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Papa Bento XVI: um intelectual na cadeira do pescador

Texto originalmente publicado a 9 de Maio de 2010.

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Vincenzo Pinto/AFP

Bento XVI é um Papa polémico. Com as revelações de abusos sexuais praticados na Igreja Católica a sucederem-se a um ritmo assustador, e sendo ele próprio acusado de ter contribuído para o seu encobrimento, defini-lo como "polémico" oscila, claro, entre o lugar-comum e o eufemismo. Mas a verdade é que o adjectivo se lhe adequaria mesmo sem os escândalos que vêm enchendo as primeiras páginas dos jornais.

Para lá da controvérsia que têm gerado algumas das suas posições ou atitudes, Bento XVI é também um Papa polémico no sentido em que perguntas como "quem é este Papa?" ou "para onde quer ele levar a Igreja?" continuam a suscitar, cinco anos após ter passado a usar o "anel do pescador" e se ter sentado na "cátedra de S. Pedro", respostas diversificadas, quando não contraditórias.

É verdade que João Paulo II também não foi consensual. Admirado e amado por muitos, outros viam nele um Papa essencialmente conservador, que manteve a ortodoxia em temas como o celibato dos padres, o sacerdócio feminino, a contracepção, o aborto, a eutanásia ou, para não alongar os exemplos, a utilização de células estaminais embrionárias. Mas Karol Wojtyla era um homem carismático, dotado de uma invulgar força anímica e de um raro talento de comunicador. E as personalidades carismáticas tendem a ser vistas, muitas vezes de forma ilusória, como figuras transparentes. Gosta-se mais ou menos delas, mas acha-se que se sabe quem são e ao que vêm.

A imagem pública de Ratzinger é mais ambígua. Mesmo quem o conhece de perto, tanto o compara a um tanque de guerra alemão – ficou célebre a alcunha de "Panzer Kardinal" –, como descreve um homem discreto e afável, que bem preferiria viver entre os seus livros e discos de música clássica do que tomar em ombros as duras exigências do papado.

O que ninguém lhe nega é a erudição enciclopédica, o arcaboiço intelectual, os dotes de persuasão argumentativa. Ratzinger é, no sentido forte do termo, um intelectual. Um homem que cita com a mesma naturalidade Platão e Santo Agostinho, Lutero e Marx, Adorno e Heidegger, para já não falar de teólogos hindus ou muçulmanos de que pouca gente no Ocidente conhecerá sequer o nome.

Em 2004, pouco antes de ser eleito Papa, manteve um longo debate com um dos mais sofisticados pensadores da modernidade, Jürgen Habermas, que deu origem ao livro As Dialécticas da Secularização (o debate está publicado em Portugal na revista Estudos, do CADC, de Coimbra). Ambos fizeram consideráveis cedências ao adversário, mas o veredicto de empate técnico talvez seja ligeiramente injusto para Ratzinger, a quem Patrice de Plunkett, autor de Bento XVI e o Plano de Deus, chama, num elogio algo equívoco, "um admirável instrumento de precisão".

Autor de best-sellers
João Paulo II inflamava multidões de jovens e e era um produto altamente vendável para o merchandising da Igreja Católica. Ratzinger não vende estatuetas e medalhas. Mas escreve livros que se tornaram best-sellers em muitos países e que, na sua Alemanha natal, destronaram a saga de Harry Potter. Em Portugal, a obra Existe Deus?, que reproduz o debate com o filósofo ateu italiano Paolo Flores d'Arcais, esteve durante uma semana no primeiro lugar do top de não-ficção das livrarias Almedina.

O gosto de Ratzinger pelo debate intelectual revela-se especialmente no confronto com filósofos ateus ou agnósticos. Nesse debate com Flores d'Arcais, o então cardeal defendeu a racionalidade da fé e a dimensão pública do cristianismo.

O jornalista Alfredi Urdacci, em Bento XVI e o Último Conclave, sugere que o então cardeal Ratzinger teve um papel decisivo na escolha do polaco Wojtyla, cuja eleição interromperia a sucessão ininterrupta de Papas italianos que durava há quase meio milénio, desde a morte do holandês Adriaan Boeyens, ou Adriano VI, em 1523.

João Paulo II, por seu turno, confiou ao teólogo alemão, logo nos primeiros anos do seu mandato, o cargo estratégico de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, nome que o Santo Ofício – que antes fora a Inquisição Universal – assumiu a partir de 1965. E garantem os mais próximos do falecido Papa que Ratzinger era o seu "teólogo de cabeceira". Não será fácil, portanto, encontrar diferenças relevantes entre ambos em matéria doutrinal, e as poucas nuances detectáveis tendem a mostrar um Bento XVI ligeiramente mais "progressista" do que o seu antecessor. A posição de Ratzinger parece mais contemporizadora face aos divorciados católicos que voltam a casar-se, embora não se tenha atrevido ainda a revogar-lhes a proibição de comungar, e a sua perspectiva da sexualidade é claramente mais aberta do que a de Wojtyla.

