Camané e Laginha com sotaque do Brasil
Uma série de conversas sobre Portugal e o Brasil entre brasileiros e portugueses começa hoje entre portugueses – dois músicos apaixonados por música brasileira. Tudo começou com as telenovelas. Depois, claro, vieram Chico, Jobim, Elis, Caetano. Uma conversa com música(s) pelo meio.
Vão logo falando de pequenas coisas. Camané acende um cigarro. Conhecem-se bem, estão à vontade um com o outro e por isso aceitaram logo a ideia de serem os primeiros de uma série de conversas que o PÚBLICO está a organizar. A ideia é, a propósito do ano do Brasil em Portugal e de Portugal no Brasil, juntar um português e um brasileiro para uma conversa livre.
Mas a primeira vai ser mesmo com dois portugueses – ambos apaixonados por música brasileira. E por isso é, apesar de tudo, uma conversa com sotaque. Não só porque Camané irá cantar “em brasileiro”, mas porque serão convocados os grandes músicos do Brasil que, de vez em quando, vão irromper na sala do Penedo, com as vozes saindo do computador de Mário Laginha.
Iremos falar de uma familiaridade com uma língua que vem da infância, das telenovelas (e até do Sítio do Pica-Pau Amarelo), dos primeiros concertos, da admiração imensa por artistas brasileiros, de músicas em sotaques misturados.
Para já, a equipa prepara as câmaras, escolhe os melhores ângulos, coloca os microfones, e, quando reparamos, Laginha está sentado ao piano e Camané começou a cantar.
Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
Os sotaques
Camané – A música brasileira tem a ver com este som das palavras, também. Sou cantor de fado, não de música brasileira. Mas gosto de a cantar, e, com o Mário, já tocámos juntos muitas vezes. Claro que esta música tem a ver com o sotaque, a musicalidade das palavras, como se pronunciam as palavras em português do Brasil. E a forma como está escrita, muitas vezes não funciona no português de Portugal.
Mário – Às vezes a construção em português fica estranha se não se puser aquilo a que nós chamamos sotaque, e a que eles chamam ausência de sotaque – quando nos ouvem, dizem ‘você tem imenso sotaque’. As músicas são tão boas que aguentam tudo, mas não é fácil divorciar da língua.
Camané – Embora existam algumas canções que pela forma como estão escritas se podem cantar em português. Há uma, a Inútil Paisagem…
(Laginha também tinha pensado nessa. Já a tocaram juntos outras vezes – até aqui, nesta sala. Camané canta.)
Pra que
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde
Inútil paisagem
(Camané recorda que no espectáculo Outras Canções, uma série de concertos que fez no São Luiz, cantou “um poema lindissimo do Vinicius de Moraes com música de Tom Jobim”. Começa a trautear. Mário não se lembra da música para poder acompanhar, e os dois procuram no computador. E na sala ouve-se Vinicius.)
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
E Camané:
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
(Mário recorda que Camané tinha falado na hipótese de adaptar esta música a fado. Como é que se percebe que uma música pode vir a ser um fado?)
Camané – O fado vem de dentro para fora. Já me aconteceu pegar numa música e transformá-la num fado porque é esse o ambiente inicial. Mas a ideia também não é transformar. Temos que sentir por dentro as canções. Elas são mais importantes que nós, não são para nos exibirmos, são para as respeitarmos e lhes darmos o melhor que pudermos.
Os inícios
Camané – Comecei a ouvir com o Chico e a Bethânia. A primeira vez que fui a um concerto de música brasileira foi da Bethânia, para aí em 82, 81. A partir da Bethânia fui ver o Chico, e os outros. Lembro-me de em 76, devia ter para aí 11 anos, estar numa Festa do Avante com o meu pai, a atravessar uma multidão enorme. Era ainda em Belém e estava o Chico e a Simone Bittencourt no palco, e lembro-me de ter olhado e de o meu pai dizer ‘é o Chico Buarque’, mas eu ainda tinha 11 anos, tenho imensa pena.
Mário – Eu tenho uma história parecida, mas tenho menos desculpa porque já era bastante mais velho, com vinte e tal anos. Tive um convite para ir à Casa do Brasil ou à embaixada, já não me lembro bem, porque vinha o Tom Jobim. Era uma coisa bastante informal. Eu já o adorava mas ainda não o venerava, e tenho pena de não ter estado quando já o venerava. Com aquilo que sinto agora, queria, nem que fosse só mexer [ri e faz um gesto com as mãos como quem agarra o braço de outro].
O Tom é daquelas pessoas que transbordava talento musical. É aquela expressão de lhe sair a música pelos poros. Há coisas de que gosto mais e outras das quais gosto menos, mas não há uma coisa dele que eu ache que não tem música lá dentro, no sentido mais profundo.
Ainda agora o Camané estava a mostrar o Soneto da Separação – começo ouvir a melodia e os acordes, e as notinhas que estão lá pelo meio, e que o Jobim fazia como ninguém, e é absolutamente esmagador. Isto só para dizer que eu também tive um momento em que não tinha consciência de quão grande ele era.
