A crise chegou à arquitectura e os ateliers já estão a despedir
Enquanto o diabo esfrega um olho, a arquitectura portuguesa passou do céu às portas do inferno - que há-de ser qualquer coisa como a visão de um estirador vazio.
Em Junho do ano passado, Eduardo Souto de Moura recebia em Washington o prémio Pritzker das mãos de Barack Obama. Era a segunda vez que a Hyatt Foundation distinguia um projectista português com o mais importante galardão da arquitectura mundial, depois de Álvaro Siza o ter recebido em 1992.
Seis meses depois, a falta de projectos novos está a criar uma situação que não parece bater certo com o prestígio internacional alcançado pela arquitectura portuguesa. "É muito grave. Estão quase todos os ateliers com muitas dificuldades", diz João Belo Rodeia, o presidente da Ordem dos Arquitectos, segundo o qual o problema nem sequer é novo. "Estamos a acompanhar isto há dois anos e eu já disse que caminhamos para uma situação em que 40% dos arquitectos portugueses estarão desocupados", acrescenta.
Álvaro Siza, por exemplo, já despediu quatro dos 13 colaboradores do seu atelier . Carrilho da Graça passou dos 36 projectistas que tinha ao seu serviço para apenas vinte. "E há casos piores", assegura. Ou seja: os arquitectos estão a sentir na pele a frase que Souto de Moura proferiu, em Junho, no Mellon Auditorium: "A solução para a arquitectura portuguesa é emigrar."
"As razões são óbvias. Sem trabalho, as pessoas não podem estar a olhar para a parede. Se telefonar para qualquer escritório, dir-lhe-ão a mesma coisa: há pouca obra e há atrasos no pagamento das obras públicas", disse Álvaro Siza ao PÚBLICO, recusando-se, porém, a referir casos concretos de incumprimento.
Pedro Balonas, que também já teve que dispensar os serviços de "algumas pessoas", adianta um exemplo concreto: "Tenho um contrato de 1999 com o Ministério da Saúde que ainda não foi liquidado. Se se recorre aos tribunais, a Justiça funciona lentamente e as liquidações demoram muito tempo." "O número de projectos aprovados é ridículo e corre-se o risco de destruir o know-how que foi construído com grande esforço ao longo dos anos. Isto exige uma reflexão profunda, as pessoas não estão a perceber bem o peso deste sector", lamenta.
"Atrás do trabalhos dos arquitectos vai a construção civil e os componentes", exemplifica João Belo Rodeia. "Isto devia fazer parte da política externa do país e temos insistido muito com o Governo nesse sentido."
"O problema agora é que não conseguimos perceber quais são as perspectivas para o futuro. Os privados não têm crédito bancário para investir e também não percebemos o que é que o Estado pretende fazer. Por outro lado, a administração pública deixou de contratar arquitectos e essa foi, durante anos, uma saída profissional importante", continua o presidente da Ordem dos Arquitectos.
Alexandre Alves Costa também alude a atrasos no pagamento dos projectos, ao que se soma o não cumprimento dos prazos contratualizados. "Mas o problema maior é a total ausência de investimento público, e o investimento privado é episódico: uma casita ou outra de férias, mas que não dá para pagar sequer as despesas de funcionamento do atelier ."
Manuel Aires Mateus acrescenta ao rol dos problemas "a falta de compreensão do valor do trabalho". "Recebemos propostas ofensivas e quase humilhantes", concretiza Alcino Soutinho, que reduziu o número de colaboradores em cerca de 60%. "Ficaram os mais antigos e mais experientes."
No Atelier 15, de Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez, já só trabalham três dos oito arquitectos que lá havia. "A situação é mesmo negra, é trágica. Estamos a perspectivar o fecho do atelier no final do ano", diz Alves Costa. "Queremos evitar criar situações dramáticas aos nossos colaboradores, mas também não sabemos se para eles é melhor serem dispensados agora, com o enquadramento da actual lei laboral, ou mais tarde, quando, com a nova legislação, irão receber muito menos subsídio de desemprego."
Embora adiante que todo o trabalho que tem são projectos que estão a ser ultimados, e que não tem novas encomendas, Manuel Aires Mateus ainda não despediu ninguém. "Dispensar alguém que não tenha uma alternativa significa, hoje, mandar essa pessoa para o desemprego. Farei tudo para resistir com os nossos. Tentaremos arranjar mais campos onde trabalhar, mas despedir será a última coisa a fazer, mesmo que isso não seja muito racional", diz. Até quando? "O limite está no banco. Aguentarei enquanto houver dinheiro para pagar os ordenados."