O império colonial em questão?

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Daniel Rocha

O historiador Miguel Bandeira Jerónimo, que organiza o livro onde o artigo de António Araújo é publicado, diz que saber se há ou não uma ordem superior para acções com mutilação de cadáveres, "escrita ou oral", não é necessariamente o aspecto central no estudo do que aconteceu na sanzala Mihinjo. Ou seja, "a natureza desta acção militar pode não ter decorrido de uma instrução concreta e ter, ao mesmo tempo, correspondido a instruções gerais superiores, ou ser uma decorrência natural de um conjunto de normas e técnicas militares".

Este especialista em história comparada do imperialismo e do colonialismo afirma que "o efeito dos ciclos de violência no império – de resto, com exemplos similares aos de outros impérios, aspecto central que se tende a esquecer facilmente – contribuíram para a criação de condições históricas que facilitaram situações como esta". Bandeira Jerónimo explica que é necessário compreender "o ethos militar, a natureza e os conteúdos dos manuais e dos treinos de acção militar (por exemplo, em situações de "insurreição" ou "subversão") ou a experiência individual e colectiva de situações de conflito".

Um exemplo disso é a "iniciação" dos militares no terror de que fala o relatório militar, como se lê na parte especificamente dedicada às suas reacções: "O nosso pessoal militar: de uma maneira geral, pálido. Cerca de 20% com o olhar incerto e assustado. Cerca de 10% prestes a desmaiar. O resto portou-se bem." Já na conclusão, o efeito no "pessoal" militar é descrito do seguinte modo: "Foi fortemente sacudido e posto pela primeira vez perante a realidade de uma guerra total de sobrevivência sem quartel. A experiência foi-lhes benéfica [...]."

Se não é possível responder a várias das perguntas que este documento singularíssimo coloca, o investigador do Instituto das Ciências Sociais diz que ele "mostra a necessidade imperiosa de se prosseguir o estudo sério e rigoroso do nosso passado imperial e colonial, avesso tanto a simplificações como à reprodução acrítica e instrumental de uma narrativa que entroniza a natureza benévola do império colonial português e que conduz, inevitavelmente, ao ofuscamento de responsabilidades individuais e colectivas". Um estudo que "não tem que ser dominado por processos inquisitórios e justiceiros retroactivos", sublinha.

Bandeira Jerónimo acha que o documento publicado no livro O Império Colonial em Questão (sécs. XIX-XX) prova muito mais do que a iniciativa de um capitão num contexto a seguir aos massacres da UPA (União dos Povos de Angola): "Colocar este documento na gaveta dos "excessos", dos "infelizes acontecimentos" ou "casos pontuais", reforçando um pensamento de excepcionalidade que domina o estudo do império colonial, impede a devida consideração da banalidade do mal nos regimes coloniais." A excessiva centralidade da guerra colonial "obscurece o facto de a violência material e simbólica ser um fenómeno sistémico, endémico, característico das situações imperiais e coloniais".

Wiriyamu foi há 40 anos

Hoje, 16 de Dezembro, passam 40 anos sobre o massacre de Wiriyamu, em que duas companhias de comandos do Exército português terão morto, em três aldeias da província moçambicana de Tete, 400 civis suspeitos de terem ligações ou apoiarem guerrilheiros da Frelimo, numa estimativa feita em Julho de 1973 pelo jornal britânico Times, quando 120 corpos já tinham sido identificados, diz ao PÚBLICO o historiador Pedro Aires de Oliveira, que publicou este ano, com Bruno Cardoso Reis, um artigo sobre Wiriyamu na revista britânica Civil War. À agência Lusa, Aires de Oliveira lembra que Wiriyamu terá sido um "dos mais terríveis" episódios da guerra colonial portuguesa, mas que é ainda pouco conhecido pelos portugueses.

O artigo procura mostrar como episódios como Wiriyamu passaram a ser muito mais prováveis depois do general Kaúlza de Arriaga, comandante-chefe em Moçambique, "ter optado por uma escalada do conflito no início da década de 1970, seguindo algumas das tácticas experimentadas pelos norte-americanos na Indochina", afirma ao PÚBLICO. "Este tipo de acções violentas contra populações não foram um exclusivo do período colonial tardio. Durante as campanhas militares portuguesas no séc. XIX e inícios do séc. XX, em locais como Moçambique ou Timor, a guerra tinha uma forte dimensão ritualística (envolvendo mutilações e decapitações), sendo praticada tanto pelos portugueses (e as suas tropas nativas auxiliares), como pelos exércitos locais. À época, alguns desses actos chocaram a sensibilidade metropolitana, mas os comandos militares nas colónias tendiam muitas vezes a aprovar ou encorajar tais acções, vistas como eficazes para intimidar populações "insubmissas"."
 
 
 

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