Felicidade Pública (2)
Vi recentemente nos media três histórias que me dividiram em incertezas, dúvidas e reflexões, pela sua (aparente) ambiguidade. Uma descrevia uma situação dramática vivida no metro de Nova Iorque, em que um homem empurrado para a linha, de mão estendida para se agarrar a algo, a alguém, à vida, mesmo antes de ser esmagado por um comboio, foi retratado por um fotógrafo jornalístico freelancer. A mão por detrás da foto serviu para imortalizar o momento, e não pôde – ou não conseguiu, ou não teve tempo, ou não quis, ou não… – alongar-se e tentar (apenas tentar) dar possibilidade de vida a quem desesperava. Numa entrevista subsequente, esse mesmo fotógrafo defende: “Prefiro não ser a história; prefiro ser o contador da história.” Espectador, não agente; transmissor de histórias, não seu criador nem transformador; veloz no captar da imagem, e lento na empatia (potencialmente salvadora?).
A segunda história relata como um atleta espanhol perdeu intencionalmente uma corrida para ajudar um corredor queniano, medalhado nos Jogos Olímpicos, que se desorientou na boca da meta e que, ao se enganar no caminho, teria dado ao primeiro a hipótese de vencer a prova. Entrevistado, o corredor espanhol refere que preferiu agir assim por considerar que fazem hoje falta atos de honradez. Mas completou: caso se tratasse de uma corrida com outras implicações, visibilidade e dimensões... bem, aí provavelmente reagiria de outra forma e aproveitaria para cortar a meta em primeiro.
O terceiro caso, nacional e intensamente mediatizado, tratou da incorporação de uma identidade não real por um homem a quem chamaram burlão. Conheci a pessoa uma semana antes de o caso vir a lume em insistentes parangonas, pois coincidimos a falar numa conferência de uma prestigiada e admirável organização sem fins lucrativos dedicada à integração de pessoas com todo o tipo de diferenças. Na pessoa em causa impressionaram-me as suas histórias (mesmo que, sei-o agora, alegadamente fictícias), pois eram antifascistas, anticolonialistas, defensoras da liberdade, da democracia altamente participada, e de crónicas dramáticas sobre a pobreza no mundo, com propostas estratégicas para a sua diminuição. Ouvi-o atentamente, fascinada, sem duvidar. No linchamento público que se seguiu, tão habilmente coordenado e conveniente, silenciando tantas (outras) burlas em curso, não reparei em ninguém que se referisse ao conteúdo das suas intervenções, mas apenas às questões formais da pessoa e suas ilegalidades. Só mais tarde soube de ocorrências bem mais graves na história da sua vida, esqueletos dramáticos do seu armário, que ultrapassavam o ter (alegadamente) assumido funções e cargos inexistentes e fictícios, mas até lá, espantei-me com os absurdos discursos moralizadores vindos de tantos sectores e cidadãos, simplistas e sobre a forma, nunca sobre o conteúdo.
Os três casos são tradutores de éticas de vida em sociedade, de uma sociedade com requisitos potencialmente hipócritas, e todos nos convidam a perceber as profundas ambiguidades das nossas vidas, entre extremos dialéticos do bem e do mal, e os potenciais micro-heroísmos de cada dia.
Nestas histórias reside o apelo ao escrutínio da ambivalência: que condições sociais determinam se nos comportamos como eminentemente bons ou maus, como heróis ou vítimas?
A sedução pelo bem pode ser tão presente em nós como a sedução pelo mau. Qualquer um pode ser um herói, tal como qualquer um pode ser uma aberração, um veículo de infernos. É isto que o investigador norte-americano Philip Zimbardo tem brilhantemente estudado, nos últimos anos, através do Heroic Imagination Project: depois de estudar como as boas pessoas se transformam em monstros do mal, quer agora perceber como pessoas normais se metamorfoseiam em heróis. Criou uma organização e um projeto educativo para promover o heroísmo como antídoto ao mal e como forma de celebrar o melhor da natureza humana, e tem vindo a potenciar nos espaços comunitários ações que facilitem os pequenos heroísmos morais.
Ao ter como única certeza a sabedoria da dúvida, como nos dizia Milan Kundera, prefiro escolher acreditar que os heróis – os que o já foram, os que potencialmente podiam ter sido, os que queriam muito sê-lo, os que ainda poderão vir a ser – são simplesmente pessoas iguais a todas, que estão motivadas para atuar de forma ética ou em prol de terceiros, mas comportando-se de forma especial. Gosto desta ideia de democratizar o heroísmo. Gosto de poder imaginar que cada um de nós é um “herói-em-potência”.
Fascina-me saber que se estiver consciente da necessidade de agir em apoio de alguém que é vítima de qualquer mal – venha do quadrante que vier – ou simplesmente a necessitar de ajuda, cada um de nós pode estar preparado para desempenhar as melhores e mais necessárias ações. Porque não precisamos de luta ou guerra para sermos heróis, mas podemos fazê-lo de forma pacífica, ainda que rebelde e de desobediência aos dogmatismos e imoralidades; porque os atos heróicos não têm de ser extraordinários nem dramáticos – e podem ser coisas tão simples como o que fazemos com as palavras e as emoções em momentos de sofrimento coletivo, como reagimos face à injustiça, a que tipo de cidadania damos forma, que histórias infantis escrevemos ou de que maneira agimos perante um ato de violência perpetrado dentro do autocarro onde seguimos; e que cada um de nós, qualquer um, tem em si a potencialidade de ser um herói – todos os dias. Aspirar à condição humana (de excelência) já não é só um sonho do Pinóquio. Alimentemos imaginações heroicas e tomemos a ação. Não dá mais para sermos espectadores e alimentarmos a ambiguidade. Acho que este ano, mais do que nunca, é disso que precisamos. Voltando a Kundera, unamos a extrema leveza da forma à profundidade do conteúdo.
Helena Marujo é professora universitaria no ISCSP/UTL
A autora escreve ao abrigo do acordo ortográfico