar os conteúdos multimédia adaptáveis ao estado emocional da audiência? “As áreas de aplicação são vastíssimas”. Tanto nos videojogos, conteúdos cinematográficos, marketing ou publicidade, como componentes médicas. “Findo o doutoramento, é com alguma mágoa que não vejo o resultado já nas prateleiras para ser comercializado”.
Vasco sublinha a falta de ligação entre o “mundo real” e a investigação. “Não faz qualquer tipo de sentido que haja conhecimento a ser gerado, com muita qualidade, e que não esteja a ser comercializado e utilizado pelo mundo real. É com pena que vejo que não haja interesse das empresas, até com custos mais baixos, em terem uma mais-valia financeira em socorrer-se da Academia neste momento”.
Terminado o doutoramento, Vasco Vinhas ajudou a fundar duas empresas, uma a funcionar em Portugal e outra no Chile, resultantes da “extensão comercial de diversas linhas de investigação académica”. Mas, ao contrário do percurso de Vasco, Sara Badenes continuou a investigação. “Tenho amigos que às vezes me perguntam: ‘Quando é que começas a trabalhar a sério?’. Até parece que isto não é considerado um trabalho”, comenta Sara.
Os doutoramentos de Vasco Vinhas e Sara Badenes, ambos terminados em 2010, são em muito diferentes do de Raquel Soeiro de Brito em 1955 e de João Cotelo Neiva em 1944. Dentro de mais de nove décadas de doutoramentos cabem outras inúmeras teses, muitas com peso na investigação e desenvolvimento. Ao longo desse tempo, ser mulher deixou de ser obstáculo e ser doutorado deixou de ser desconhecido. Imprimir uma tese já não custa vinte contos, as cerimónias solenes passaram a ser opcionais e defender uma tese é um processo mais simplificado.
Só que, hoje, o que vem a seguir a um doutoramento é uma incógnita maior. Para Vasco Vinhas e Sara Badenes, ainda que com percursos diferentes, há uma expectativa em comum: a de que o doutoramento deixe de estar à margem do “mundo real”.