Outro exemplo é a interpretação que Ratzinger faz da terceira parte do chamado "segredo de Fátima". No "comentário teológico" do então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé ao texto do "segredo", a centralidade que Fátima assumiu durante o pontificado anterior e a própria interpretação do texto escrito por Lúcia como antecipando o atentado que João Paulo II sofreu em 1981 devem ser vistas como um efeito da devoção pessoal de João Paulo II. É "razoável" que João Paulo II tenha lido assim o texto, dizia o documento de Ratzinger.

O que verdadeiramente separa este Papa do anterior é que João Paulo II era um Papa para as massas e um homem de acção. Demonstrou-o com clareza no diálogo inter-religioso, tornando-se o primeiro Papa a rezar numa sinagoga, a franquear a porta de uma mesquita ou a visitar a Grécia, cujo solo nenhum Papa pisara desde o cisma de 1504, que levou à separação das igrejas Católica e Ortodoxa.

Ratzinger é um intelectual sem o menor talento para contagiar multidões, mas a verdade é que também não acredita numa Igreja de massas para os tempos vindouros. "Seria, sem dúvida, uma expectativa errada pensar que se pudesse verificar uma mudança radical das tendências históricas e que a fé voltasse a ser um grande fenómeno de massas", afirma na sua longa entrevista, publicada em livro com o título O Sal da Terra (1996), a Peter Seewald, um católico que aderiu à esquerda radical no final dos anos de 1960 e que recentemente regressou à Igreja.

Vaticano II foi empolado?
O certo é que muitos católicos e não católicos parecem não saber ao certo o que esperar deste Papa. E isto é tanto mais paradoxal quanto é inegável que nenhum dos seus antecessores recentes esclareceu tantas vezes, e de forma tão cabal e estruturada, o que pensa da Igreja e da missão que esta deve assumir no mundo contemporâneo.

É verdade que também não faltam os que acham que o pensamento e a acção de Ratzinger são de uma clareza meridiana. O problema é que não se entendem entre eles. Bento XVI, dizem alguns, é o polícia da fé, o "Grande Inquisidor", um integrista dissimulado, que não hesitou, enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em calar vozes dissidentes "à esquerda", como a de Leonardo Boff, referência histórica da Teologia da Libertação, mas levantou a excomunhão que fora imposta por João Paulo aos bispos consagrados pelo tradicionalista Marcel Lefebvre. Um deles, o inglês Richard Williamson, é um assumido negacionista do Holocausto, um homem que afirmou publicamente que os Protocolos dos Sábios de Sião são um documento autêntico, que acredita que está em curso uma conspiração mundial judaico-maçónica e que foi citado pela BBC e pelo jornal Telegraph a dizer que "terão morrido 200 mil ou 300 mil judeus em campos de concentração nazis, mas nenhum em câmaras de gás".

Outros defendem que Ratzinger já foi, de facto, um progressista moderado, e que agiu ainda como tal no Concílio Vaticano II (1962-65), mas que se assustou de tal modo com os desacatos de Maio de 1968 que virou decisivamente à direita. Seewald afirma mesmo que, "sem o seu empenho, as reformas do Concílio Vaticano II não seriam concebíveis".

Com Hans Küng, que depois iria entrar em rota de colisão com a hierarquia do Vaticano, o transcendentalista Karl Rahner ou Johann Baptist Metz, precursor das teologias da libertação, Ratzinger foi um dos jovens teólogos que lançaram, em 1965, a publicação assumidamente reformista Concilium. Sete anos mais tarde, fundava com Hans Urs von Balthazar, Walter Kasper e outros teólogos a revista Communio, fortemente crítica dos alegados exageros modernistas da anterior.

Apesar de as aparências parecerem comprovar o fundamento desta alegada "viragem" ideológica de Ratzinger, a maioria dos livros que se têm escrito sobre o novo Papa propõe uma alternativa: ele, asseguram, nunca mudou. As orientações do Concílio Vaticano II é que foram largamente distorcidas e falsificadas pela pressão conjunta dos círculos católicos progressistas e dos meios de comunicação social. Esta é também, no essencial, a tese do próprio Ratzinger, que não se cansa de apelar para a necessidade de se regressar aos documentos efectivamente aprovados no concílio, que teriam sido, segundo diz, grosseiramente sobre-interpretados.

Quando convocou o Vaticano II, depois concluído sob a égide de Paulo VI, João XXIII desejou expressamente um aggiornamento da Igreja. Ratzinger argumenta que esta actualização, no espírito dos padres conciliares, significava apenas apresentar de forma mais eficaz a fé católica ao mundo moderno, e não adaptar os conteúdos da fé às exigências do tempo.

Cerrar fileiras
A veemência das críticas de Ratzinger à evolução da Igreja pós-conciliar não se distingue muito da dos integristas radicais. A diferença é que estes últimos atribuem a responsabilidade do declínio ao próprio Vaticano II, ao passo que o actual Papa defende que o caminho a seguir é voltar às orientações do "verdadeiro" concílio, que, defende, nunca foram cumpridas. "Deve-se reafirmar claramente que uma reforma real da Igreja pressupõe um inequívoco abandono dos caminhos errados, cujas consequências catastróficas já não podem ser negadas", disse o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé numa longa entrevista concedida em 1984 ao jornalista Vittorio Messori, depois publicada em livro com o título Diálogos Sobre a Fé.

