O Hobbit quer assustar miúdos e chamá-los às salas, sem enxaquecas
O Hobbit: Uma Viagem Inesperada estreia-se quinta-feira e traz uma novidade, o 3D a 48 frames por segundo. Mágica nitidez ou artificialismo de videojogo?
Desse processo resultam, para já, duas ideias: que a nova tecnologia em que foi filmado, 3D a 48 frames por segundo, o dobro dos 24 que são norma desde a década de 1920, está longe de consensual - há quem compare a projecção a um videojogo e se queixe de dores de cabeça. E que as três horas de duração são demasiadas para a história que este primeiro capítulo da trilogia conta. "É como se, em O Feiticeiro de Oz, demorássemos uma hora a sair do Kansas", queixa-se Todd McCarthy, da Hollywood Reporter.
Consensual, para além da presença de Gollum, o hobbit amaldiçoado, deformado e enlouquecido pela cobiça (na Time, deseja-se que Tolkien lhe tivesse dedicado um livro inteiro), é a ambição de Peter Jackson e a sua cada vez maior minúcia na imortalização em cinema das histórias na Terra Média inventada pelo escritor inglês. Ilustra-o um simples facto. A trilogia O Senhor dos Anéis foi criada a partir de três livros que totalizavam 1300 páginas. O Hobbit, escrito em 1932 e publicado em 1937, quase 20 anos antes de O Senhor dos Anéis (1954), e pensado para um público juvenil, não chega às 300. Quer isto dizer que tudo o que se passa na obra literária passou para a tela.
Para sustentar a narrativa que percorre os três filmes que contarão a aventura do hobbit Bilbo Baggins, acompanhado de anões folgazões e do feiticeiro Gandalf, entre orcs embrutecidos e elfos de brancura celestial, em busca do tesouro de Erebor guardado pelo dragão Smaug, Jackson e os argumentistas Fran Walsh, sua companheira, Philippa Boyens e Guillermo del Toro, inicialmente pensado como realizador, recorreram a apêndices de O Senhor dos Anéis e outras obras passadas na Terra Média (recorde-se que, depois de Hobbit: Uma Viagem Inesperada, estrear-se-á em Dezembro de 2013 The Desolation of Smaug, e, em Julho de 2014, There and Back Again). Mantém-se o desejo de fidelidade ao espírito do original de Tolkien: um conto fantástico infantil, com momentos assustadores. O realizador afirmou isso mesmo. Quer assustar crianças: "Se se assustarem com os trolls, óptimo, se se assustarem com os diabretes, óptimo, eles sabem que não existem trolls, sabem que não existem diabretes, é um tipo de perigo inofensivo."
Na Variety, Peter Debruge elogia a consistência do ambiente e sensibilidade mantidos nas adaptações de Tolkien por Jackson, mas escreve que "O Hobbit está recheado de cenas que deveriam ter sido guardadas para extras de edições em DVD (ou omitidas inteiramente)." Na Time, Richard Corliss afirma que este é um filme em que cabe aos espectadores fazerem a montagem, "saboreando as cenas fortes, dormitando nas mais fracas". E, apesar de não faltar quem muito o elogie - o site Rotten Tomatoes, que agrega críticas e respectivas notas, mostrava ontem uma classificação de 75% -, mesmo as críticas mais entusiastas não escondem uma ressalva, a da duração demasiado longa para aquilo que a história exigiria. Peter Jackson defende-se, argumentando que o texto de O Hobbit é "de cortar a respiração". "Acontecimentos importantíssimos são contados em duas ou três páginas", afirmou numa conferência de imprensa em Nova Iorque. "Assim que começamos a trabalhar as cenas, queremos desenvolver um pouco mais as personagens." Essa, porém, não é a discussão principal que O Hobbit vem suscitando. O maior burburinho vem sendo criado pela tecnologia utilizada na sua rodagem e exibição e poderá provocar o mesmo confronto de ideias que o 3D de James Cameron em Avatar.
A grande questão
Peter Jackson queixa-se que o filme não terá grandes hipóteses nas categorias principais dos Óscares. "Os prémios de representação parecem escapar-nos", suspira. E isso entristece-o, já que o filme é uma parada de estrelas: Ian McKellen como Gandalf, James Nesbitt como Bofur, Martin Freeman como Bilbo, Christopher Lee como Saruman e Cate Blanchett enquanto Galadriel, elfo enxertado de O Senhor dos Anéis para, explicaram as argumentistas Fran Walsh e Philippa Boyens ao New York Times, conferir a Hobbit: Uma Viagem Inesperada a sensibilidade feminina que estava ausente na obra de Tolkien.
