O que incomoda na Internet? Insultos, mentiras e coisas feias, dizem crianças portuguesas
Pais, crianças e jovens portugueses falaram na primeira pessoa. Esta terça-feira é dia da Internet Segura.
No trabalho de campo também houve perguntas dirigidas aos pais, tendo sido pedido que identificassem situações particularmente incómodas para os filhos na Internet. Nos testemunhos, há relatos sobre estranhos que entraram em contacto com os filhos e que lhes pediram a morada. Um dos pais conta que a filha de 16 anos conheceu um homem na Internet e convidou-o para ir lá casa. Quando a mãe chegou, a filha estava no quarto inconsciente e teve de receber tratamento hospitalar. Nunca se chegou a descobrir o que lhe aconteceu ou que terá tomado.
Outros depoimentos dos pais relacionam-se com mensagens desagradáveis enviadas por colegas aos filhos, conversas perturbadoras com estranhos, visualização de vídeos chocantes e fotografias de filhos divulgadas em sites com comentários negativos.
Já as crianças, quando questionadas sobre o que é que poderia incomodar alguém da idade deles na Internet, responderam: “Enviar insultos, contar mentiras sobre outras pessoas, sites com coisas feias, com imagens chocantes”, disse uma menina de 12 anos. Outra rapariga de 15 anos escreveu: “Fazer troça de alguém criando sites e usando o Youtube para gozar”. Uma adolescente da mesma idade, a quem uma colega enviou mensagens desagradáveis, identificou como incómodo “insultos que baixam a auto-estima e afectam psicologicamente”.
Apesar de o inquérito EU Kids Online ser de 2010, o relatório com as respostas das crianças e dos jovens na primeira pessoa só é divulgado esta terça-feira. Para além disso, os investigadores portugueses resolveram voltar ao terreno, cerca de um ano depois, mas desta vez para comparar as primeiras respostas com as de uma amostra de crianças e adolescentes de contextos socioeconómicos mais desfavorecidos.
“Quando decidimos adaptar o questionário EU Kids Online a uma amostra de crianças socialmente desfavorecidas, os nossos objectivos eram não só conhecer os seus contextos de acesso, uso e formas de mediação, mas também ter em atenção a percepção das crianças sobre os riscos e segurança online, na forma como o expressam, e compará-los”, escrevem os investigadores Cristina Ponte, José Alberto Simões e Ana Jorge, num artigo que será publicado no próximo mês.
Não estragar o computador
Neste segundo inquérito, dirigido a miúdos entre os 9 e os 16 anos do programa Escolhas, que visa promover a inclusão social de crianças e jovens provenientes de contextos socioeconómicos mais vulneráveis, a pergunta foi colocada da seguinte forma: “O que é para ti usar a Internet de forma segura? Que conselho darias a uma pessoa da tua idade?”
A pesquisa, realizada em 19 centros da área metropolitana de Lisboa e do Porto, mostrou que, comparadas com a amostra nacional do EU Kids Online, as crianças do Escolhas “são aparentemente mais inclinadas para o entretenimento” e que “as competências digitais ligadas à informação estão menos presentes”. Mais frequentados por rapazes do que por raparigas, os centros Escolhas proporcionam um acesso a meios digitais, o que leva os investigadores a concluir que “exclusão social e exclusão digital não são necessariamente equivalentes”.
Se na amostra portuguesa do EU Kids Online 47% dos pais tinham o 9.º ano ou menos, entre os pais das crianças do Programa Escolhas esta percentagem atinge os 90%. O acesso das crianças à Internet também é mais reduzido no Escolhas, o que pode dever-se aos baixos níveis de escolaridade dos pais que também não são, eles próprios, utilizadores da Internet: 60% dos pais portugueses abrangidos no EU Kids Online usavam a Internet, enquanto no caso do Programa Escolhas esta percentagem desce para 43.
Para além deste dado, salienta-se que 92% das crianças do EU Kids tinham acesso à Internet em casa, percentagem que, no caso do Escolhas, se fica pelos 46 (no que respeita a crianças) e pelos 70 (no caso dos adolescentes).
Algumas das respostas das crianças do programa Escolhas mostram que a percepção que têm sobre o que é usar a Internet de forma segura relaciona-se com o manuseamento cuidado dos equipamentos – não querem estragar computadores que não são deles – em vez dos conteúdos.
As referências a conteúdos sexuais são escassas, o que se pode dever ao facto de estas crianças e jovens acederem à Internet em locais como a escola e os centros Escolhas, onde são usados filtros e onde o acesso é mais controlado. Apesar de haver essa supervisão, uma criança do Escolhas escreveu o seguinte: “Não devia fazer, mas faço. Não jogar jogos nem tentar criar contas no Facebook… Eu faço na escola, mas com outro nome.”
E quanto a contactos com estranhos, que disseram os miúdos? Uma rapariga de 14 anos, abrangida pelo Escolhas, respondeu o seguinte: “Uso a net há cinco anos e felizmente até hoje não me aconteceu nada. Já falei e me encontrei com desconhecidos e correu sempre bem. Se toda a gente tiver o mesmo cuidado que tenho e atenção, nada de mal acontecerá”.
Os investigadores verificaram que entre jovens do Escolhas, o contacto com pessoas desconhecidas pode ser uma oportunidade para aumentarem o “capital social” – a rede de contactos. E perceberam também que crianças mais novas se sentem seguras quando navegam na Internet, porque apenas fazem um número limitado de actividades em períodos curtos de tempo.
Os autores do artigo frisam ainda que, apesar de as crianças portuguesas liderarem, a nível europeu, o acesso à Internet através de portáteis, tal não se traduzia num uso frequente. De acordo com os dados do EU Kids Online, 66% das crianças portuguesas tinham acesso à Internet através de portáteis, contra uma média europeia de 23%; porém, apenas 54% acediam diariamente à Internet, quando a média europeia era de 57%.
Uma vez que os dados das pesquisas são de 2010 e de 2011, Cristina Ponte considera que seria relevante voltar ao terreno para um novo estudo, que teria como objectivo perceber como está a actual crise a afectar as condições de acesso à Internet por parte das crianças e jovens.