Para Ratzinger, foi o facto de a Igreja ter, segundo ele, levado longe de mais a tentativa de se sintonizar com o "espírito do mundo", que a conduziu à crise que hoje enfrenta, marcada pela diminuição drástica de novas vocações, pela redução dos fiéis e por uma perda generalizada de influência, sobretudo na Europa.

Salvaguardadas as devidas distâncias, o dilema que, nesta perspectiva, a Igreja Católica enfrentaria não é muito diferente daquele que afligiu os partidos comunistas europeus após a derrocada do Bloco de Leste. Perante os ventos adversos da História, que estratégia daria mais garantias de sobrevivência: manter apenas a designação e enveredar por uma aproximação à social-democracia ou optar por uma autocrítica meramente cosmética e cerrar fileiras em torno de uma ortodoxia largamente desacreditada, esperando melhores dias? Mantendo a duvidosa analogia, a receita de Bento XVI é inequívoca: cerrar fileiras.

"Perdemos a visão de que os cristãos não podem viver como vive outro qualquer", diagnosticava o então cardeal Ratzinger. "Hoje, mais do que nunca, o cristão deve estar consciente de pertencer a uma minoria e de estar em contraste com aquilo que é considerado bom, óbvio e lógico pelo 'espírito do mundo'." Doutro modo, profetiza, o cristianismo corre o risco de perder "o seu sal e o seu fermento", ou seja, "o 'escândalo' e a 'loucura' do Evangelho".

O problema, para muitos, é que o Concílio Vaticano II correspondeu também a um dinamismo e uma atitude de reforma da Igreja que deveriam ser constantes. Na recente carta aberta que dirigiu aos bispos católicos, Hans Küng critica o actual Papa por ter perdido a "oportunidade de fazer do espírito do Concilio Vaticano II a bússola para toda a Igreja Católica, incluindo o próprio Vaticano, e assim promover as necessárias reformas no interior da Igreja". Os mesmos sectores advogam ainda que se colocam hoje novos problemas, designadamente no campo da bioética, que não se punham na época do Vaticano II, e que questões como o celibato ou a ordenação de mulheres se tornaram mais prementes. Razões suficientes para muitos pedirem a convocação de um novo concílio. Em Portugal, o colunista do PÚBLICO frei Bento Domingues tem sido uma voz a referi-lo com insistência.

Não rejeitando a missão de anunciar a boa-nova que os apóstolos teriam recebido directamente de Cristo, Bento XVI parece menos interessado no número de conversões do que na qualidade do testemunho. E acha mesmo que a Igreja deve largar algum lastro. Referindo-se especificamente à situação na sua Alemanha natal, admitia a Peter Seewald, poucos anos antes de se tornar Papa: "Temos, de longe, muito mais instituições religiosas do que as que podemos cobrir com espírito religioso; e é precisamente isto que leva a Igreja ao descrédito, porque se agarra à configuração institucional, mesmo quando já não há nada por detrás." E acrescenta: "Desenvolve-se a impressão de que, num hospital ou (...) numa escola, pessoas que, no fundo, não têm nada a ver com a Igreja são como que obrigadas a seguir posições da Igreja, só porque esta é proprietária e tem poder de decisão."

Um cenário que lamenta, mas que não o surpreende: "Foi sempre assim na História: também a Igreja não foi capaz de se desligar, por si mesma, dos bens terrenos, que tiveram sempre de lhe voltar a ser retirados, o que depois contribuiu para a sua salvação."

Um Papa de transição?
Embora o próprio Bento XVI se veja como um fiel da balança, um dirigente que procura o justo equilíbrio entre tradição e modernidade, pode não ser ilegítimo classificá-lo, em certo sentido, como um radical, alguém que propõe contrariar, em aspectos decisivos, aquela que vem sendo, na prática, a orientação da Igreja Católica ao longo do último meio século. No entanto, ainda não mostrou, nestes primeiros cinco anos do seu pontificado, uma vontade clara de traduzir em medidas concretas as suas convicções.

E isto conduz a um novo paradoxo: um Papa que parecia ter todas as condições para que o seu pontificado, mesmo que previsivelmente breve, marcasse profundamente a Igreja, parece conformar-se com a perspectiva de ser um Papa de transição. Neste estrito sentido, estaríamos perante o inverso do que aconteceu com João XXIII, em quem todos viam um Papa de continuidade, mas que surpreendeu a Igreja e o mundo com a convocação do Vaticano II.

Bento XVI "é muito tímido a fazer reformas e também é céptico sobre a reforma da estrutura", dizia em Roma, à Pública, Marco Politi, um dos mais conceituados vaticanistas, durante anos jornalista do La Repubblica. "Talvez tenha medo de que as reformas coloquem em marcha um processo semelhante ao do Vaticano II, desestabilizando ainda mais a doutrina tradicional."