Jackson gostaria que Andy Serkis, que dá vida a Gollum, materializado em tela digitalmente através da tecnologia CGI, já tivesse ganhado um Óscar. Não ganhou e, se este filme conseguir algum, está convicto de que virá das categorias técnicas. E a verdade é que a tecnologia tem sido a grande questão cinéfila trazida pelo filme. Referimo-nos à filmagem em 48 frames por segundo, quebra de uma regra definida no final dos anos 1920, quando se fixaram os 24 frames como padrão.
Durante oito décadas, o olhar dos espectadores foi assim educado. O passo dado em The Hobbit tem para Jackson uma justificação urgente: trazer novamente o público, principalmente as novas gerações, às salas de cinema que tem vindo progressivamente a abandonar. "Assisti à chegada de iPhones e iPads e agora existe uma nova geração de miúdos. O que me preocupa é que eles parecem pensar que está tudo bem em esperar pela edição do filme em DVD ou pela disponibilização para download. E, para dizer a verdade, não quero que os miúdos vejam O Hobbit nos seus iPads. Não na primeira vez", declarou à Associated Press. "Como cineasta sinto a responsabilidade de dizer: 'Esta é a tecnologia que temos agora, e é diferente.'" O seu objectivo é este e apenas este: "Quero desempenhar o meu pequeno papel no encorajar da experiência bonita, mágica e misteriosa que é entrar numa sala escura cheia de estranhos e ser transportado num pedaço de escapismo."
Ainda que a exibição no novo formato não seja tão generalizada como o desejava o realizador - na América do Norte, a Warner Bros decidiu que apenas 450 salas das 4000 em que se estreará o filme projectarão em 48 frames -, a discussão das suas virtudes e defeitos tem sido tema central. Bryan Singer, realizador de X-Men, saiu da estreia em Wellington e declarou ao mundo, via Twitter, ter "uma inveja aguda pelo rácio de frames".
Gravar com um maior número de frames dá maior claridade ao ecrã, o que é especialmente perceptível nas cenas nocturnas, e ajuda a diminuir o strobing, o efeito tremeluzente que se cria quando um objecto filmado, ou a câmara, se move demasiado depressa para ser fixado com total definição. O resultado, porém, está longe de consensual. Todd McCarthy, do Hollywood Reporter, compara-o a "vídeo televisivo ultravívido", o que, "paradoxalmente, dá ao filme um bizarro aspecto teatral". Para além de queixas de enxaquecas provocadas pela experiência, o que levou a Warner Bros a lançar um comunicado em que assegurava que não, que a nova tecnologia não provoca tais reacções aos espectadores, as maiores reservas vão para a artificialidade das imagens. Lê-se na crítica de Richard Corliss, na Time: "A nitidez da imagem é por vezes mágica, ocasionalmente indutora de enxaquecas. No início, na batalha de Smaug, julguei que estava a ver um videojogo: imagens brilhantes de criaturas indistintas. Depois de algum tempo os meus olhos adaptaram-se como que a um novo par de óculos, mas não deixou de ser como ver um espectáculo televisivo muito dispendioso em directo, no maior ecrã de tv caseiro do mundo." (Mike Ryan do Huffington Post escreveu: "A imagem é tão nítida que numa cena conseguia ver as lentes de contacto de Ian McKellen.") Para contestar ou apoiar Corliss, o público português terá ao seu dispor sete salas com O Hobbit em 3D a 48 frames por segundo: Alvaláxia, Cascaishopping, Vasco da Gama, Colombo, Norteshopping, El Corte Inglés e Arrábida Shopping.
Entre defensores e detractores, o veterano Ian McKellen é o mais pragmático. Reconhece que "levará algum tempo até nos habituarmos [ao formato]": "Provavelmente um jovem que ainda não viu muitos filmes irá aceitá-lo e apreciá-lo. O resto de nós terá que se habituar." Que diria Gandalf?
Notícia corrigida às 11h44: foram acrescentados El Corte Inglés e Arrábida Shopping aos cinemas com projecção 3D a 48 frames.