Camané – A música toca-nos quando menos se espera. Lembro-me quando era miúdo e comecei a cantar fado ninguém da minha idade ouvia fado, e o reencontro com a minha geração através do fado só aconteceu uns anos mais tarde. Hoje há imensos amigos meus que adoram fado, que se identificam com aquilo que eu faço, mas que há 20 anos atrás quando eu cantava não achavam graça nenhuma.
Mário – Eu sou um bom exemplo disso. Há vinte e tal anos não gostava de fado. Ponto. Depois, de repente, gostei de um, depois de outro.
Camané – Lembro-me que quando a música brasileira me tocou foi assim enorme. Lembro-me de os meus amigos ouvirem ACDC e os Ramones e eu ir sozinho para casa ouvir o Jobim e o Chico e de eles acharem que eu era um careta. Eu também gostava de ouvir Doors, Beatles, música francesa, mas o pessoal ia todo ouvir os ACDC e os Ramones.
Mário – O meu pai ouvia muito Frank Sinatra e dos brasileiros ouvia Elis Regina, e tinha um disco do Baden Powell de quem eu era grande fã – ainda me lembro do Samba Triste, houve um ano em que era uma das músicas em que eu era mais vidrado. O primeiro concerto que vi, um bocadinho mais tarde, foi o Caetano. Vi o Gilberto Gil, o Chico, ouvi uma vez a Marisa Monte, e o Milton, o Ney já é quase português.
Camané – Lembras-te daquele concerto do Chico no Campo Pequeno, com o Vinicius Cantuária? Depois vi outro a seguir também do Chico no Canecão. Aliás, quando fui para o Brasil já ia com os bilhetes comprados. E uma vez estava na praia no Rio e vi o Chico passar, mas fiquei a olhar, não fui atrás dele.
Caetano e Chico
Camané – São caminhos diferentes. O Chico abraçou muito a bossa nova e o samba, o lado um bocado urbano do Brasil, como fez também numa fase anterior o Tom Jobim. O Caetano abraçou a música do Brasil, foi buscar a música da Bahia. São dois génios. Gosto muito da maneira como o Caetano ou o Jobim misturam o lado negro com o lado branco.
Mário – Eu, não é para ser politicamente correcto mas acho que são muito complementares, se calhar sem querer. Musicalmente e enquanto poetas são imensamente complementares mas muito diferentes. Por isso é fácil haver pessas que se revêem mais num ou noutro.
Acho que o Caetano tem uma predilecção pelo absurdo, não sei se é esta a palavra certa, são quadros mais abstractos. Muitas das letras do Chico ou aquilo aconteceu-nos ou podia ter-nos acontecido, sentimos aquela emoção, olhámos para aquilo daquela maneira, ou gostávamos de ter olhado.
Camané – Numa das primeiras vezes que fui ao Brasil estava a passear no calçadão e a música que ouvia ali era o Chico, e é impressionante porque é muito urbano, muito das cidades. [Canta] Tapioca, o pregão abre o dia, hoje tem baile funk. Lembro-me de passear no calçadão e ouvir esta música [Carioca]. E na Bahia ouve-se o Caetano.
O chorinho de Mário (e o ser aceite)
Mário – Houve uma encomenda da comissão para os descobrimentos portugueses a mim e à Maria João para fazermos um disco para comemorar os 500 anos da chegada do Pedro Álvares Cabral ao Brasil [foi o Chorinho Feliz]. Tínhamos ouvido um disco de um cantor que na altura não conhecíamos, o Lenine. Decidimos convidar um dos pesos-pesados, o Gilberto Gil, e o Lenine. Não é que ambos aceitaram? E depois até tocámos ao vivo com os dois. A minha coroa de glória foi tocar no Parque Ibirapuera para 100 mil pessoas, o que era um absurdo. (risos) Eu costumo dizer por como piada que por acaso estava lá o Gilberto Gil. É uma sensação estranhíssima tocar para tanta gente e saber que não é por nossa causa.
Camané - A primeira vez que ouvi o Gilberto Gil devia ser uma criança, foi no Sítio do Pica-Pau Amarelo, a música era lindissima. Depois as telenovelas… a Gal Costa cantava o tema da Gabriela. [Trauteia] Gabriela é…meus camarada. Nós tivemos sempre uma facilidade maior em perceber o português do Brasil porque começámos muito cedo a ver as telenovelas.
Há uns dois anos passou uma telenovela no Brasil que era a Fina Estampa que tem um fado meu. É engraçadissimo porque no meio daquelas músicas brasileiras há um fado que acompanha uma personagem que é portuguesa. Deve ser a primeira vez que os brasileiros ouviram um fado numa novela. Eu estava a ouvir e soa mesmo estranho ali no meio um fado tradicional. Que língua é esta? Nunca me passou pela cabeça passar música minha numa telenovela brasileira.
Mário - Quando fiz o chorinho lembro-me que fiquei orgulhosíssimo de o fazer, mas o engraçado foi quando descobri que havia brasileiros que tocavam o meu chorinho. Era uma espécie de assunção que isto podia ser deles. A grande coroa de glória é o sentir que fui aceite.
(Lá fora está quase a chover. Na sala ainda se canta. Eu e a brisa, de Johnny Alf, para a despedida.
Fica, oh brisa fica pois quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
E traga alguém que queira te escutar
E junto a mim queira ficar ).