Estará Bento XVI a desiludir os cardeais que o elegeram? Ou estes elegeram-no justamente por preverem que, enquanto Papa, seria mais conciliador do que deixariam adivinhar as suas posições enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé? Dado que Ratzinger tinha já entre mãos os mais complexos dossiers do Vaticano e, por força do cargo, conhece como ninguém a Igreja mundial, é também possível que aos seus pares tenha parecido sensato dar, por assim dizer, a presidência do conselho de administração ao actual director executivo.

Mas quem é, afinal, este homem, escolhido num dos mais rápidos conclaves de que há memória, e, ao que garantem os vaticanistas, com uma margem confortável?

Baptismo precoce
Joseph Aloïs Ratzinger nasceu a 16 de Abril de 1927, em Marktl am Inn, uma aldeia alemã da Alta Baviera, junto ao rio Inn e perto da fronteira austríaca. Foi baptizado com escassas quatro horas de vida, às 8h30 da manhã. Era Sábado Santo e, na época, não existia ainda a festa da vigília pascal, de modo que a água que iria depois ser usada, ao longo do ano, em todos os baptismos, era abençoada de manhã. Ratzinger foi a primeira criança a receber esta "água nova", como a Igreja lhe chama, o que era considerado – di-lo o próprio Ratzinger na sua autobiografia – "um importante sinal premonitório".

Os seus pais chamavam-se, muito apropriadamente, Maria e Joseph (José), e tinham já tido uma rapariga – Maria, como a mãe – e um outro rapaz, Georg, que, aos 11 anos, era já um dotado organista e viria a ser ordenado padre no mesmo dia que o irmão mais novo. Recebeu o nome de baptismo de um tio-avô paterno, que se doutorara em Teologia e chegara a ser eleito para o parlamento regional.

Os talentos musicais de Georg levaram-no, em 1964, à direcção do famoso coro juvenil da catedral de Regensburg, que recentemente adquiriu ainda maior notoriedade com as acusações de que vários dos jovens da escola a ele associada teriam sido vítimas de abusos sexuais durante os 30 anos que durou o longo consulado do irmão do Papa. Este alegou não ter sabido de nada, tendo apenas admitido que, de vez em quando, pregava "umas chapadas" aos rapazes.

O pai de Bento XVI era um comissário de polícia local e um "católico praticante", como hoje se diria. Bastante praticante, mesmo. Segundo o filho, aos domingos assistia sempre a três missas: às seis da manhã, às nove horas e à tarde. Além da devoção católica, pode-se especular que Ratzinger tenha também herdado do pai a vocação para policiar o correcto cumprimento das normas estabelecidas. E, tal como o pai, virá a fazê-lo em nome de uma autoridade superior.

Música sacra versus rock
Dessa Marktl am Inn onde nasceu, o Papa dificilmente guardará quaisquer recordações, uma vez que mal tinha feito dois anos quando a família se mudou para Tittmoning, uma pequena cidade nas margens do Salzbach, a poucas dezenas de quilómetros de Salzburgo, a terra natal de Mozart, que Ratzinger, de quem se diz ter apreciáveis dotes de pianista, coloca acima de qualquer outro compositor.

E a música não é, para este Papa, uma questão de somenos. "Uma Igreja que se limite apenas a fazer música corrente cai na incapacidade e torna-se, ela mesma, incapaz", afirma na entrevista a Vittorio Messori. Lamenta, por isso, que a música sacra, após o Concílio Vaticano II, esteja hoje confinada a celebrações especiais e quase não se ouça nas igrejas de paróquia. Tudo para atrair esses jovens "cujo sentido acústico", diz, "foi corrompido e degenerado, a partir dos anos 60, pela música rock e por outros produtos semelhantes".

O futuro Bento XVI também pouco tempo ficou em Tittmoning. Em 1932, o pai pediu transferência para Aschau am Inn, uma aldeola onde, segundo a explicação avançada pelo próprio Ratzinger na sua autobiografia, se sentia mais protegido da crescente influência dos nazis nesses anos finais da República de Weimar. Mas a família não tardou a mudar-se de novo, desta vez para Traustein, onde Ratzinger frequentou o liceu e, a partir de 1939, o seminário menor. É também em Março desse ano que o regime nazi torna obrigatória a inscrição dos seminaristas na Juventude Hitleriana. Ratzinger não escapa, mas nunca terá participado dos encontros e actividades da organização.

Em 1943, vê-se obrigado a conciliar os estudos com o serviço militar, tendo sido mobilizado para as baterias antiaéreas. Após várias missões nos arredores de Munique, deram-lhe um posto nos serviços telefónicos, e conseguiu também um pequeno quarto só para si. Convivia com um grupo de católicos empenhados e dispunha de algum tempo livre e de considerável autonomia. E, sobretudo, tinha 16 anos, pelo que não será assim tão surpreendente a desarmante franqueza com que assume que esse caótico Verão de 1943 lhe "ficou gravado na memória como um período esplêndido".

Em Setembro de 1944, regressa a casa, em Traustein, para uma licença de poucos dias, antes de ser enviado para um campo de trabalho situado na fronteira da Áustria com a Hungria, onde, segundo conta, os seus superiores tentaram, sem êxito, levá-lo a alistar-se "voluntariamente" nas SS. No final de Novembro, está outra vez em Traustein, de serviço no quartel de infantaria. Afirma ter desertado pelos finais de Abril de 1945, tendo ficado uns dias escondido em casa de um marechal católico da Luftwaffe, amigo do pai, e depois na casa da família, nos arredores da cidade. É aí que, após a vitória dos Aliados, vem a ser identificado como soldado alemão pelas forças americanas. Passa ainda algumas semanas no campo de prisioneiros de Bad Aibling, até que, a 19 de Junho, é libertado.

O susto de Maio de 1968
Ratzinger tem 18 anos e esperam-no, agora, tempos consideravelmente mais tranquilos. Em 1946, juntamente com o seu irmão Georg, que fora ferido na guerra, entra para o seminário de Frisinga, onde, a par das aulas, vai devorando os livros que encontra na biblioteca da escola. Lê Dostoievski e romancistas franceses católicos como Claudel, Bernanos ou Mauriac. Entusiasma-se também com a geração de cientistas que revolucionara a física – Planck, Heisenberg, Einstein – e embrenha-se na filosofia do idealismo alemão e nas obras de Nietzsche e Bergson, de Jaspers e Heidegger. Afirma tê-lo marcado particularmente o encontro com o pensador judeu Martin Buber, expoente do personalismo de matriz religiosa.

Ratzinger prossegue depois os seus estudos na então recém-reaberta Faculdade de Teologia da Universidade de Munique, que fora encerrada pelos nazis em 1938. Em 1951, é ordenado padre pelo cardeal Faulhaber. No ano seguinte, inicia a sua actividade docente na Escola Superior de Filosofia e Teologia de Freising, ensinando teologia dogmática e fundamental. É o início de uma carreira académica bem-sucedida, mas não isenta de alguns percalços, como o de, já após se ter doutorado, em 1953, com a tese Povo e Casa de Deus na Doutrina da Igreja de Santo Agostinho, se ter arriscado a ver reprovado o seu trabalho de habilitação à livre docência – A Teologia da História em S. Boaventura –, que um dos arguentes, o teólogo Michael Schmaus, terá considerado perigosamente modernista.

Até ser nomeado arcebispo de Munique, em 1977, irá ainda leccionar em Bona, Münster, Tubinga e, finalmente, na Universidade de Ratisbona, onde assumiu, em 1969, a cátedra de Dogmática. Estava ainda em Bona quando João XXIII convocou o Vaticano II, no qual participará, primeiro como consultor do cardeal Frings, arcebispo de Colónia, e, mais tarde, na qualidade de "teólogo do concílio".

Um ano mais novo do que Ratzinger, Hans Küng foi outro dos jovens peritos nomeados por João XXIII. Logo após o encerramento do Vaticano II, Küng convence Ratzinger a ir ensinar Dogmática para a Universidade de Tubinga, onde este permanecerá entre 1966 e 1969. Serão anos decisivos. Enquanto Küng vira à esquerda e se torna o primeiro grande teólogo católico a contestar, no século XX, a doutrina da infalibilidade papal, Ratzinger horrorizava-se com as ondas de choque do Maio de 1968.

A crescente influência da filosofia existencialista nas faculdades de Teologia já alarmara o professor de Dogmática, que, com uma ponta de travessura, confessa a Seewald que chegou a "contestá-la com argumentos oriundos do pensamento marxista". Mas, no pós-Maio de 1968, Heidegger foi repentinamente substituído por Marx como paradigma cultural. E a "abordagem marxista", diz, "era incomparavelmente mais radical". Definindo-a como "um messianismo sem Deus", Ratzinger afirma que, nesses anos de Tubinga, pôde aperceber-se "directamente do rosto cruel desta devoção ateia", da "sanha com que se renunciava a qualquer reflexão moral, considerada um resíduo burguês".

Quando estudantes de Teologia Protestante lançaram panfletos em que consideravam a cruz de Cristo uma "expressão da adoração sado-masoquista da dor" e o Novo Testamento "um meio de enganar as massas em grande escala" – episódio que Ratzinger recorda em várias entrevistas –, achou que já vira o bastante. "Quem queria continuar a ser progressista", afirma na entrevista a Seewald, "tinha de vender o seu carácter".

"Ratzinger", dirá depois Küng, "rejeitou totalmente aquele caos de 1968, e creio que foi esse o ponto decisivo da sua mudança rumo a uma orientação conservadora".

Ascensão em Roma
A carreira académica de Ratzinger encerra-se quando é nomeado arcebispo de Munique e Frisinga, por Paulo VI, em Março de 1977. Três meses depois, é elevado a cardeal. Um ano mais tarde, é já um dos homens chamados a escolher o sucessor de Paulo VI, o cardeal Albino Luciano, que, numa homenagem aos dois Papas conciliares, escolheu o nome de João Paulo I. Foi nos encontros que precederam o conclave que Ratzinger conheceu pessoalmente Karol Wojtyla, com quem até então se limitara a trocar livros e alguma correspondência.

João Paulo I morreu um mês após ter sido eleito e, no novo conclave, Ratzinger aposta no polaco, quer para evitar a eleição do ultraconservador cardeal Giuseppe Siri, então arcebispo de Génova, quer para neutralizar viragens à esquerda. Chegou mesmo a dar uma extensa entrevista ao jornal alemão Frankfurter Allgemeiner, na qual alertava para os riscos que via na eleição.

A carreira académica dava lugar a um não menos bem-sucedido trajecto na Cúria Romana. Em 1981, é nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Mostra-se particularmente duro com as Teologias da Libertação, cuja tónica política anticapitalista talvez lhe avivasse a má memória que reteve do período que se seguiu ao Maio de 68. Intervém também, sempre no sentido de manter a ortodoxia vigente, em todas as grandes polémicas que atravessaram a Igreja ao longo dos últimos anos, como o celibato dos padres ou a ordenação de mulheres. Irrita muita gente, a ponto de, em 1989, dezenas de teólogos terem pedido, na chamada Declaração de Colónia, que a congregação presidida por Ratzinger revelasse "mais pluralismo" e "menos ingerências".

Um dos temas pelos quais se interessou mais foi o diálogo com as restantes confissões cristãs e com o judaísmo e o islão. É um dos pontos em que se distingue de João Paulo II. Este pediu desculpa pelos crimes da Igreja, pregou numa igreja luterana, rezou numa mesquita e junto ao Muro das Lamentações. Ratzinger considerava, nos anos 80, e provavelmente ainda considera, que "as atitudes de um certo ecumenismo católico pós-conciliar foram marcadas por uma espécie de masoquismo, uma necessidade um tanto perversa de [a Igreja Católica] se reconhecer culpada por todos os desastres da História".

Não terá sido por acaso que, quando João Paulo II começou a falar da "purificação da memória" da Igreja e dos pedidos de perdão dos erros históricos, a pretexto do jubileu do ano 2000, se comentou que Ratzinger se opunha a essa ideia.

A sua tese é a de que o diálogo com outras confissões só pode ser frutuoso se cada um dos interlocutores assumir claramente as suas posições e recusar uma posição relativista, que, argumenta, subalterniza o critério da verdade. O seu texto Dominus Iesus, no qual reafirma Cristo como o único caminho para a Salvação e defende a superioridade da Igreja Católica em relação às restantes confissões cristãs, provocou muitas reacções negativas, mas é consistente com esta sua perspectiva.

Em relação aos judeus, a sua perspectiva é mais funda. Para Bento XVI, como para João Paulo II, o judaísmo tem um lugar à parte entre os monoteísmos. Mas a relação especial não deve fazer "esquecer e subestimar as diferenças existentes", como dizia na sinagoga de Colónia, quando voltou à Alemanha, já como Papa, para presidir à Jornada Mundial da Juventude, em Agosto de 2005.

É na questão da raiz judaica do cristianismo que Ratzinger mais avança, com base em argumentos bíblicos e teológicos e menos simbólicos e afectivos, como era mais próprio de João Paulo II: em 1997, num discurso na Academia das Ciências Morais e Políticas de Paris, o ainda cardeal dizia que cristãos e judeus estão num plano semelhante de espera do Messias: "[Na fé de Israel, são essenciais a Torá e, por outro lado,] o olhar de esperança, a espera do Messias (...), isto é, a certeza de que o próprio Deus entrará nesta história e realizará a justiça, à qual apenas podemos avizinhar-nos de formas muito imperfeitas. (...) Também a Igreja espera o Messias, que já conhece e à qual, antes de mais, ele manifestará a sua glória."

Contra o relativismo
No conclave de Abril de 2005, Ratzinger posicionou-se claramente como o homem certo para ser escolhido. Em virtude do seu cargo de decano dos cardeais, foi ele a presidir, no período de transição, ao funeral de João Paulo II, às reuniões preparatórias do conclave e à missa de início solene do acto de eleição pontifícia. Na sua homilia, ficou célebre a referência crítica aos "ventos de doutrina" que agitaram "muitos cristãos" e o apelo à necessidade de uma "fé clara" contra o "relativismo".

Foram argumentos decisivos – a par, claro, do seu brilhantismo intelectual, que se destacava entre a maior parte dos cardeais – para que fosse ele o escolhido. A opção pelo nome de Bento não é estranha a outro tema central do seu pensamento: a Europa. Na véspera da morte de João Paulo II, Ratzinger estava em Subiaco, onde São Bento, padroeiro do continente, começou a aventura do monaquismo ocidental, que marcaria decisivamente a cultura e a geografia europeias. Falou sobre a Europa e da necessidade de "homens que, por meio de uma fé iluminada, tornem Deus credível". Bento foi, além disso, o nome do Papa da I Guerra Mundial, que tentou mediar o conflito.

Ratzinger referiu-se ao que considerava a crise da Europa – um conceito sobretudo "cultural e histórico" –, em tudo semelhante à do "naufragado Império Romano". No seu diagnóstico, tocou vários dos aspectos que o preocupa(va)m: "A Europa aparece, nesta hora do seu brilho e sucesso exterior, vazia por dentro", estando "atingida por uma crise de circulação vital". À extinção das suas forças sustentadoras "parece corresponder igualmente o desaparecimento progressivo da Europa étnica". E, defende Ratiznger, decresce o "interesse pelo futuro" e as crianças "são consideradas como uma ameaça para o presente".

Eleito a 19 de Abril de 2005 para substituir "o grande Papa João Paulo II", como o próprio afirmou, o "humilde" Ratzinger começou por criar expectativas no diálogo ecuménico, estagnado nos últimos anos do pontificado de Wojtyla. Por várias vezes, e logo na primeira missa que celebrou com os cardeais enquanto Papa, a 20 de Abril, Bento XVI referiu-se à sua "prioridade" ecuménica, assumindo o "compromisso" de "trabalhar sem poupar energias na reconstituição da plena e visível unidade de todos os seguidores de Cristo".

Em diferentes situações, o novo Papa referiu-se à necessidade de "gestos concretos" nessa aproximação. Mas, até hoje, o mais importante que conseguiu foi desanuviar o ambiente com a Igreja Ortodoxa (sobretudo a Igreja Russa, o que, admita-se, não é pouco). A aproximação aos anglicanos ficou toldada pela divisão no interior da Comunhão Anglicana e pela decisão de criar uma estrutura própria para os padres e bispos anglicanos que querem aderir à Igreja Católica em protesto contra a ordenação de mulheres e de homossexuais no anglicanismo – uma decisão cujos contornos exactos permanecem obscuros.

Uma sucessão de polémicas
A eleição de Joseph Ratzinger foi bem acolhida por diversos sectores católicos, mas, quer dentro, quer fora da Igreja, não faltaram vozes a criticar a escolha dos cardeais. Mesmo assim, algumas promessas anunciadas criaram um certo estado de graça ao novo Papa. E também as suas três encíclicas, duas sobre o amor e uma sobre a esperança, foram muito bem recebidas. Na última, Caritas in Veritate (Caridade na Verdade), Bento XVI põe mesmo em causa os alicerces do sistema financeiro internacional e apela a uma nova "arquitectura económica e financeira internacional".

Marco Politi lê nestas encíclicas uma afirmação clara "do cristianismo como religião do amor, o que é importante numa época de fundamentalismos e violência". Bento XVI não quer que o cristianismo seja vivido como um parque de velharias, mas com alegria, acrescenta o vaticanista, que diz: "Neste sentido, Ratzinger não corresponde à ideia do 'Papa Panzer'."

Mas as promessas de Bento XVI – sobretudo o ecumenismo e a abertura da comunhão, e uma maior integração, aos católicos divorciados recasados – esbarraram na sua timidez e eventual falta de coragem, que parecem tornar-lhe difícil gestos genuinamente reformadores.

À falta de avanços consideráveis, Bento XVI começou a somar polémicas. Primeiro, foi o discurso de Ratisbona, em Setembro de 2006, no qual citava um texto que ligava o islão à violência. Depois, a desistência da visita à universidade La Sapienza, em Roma, por causa da oposição de um grupo de professores e alunos. Há pouco mais de um ano, foi a controvérsia em torno dos lefebvrianos e do negacionista Williamson, e também a do preservativo. Nos últimos meses, finalmente, a polémica sobre os abusos sexuais cometidos por padres e a suspeita de que o então cardeal Ratzinger terá promovido uma política de encobrimento fez manchetes em todo o mundo.

O caso individual mais grave é possivelmente o do padre norte-americano Lawrence Murphy, que abusou de 200 crianças surdas, entre 1950 e 1974. Em 1996, o cardeal Ratzinger não respondeu a duas cartas do bispo de Wisconsin, perguntando se devia demitir o padre do seu ministério. Outro caso que o toca pessoalmente é o do alemão Peter Hullerman, que terá sido transferido de paróquia quando alegadamente Ratzinger já sabia que ele tinha cometido abusos. Voltou a cometê-los e acabou por ser detido pelas autoridades, sem qualquer intervenção da Igreja.

Culpado ou tramado?
Na sua já citada carta aberta, Küng diz que o esquema de "cobertura de crimes sexuais cometidos por clérigos foi idealizado pela Congregação para a Doutrina da Fé sob a direcção do cardeal Ratzinger (1981-2005)". E recorda que a congregação tinha tomado conta de todos os casos, "debaixo de juramento do mais estrito silêncio". O próprio Ratzinger, alega ainda Küng, enviara a todos os bispos, em 2001, um documento em que tratava destes crimes, pedindo segredo. Por isso, o Papa deveria fazer um meaculpa, concluía o teólogo alemão. Nada mais errado, advogam os que defendem Ratzinger. O articulista norte-americano George Weigel, que escreveu uma longa biografia de João Paulo II, veio a público acusar Hans Küng de mentir, dizendo que o teólogo alemão devia um pedido de desculpas público ao seu compatriota. Os procedimentos relativos à pedofilia apenas passaram a depender de Ratzinger e da sua congregação em 2001, advogava Weigel. E foi nessa altura que as coisas começaram a mudar no Vaticano.

Certo é que, dois anos depois, o Papa João Paulo II convocou os cardeais americanos para uma cimeira no Vaticano, onde a questão foi pela primeira vez abordada a alto nível. E o próprio Ratzinger terá sido travado, na Cúria Romana, quando quis agir em relação ao fundador dos Legionários de Cristo, o mexicano Marcial Maciel, acusado de pederastia, e ainda com filhos de várias mulheres a quem ocultava a sua condição de padre. Maciel ia ser confrontado com um processo no Vaticano, por vontade de Ratzinger, e esta intenção terá sido travada. Pelo cardeal Sodano, então secretário de Estado? Pelo secretário de João Paulo II, Stanislaw Dziwisz? Desconhece-se o que saberia o próprio Papa Wojtyla, já muito debilitado, mas os principais analistas consideram que era esse triângulo – Sodano, Dziwisz e Ratzinger – que tomava as decisões principais. E Ratzinger terá desabafado, a dada altura, sobre o caso Maciel, com o cardeal austríaco, e seu amigo, Cristoph Schönborn: "Eles ganharam." Sabe-se hoje que Maciel traficou influências no Vaticano para que nada avançasse contra ele. Até que Ratzinger, já Papa, mandou o padre retirar-se para um convento, atendendo à sua idade avançada (morreria um ano depois) e proibiu-o do exercício de quaisquer funções na Igreja.

O prestigiado National Catholic Reporter, dos Estados Unidos, já considerou que Bento XVI deveria, apesar de tudo, explicar cabalmente os casos em que o seu nome foi envolvido. Mas Antonio Pelayo, correspondente em Roma de vários meios de comunicação social de Espanha, considera também que alguém "tramou" o actual Papa. "Quando se fizer o balanço deste caso, veremos que este homem não contribuiu para encobrir os casos de pedofilia", assegura à Pública.

Em todo o caso, parece indiscutível que, antes de se ter tornado clara, para a opinião pública, a dimensão do historial de abusos sexuais na Igreja ao longo das últimas décadas – com a divulgação dos casos do Canadá, da Austrália, dos Estados Unidos, do Brasil, das Filipinas e de países europeus como a Irlanda, a Alemanha ou a Áustria –, o cardeal não mostrou pressa excessiva em colocar o assunto nas mãos das autoridades civis.

Em textos e entrevistas, Ratzinger tem sempre insistido na dimensão sobrenatural da Igreja, no seu fundamento não humano, que justamente o leva a defender que os pecados dos seus sacerdotes não podem ser vistos como pecados da própria Igreja. Uma perspectiva que pode bem ser vista como um argumento suplementar para que a Igreja prescinda de querer exercer jurisdição sobre crimes pelos quais considera que, enquanto instituição, não deve ser responsabilizada.

Mesmo que Ratzinger não tenha tido responsabilidades pessoais nesta crise concreta, o Papa não se livra da fama de uma extrema inabilidade, sua e da Cúria, na gestão das diferentes polémicas. A começar pelo seu secretário de Estado, Tarcisio Bertone – escolhido precisamente para retirar a carga demasiado diplomática e, por vezes, quase cínica, com que aquele organismo trabalhava –, que se tem mostrado incapaz de mudar a Cúria e é acusado de passar grande parte do tempo em viagens.

O próprio Papa é muito diferente de João Paulo II também no modo de agir pessoal dentro do Vaticano: vive muito mais só, não recebe pessoas de fora quando celebra missa de manhã ou quando almoça, como fazia o seu antecessor, e deixou de reunir com periodicidade os cardeais que chefiam os diferentes organismos.

Bento XVI é ainda vítima da sua falta de talento para se mover na esfera mediática. Nas sucessivas polémicas, foi notória a precipitação com que deixou escapar frases e expressões desastradas ou tomou decisões que não soube explicar devidamente. E as intervenções posteriores da Cúria raramente têm contribuído para atenuar crispações.

Se os media escavaram ou exageraram as polémicas – em vários jornais europeus, a viagem a África foi reduzida a notícias sobre o preservativo, sem nunca se referirem os discursos sobre a corrupção, a democracia ou o respeito pelos direitos humanos –, é o próprio Ratzinger quem várias vezes dá o flanco. Na viagem aos Camarões e Angola, o Papa insistiu na condenação do preservativo, mas nunca se referiu aos pelo menos 800 projectos católicos em África de apoio a doentes de sida, que atingem mais de três milhões de pessoas.

Na saudação que dirigiu à multidão logo após ser eleito, Bento XVI dizia: "Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes."

Muitos crentes e não crentes, como se disse no início, ainda se perguntam quem é este homem e para onde quer ele levar a Igreja. Mas talvez estas sejam já, no fundo, questões ultrapassadas. Talvez a pergunta mais relevante seja outra, que ainda ninguém coloca abertamente. Quem vai ser o próximo Papa?
 
 

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